AMOR PLATÔNICO
Ele passava em frente a casa dela quase todos os dias. Era o seu trajeto obrigatório nas longas caminhadas que fazia regularmente.
No início nem notou se havia alguém no portão ou mesmo no jardim que circundava o imóvel. Sua concen-tração era no ritmo que imprimia nos passos cadenciados à procura do padrão ideal que resultasse em benefícios futuros ao seu corpo, já bem meio desgastado pela idade.
Não que se sentisse um velho, na verdadeira concepção da palavra, mas tinha superado os sessenta e se aproximava rapidamente dos setenta, tão rápido quanto o caminhar de sua rotina de exercícios diários. Foi quando teve a sua atenção despertada pela presença de uma mulher ainda relativamente jovem, de quarenta e poucos anos, que inesperadamente surgiu à sua frente varrendo a calçada da casa em que morava.
A atividade da mulher o fez modificar rapidamente o seu curso, evitando dessa maneira que se esbarrassem. Embora tivessem se cruzado rapidamente, notou que ela era bem interessante. Nada exuberante, diga-se de passagem, mas detentora de um rosto com traços suaves, gostoso de se olhar, e um corpo de dar inveja a muita mulher jovem. Uma verdadeira Gata Borralheira suburbana de meia idade, perdida em sua tarefa rotineira de dona de casa.
Naquele exato e fugaz momento, olharam-se bem nos olhos, por apenas um ou dois segundos, se tanto, tendo ela em seguida logo os abaixado e desviado sua atenção para a tarefa que exercia: remover os vestígios das folhas, papéis e areia trazidos pelo vento em intermináveis redemoinhos.
Tudo que havia sido depositado aqui e ali eram vestígios da sujeira de outras calçadas. A partir daquele dia passou a notá-la em sua beleza cativante, mesmo no curto lapso de tempo que levava para cruzar o espaço que lhe permitia visualizar aquela graciosa e desconhecida personagem que, de repente, passara a ser o centro de suas atenções. Havia períodos em que, mesmo circulando por diversas vezes, não conseguia divisar a sua imagem. Talvez estivesse cuidando da parte interna, cozinhando, lavando, passando ou mesmo andando na rua e fazendo compras no supermercado ou olhando vitrines no shopping.
Sabia que era casada, pois vira o seu marido e filho algumas vezes na varanda e no portão, mas isso não lhe importava.
O que importava realmente era que notara a sua presença, ou ausência, e que passara a representar a força que o impulsionara a perseverar ainda mais em seus exercícios, antes tão monótonos.
Havia recebido uma nova motivação, mesmo que
respeitosa e meramente platônica: enxergar ocasionalmente o seu rosto luminoso, ainda que por transitórios instantes, mas suficientes para deixá-lo feliz somente pelo prazer que isso lhe proporcionava. Nunca teve maiores ambições.
Simplesmente gostava de vê-la, mesmo que em roupas de uso caseiro, às vezes até com os cabelos despenteados e aparentando certo ar de cansaço em consequência das tarefas domésticas que exercia. Era a jovem senhora uma preciosidade perdida no anonimato de uma ruazinha localizada em um subúrbio distante, bem longe do glamour das áreas mais nobres da cidade, sem que isso a fizesse perder, no entanto, a sua merecida majestade.
E durante meses ludicamente andou por aquela rua, sempre com o coração aos pulos devido à intensa ansiedade ante a expectativa de encontrá-la, mesmo que nunca a tivesse cumprimentado, nem por cortesia, o que poderia ter acontecido já que se conheciam de vista.
Mas aquilo ainda não ocorrera para sua decepção. Talvez devesse ter tomado a iniciativa e passado a cumprimentá-la sempre que fosse possível. Na verdade, tinha medo de se tornar inconveniente e acabar quebrando o encanto que aquelas cenas diárias lhe proporcionavam.
E essa situação perdurou até que um belo dia a sua rotina mudou inesperadamente. Ao se aproximar mais uma vez de sua casa, notou angustiado que havia um caminhão de mudanças parado bem na porta. Não acreditou no que estava vendo.
“Por que estaria se mudando?” Indagou-se mentalmente.
O que faria doravante sem a sua presença?
Por que não o avisara antes?
Este último pensamento fez com que sorrisse amargamente.
Como e por qual motivo o avisaria?
Ele era apenas um estranho na sua presença.
Naquele dia, pela primeira vez, interrompeu os seus exercícios alguns metros mais adiante e, disfarçando estar amarrando os cadarços de seu tênis, ficou observando desolado enquanto o caminhão ia recebendo peça por peça os pertences daquela quase estranha, mas que agora fazia parte da sua rotina de vida.
Resolveu então dar mais algumas voltas no quarteirão para despistar, aproveitando para em cada uma delas lançar um olhar ansioso para ver o andamento da mudança que acontecia sob seu tristonho olhar. Seu coração não disparava pelo exercício em si, mas pela aflição de estar assistindo o fim de uma fantástica experiência pessoal que havia transformado, por completo, a sua existência.
Quando finalmente terminou a colocação de toda mobília e utensílios no caminhão, assistiu amargurado o veículo iniciar a marcha rumo ao novo destino, que ele desconhecia totalmente. Ia o caminhão seguido bem de perto pelo carro conduzindo os membros da família.
Todos expressavam em seus rostos a imensa alegria pela expectativa de vida em um novo lar que os abrigaria doravante. E foi no exato instante em que o carro passava perto dele, em marcha ainda reduzida, que percebeu que ela havia voltado o rosto em sua direção e esboçado o sorriso mais lindo que já tinha visto em sua vida, ao tempo em que lhe acenava discretamente com uma das mãos do lado de fora da janela, num último e derradeiro adeus.
Teve então a certeza de que ela também sentira o mesmo que ele na primeira vez em que seus olhares haviam se cruzado naquele dia inesquecível.
E isso foi o suficiente para que esboçasse um sorriso, que, apesar de amargo, confirmava a interação que tivera com uma desconhecida durante longos e inesquecíveis meses, ainda que jamais houvessem trocado uma única palavra.
Naquela noite não conseguiu conciliar o sono. Sempre que fechava os olhos ela aparecia em sua mente, fazendo que sentisse uma enorme amargura dilacerando o seu coração solitário. Nunca mais a veria novamente.
No dia seguinte, após refletir bastante sobre o ocorrido, resolveu que tornaria a passar pela rua em que ela residira, só que não olharia mais para aquela casa em questão. Não suportaria assistir a outras pessoas habitando o lugar que pertencera a uma doce criatura que tivera o dom de devolver, novamente, o seu amor próprio.
Mesmo que isso tenha acontecido à custa da perda de algo que, paradoxalmente, nunca lhe pertencera, mas fora suficiente para lhe dar novas e motivadoras esperanças de um dia, quem sabe, voltar a encontrar novas e gratas surpresas em seu solitário caminhar.