AMOR DE CAMPONESA

AMOR DE CAMPONESA

(Dux Pellegrino/Gerson Zequim 1996)

Lady foi criada na lida roceira ajudando seu pai a cuidar do sitio e criar os irmãos mais jovens. Os dois irmãos mais velhos foram morar na cidade grande depois de se casarem e Lady acompanhava o pai viúvo no serviço bruto enquanto uma irmã do meio cuidava da cozinha e da casa, a outra irmã cuidava de lavar as roupas da família e a mais criança auxiliava em qualquer trabalho que fosse necessário. Lady ajudava seu pai na ordenha e depois enfrentava o capim molhado pelo orvalho ainda sem ver a luz do dia para lavrar a terra, cortar mato e fazer cerca de arame. No final da tarde ela ainda prendia os animais nos locais apropriados para cada tipo, curava feridas e os alimentava antes do cair da noite, se banhava no riacho, jantava a luz de lamparina e se deitava logo depois para regenerar as energias em felpudos e barulhentos colchões de palha.

Pensando em ter uma vida mais confortável Lady se casou aos vinte e quatro anos, porém a vida não foi tão fácil como ela havia sonhado. Dois filhos consecutivos nos primeiros anos de casamento tornou a vida mais eletrizante, pois agora além de cumprir a rotina de camponesa ainda dispensava um tempo para dar atenção aos filhos e o marido. Alvorada as quatro horas da manhã para preparar o café do marido que fora ordenhar as vacas e as cabras que cedem o leite das crianças, enquanto o marido tomava café com bolo de milho, tapioca e ovo esquentado na brasa do fogão de lenha, ela batia uma gemada na qual acrescenta chocolate em pó para alimentar os filhos. Lady deixava os filhos trancados no barraco de pau a pique, somente dentro de uma bacia protegida por um travesseiro e partia as dez horas da manhã com o almoço do marido acondicionado em marmitas (arroz, feijão, carne assada, ovo frito, tomate silvestre, peixe, carne de caça, ervas do campo) e uma garrafa de chá ou café. No caminho ela cruzava cerca de arame farpado, riacho rasos e gelados, embrenhava na mata fechada até alcançar o descampado silencioso. Ela conversava um pouco enquanto ele almoçava e rapidamente fazia o caminho inverso para ver os filhos de um e dois anos de idade, depois de almoçar ela preparava a merenda, o lanche da tarde para o marido que se mantinha no campo. Bolo de arroz, milho assado, mel, chá de cidreira e outras iguarias que estivesse por perto, então Lady percorria o trecho para ver seu amado novamente e saciar a sua fome.

A camponesa retornava para casa rapidamente, colocava uma trouxa de roupa sobre a cabeça, o filho menor escanchado nas cadeiras e leva o mais velho pela mão até o riacho que cortava o sitio. Ali as crianças brincavam nas águas rasas enquanto ela lavava a roupa com sabão feito de vísceras de animais com soda caustica. Depois de ensaboadas as roupas ficavam um tempo quarando sobre o lajedo para que a luz do sol promovesse a melhor limpeza. Com as águas geladas cobrindo-lhe os joelhos a camponesa enxaguava as roupas, depois disso sobrava um tempo para brincar com os filhos enquanto as roupas secavam sobre os galhos secos dos arbustos as margens do riacho. Certa vez a camponesa entregou a merenda do marido na roça e sentiu vontade de retornar para casa, desta vez Lady empreendeu uma forte carreira pela mata escura, cruzou o riacho, a cerca de arame do quintal, e somente ficou sossegada quando abriu a porta do barraco a tempo de evitar o ataque de uma imensa jiboia que espreitava seus pequeninos. A cobra entrou pelas brechas da parede de madeira e fez a rodilha antecipando o bote fatal, no entanto, Lady com destreza, aplicou uma pancada certeira a um palmo atrás da cabeça da serpente que ficou imobilizada. No final da tarde todos foram se banhar no tacho de aço que armazenava a água gelada que brotava da mina perto de casa, depois que os filhos adormeciam a camponesa se perfumava com leite de rosas e pó de arroz para acolher seu amado marido que necessitava revigorar as forças para o dia seguinte. O casal lutava incansavelmente por cinco anos para quitar o financiamento da terra que compraram do próprio sogro, um tempo de vassalagem que findava, mesmo assim Lady criou dois cunhados da mesma idade de seus primeiros filhos, dali em diante toda a produção da pequena propriedade será revertida para melhorias do sitio. Seu marido era um homem respeitado em todas as paragens; agricultor, não bebia nem fumava, falava pouco, pescador exímio, caçador implacável e conhecido por sua descomunal força física. A camponesa no final da terceira gestação chamou seu filho caçula para explicar o que iria acontecer em breve:

- O colo da mãe agora será do seu irmão que vai nascer.

- Está certo mãe! Respondeu o garoto sem queixas.

Nesse período nasceu o terceiro filho quando o casal trocou o sitio descanteado por uma terra menor na beira da “reta” (estrada) e ali construiu uma grande casa de adobo com telhas de barro e portas de madeira, que também funcionava como bolicho. Era o último ponto comercial antes de entrar na selva bruta, ponto de parada obrigatória para fazendeiros, peões, viajantes e todo tipo de pessoas. No estoque havia todo tipo de bebida alcoólica, fumo de rolo, sardinha, ferramenta, mortadela, duas mesas de sinuca que atraíam os moradores locais para o jogo de birro. As cervejas eram enterradas no fundo do riacho para resfriar e depois colocadas na geladeira movida a querosene. Os trabalhadores da empresa que faziam a abertura de estradas de acesso para o novo loteamento de terras que o governo havia distribuído para os imigrantes. A empresa usava as cercanias do bolicho como estacionamento de suas maquinas, esse movimento obrigou o esposo fazer viagens semanais para a cidade em busca de mercadorias para suprir o estoque enquanto Lady cuidava da casa e do comercio. Apareceu um companheiro de viagem mal-intencionado, um primo o acompanhava sempre para fazer compras e logo o conduziu para o caminho da bebida e da prostituição. Lady engravidou do quarto filho em um período turbulento da vida, muito trabalho para atender o comercio familiar, cuidar dos animais domésticos e dos três filhos. O esposo passou a se divertir na cidade durante os finais de semana e aparecia em casa na segunda feira com marcas de batom na camisa, sem nenhum dinheiro nem compras. O comercio despencava vertiginosamente devido a farra do proprietário e dos familiares devedores que não se apressavam em pagar as contas registradas no caderno sobre o balcão. Os filhos foram levados para a casa de uma tia para deixar a casa livre no dia dela dar à luz ao quarto filho. No dia seguinte o segundo filho lhe perguntou:

- Mãe de onde saiu esse menino?

- O avião que trouxe. Respondeu ela.

- Eu não vi nenhum avião chegando aqui. Retrucou o filho.

- Ele entrou pela janela filho. Explica a mãe.

O garoto foi até a janela e examinou as medidas para ver se comportava o avião agrícola que o fazendeiro vizinho usava para borrifar a lavoura e disse para a mãe:

- O avião não cabe aqui mãe!

- Filho, o nenê estava na minha barriga. Explicou a mãe.

Alguns anos mais tarde o marido vendeu o sitio para vir morar na cidade na intenção de permitir que os filhos frequentassem a escola, mas na verdade ele queria ficar próximo do outro amor com quem havia gerado um filho. O matuto trabalhou um tempo em uma grande empresa de bebidas onde ele mergulhou profundo na bebedeira e na vida noturna local. O matuto que outrora enojava bebidas, cigarros e coisas erradas, agora está envolvido com tudo isso e perdendo o respeito da família pouco a pouco. O matuto construiu algumas casas pequenas (meia-água) das quais o aluguel mantinha a vida simples da camponesa e seus filhos, pois o marido ébrio se tornou irresponsável e agressivo com a própria família. Em suas aventuras noturnas ele adquiriu uma enfermidade na pele da virilha que espalhou por todo o corpo, inclusive no rosto. Um tipo de impinge avermelhada que obrigou a camponesa a decidir por um jejum sexual até o seu amado mudar de vida, porém ele vivia nas ruas durante a semana e tirava o sábado e domingo para arrumar confusão com a família.

Foram dez anos de abstinência sexual como castigo para com o esposo que escolheu a vida boemia até os últimos dias de vida, enquanto a camponesa se comunicava com o grande pai do Céu sobre a vida que levava na esperança de receber uma resposta. A camponesa meditava na possibilidade de deixar para sempre aquele amor de outrora para procurar asilo em algum lugar, mas o criador ouviu o seu clamor e lhe trouxe a viuvez aos cinquenta e dois anos, depois disso ela nunca mais se casou, mesmo tendo a permissão dos filhos. Depois de um certo tempo distante o segundo filho retornou para casa sem avisar e tranquilamente abriu o antigo portão de correr que dá acesso a porta dos fundos, ultrapassando a caixa d’agua que serve de reservatório ao lado da lavanderia, ele chegou a porta da cozinha onde seus olhos vislumbraram as madeixas prateadas de sua velha mãe divagando em pensamentos, conversando com Deus enquanto refogava o arroz no alho e óleo para o almoço no antiquado fogão com abas laterais e pintado de esmalte azul. Ele permaneceu parado na soleira da porta por alguns minutos até que ela se assustou com a silhueta branca do filho com 1,85m de altura e 100kg de pura saudade.

- Meu filho chegou. Disse sorrindo com braços abertos.

Eles se abraçaram demoradamente enquanto a pequena mulher encostava a cabeça em seu peito para receber afagos nas cãs que o tempo se encarregou de branquear e ralear pelos anos de sua história. A senhora se animou para terminar o almoço e atualizar o papo com filho sobre todos os assuntos. Por detrás da lavadora surgiu a Pantera (cadela Pitbull) que atuava como anjo da guarda daquela mulher que dela tão bem zela. A fera esperou o momento certo para encurralar o visitante cuja voz soou familiar e seu odor corporal que exalava o pó daquele quintal já está registrado no seu potente faro. As cinco da matina a pantera veio arranhar a porta do barraco onde o filho escolheu para dormir sem incomodar o sono da mãe, um latido forte estrondoso que o fez rolar rapidamente da cama para ver lá na frente da casa a anciã varrendo folhas e gravetos secos da calçada com seus cabelos finos balançando ao vento. O filho se perde meditando naquela cena desnecessária, uma senhora sozinha limpando as folhas da noite com potentes vassouradas. Ela poderia estar dormindo ou repousando, fazendo crochê, mas aquele trabalho é a sua vida até que um dia a Pantera não ouça mais o som da vassoura. Aos oitenta anos ela madruga sempre conversando com Deus, mentalmente ela declara que não há mais novidade naquela vida medíocre, está pronta para se juntar aos seus ancestrais.