?type=image&id=1081260&maxw=120&maxh=160

 

 

 

 

Saudade

Saudade é solidão acompanhada,
É quando o amor ainda não foi embora,
Mas o amado já...


Pablo Neruda

 

 

 

CARTAS DE AMOR

 
 

Lucinda estava numa de tristeza absoluta. Tinha feito café fresquinho logo depois do duche mas em vez de lhe saber bem, ainda ficara pior. Arrumara duas vezes a cozinha e parecia que tudo continuava desarrumado. As flores da jarra de entrada estavam sem vida, mas na realidade o corredor escuro também não ajudava, tirava-lhes o viço. Aborrecida, deitou-as no caixote do lixo.
Parou junto da janela. A chuva caía incessante, fustigando a vidraça e escorria criando pequenos fios que ziguezagueavam na superfície fria e transparente. Olhou para fora, pouco se vislumbrava, dada a densa nuvem formada pela água. Quem se aventuraria na rua, numa manhã de domingo, com um temporal daqueles?
Foi-se deitar, sentia frio, mas o frio era na alma, uma nostalgia inexplicável.
Acendeu a luz, foi ao roupeiro e pegou na velha caixa de lata, que nos seus velhos tempos, em nova, contivera deliciosas bolachas. Abriu-a e espalhou o conteúdo sobre a cama. Um molho de cartas preso com um laço de cetim, várias fotos antigas, uma madeixa de cabelo, cortada quando a sua filha fizera um aninho de idade, outras recordações irrelevantes.
Recostou-se o mais confortavelmente que pôde e foi abrindo as cartas, lendo-as uma a uma. Datavam do tempo de namoro, já tinham decorrido imensos anos.
À medida que lia, a lembrança dele foi-se avolumando no peito e percebeu então toda aquela mágoa que lhe tomava o ser. Eram saudades, fortes, incisivas, que magoavam como punhais.
Uma lágrima escorreu-lhe na face, depois tentou recompor-se, mas à segunda carta a emoção tomou-a, sentindo-se submergir. Nela encontrou transcrito o Soneto da Fidelidade, de Vinícius de Moraes, o seu preferido e que guardara religiosamente, escrito com a preciosa caligrafia dele.

 
 

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

 
 

Então, chorou sem conseguir parar. A sua face molhou a almofada e esse facto ainda mais agravou o seu sentir.
Porque Deus o tinha levado, tirado a felicidade no momento mais importante da sua vida?
Tantos momentos agradáveis, inesquecíveis, lhe vinham à memória, o seu sorriso, o seu cheiro, os seus beijos, a sua sempre atenciosa presença…
Não era justo, isso revoltava-a tanto… Mas que poderia fazer perante essa fatal contrariedade?
Encolheu-se como um pássaro ferido, o sofrimento dizimava o seu coração…
Por fim, o cansaço venceu-a e tapando-se com uma pequena manta escocesa e segurando o molho de cartas  que entretanto atara de novo, adormeceu.

 

 

 

 


 

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 11/09/2023
Reeditado em 11/09/2023
Código do texto: T7883082
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.