A última fenda dos ventos árticos

 

     O brilho vespertino opaco naquela hora fenecia a oeste, este, prenunciava-nos o quão, assaz álgido e rigoroso seria aquele inverno que de forma hedionda nos saudava naquele poente.

     Estávamos assentados naquele aclive rochoso coberto pela tundra ártica; eu e a senhorita Alina, por mim chamada carinhosamente de Lina, perdidos em nosso fado. Contemplávamos o último pôr do Sol que veríamos antes da longa noite polar tecer seu véu brumoso de escuridão sobre o firmamento.

Ao revés, no fundo, Alina e eu sabíamos que este deveria ser tal-qualmente a última vez que veríamos em nossa soturna e confusa existência o resplendor Febo em suas intricadas cores tardias, tínhamos ciência que aquele deveria ser o lugar, o único lugar que auferiríamos paz. Seria naquele descampado frígido que dois criminosos apátridas, proscritos, procurados; todavia, resilientes e sobreviventes, deveriam terminar.

     Permanecemos silentes, inertes, ao relento, a contemplar os últimos raios do astro Rei, que decerto jamais tornaríamos a ver. Alina era uma donzela jovem e tenra, assaz bela, dessarte, sua beleza era extrema; possuíra longos cabelos claros e luminosos como ouro, deveras lisos, contudo, estes, logravam de singular ondulação, profusa e deslumbrante que lhe conferia sensualidade e encanto; seus olhos eram escuros como a madrugada, não obstante, brilhantes e reluzentes como pérolas negras, havia composição perfeita de sua linha d’água até o canto externo do olho, atribuindo-lhe um delineamento altivo e majestoso. Possuía o ar de uma deusa, e a ternura de uma donzela. Seu rosto era perfeito, podendo-se aferir a proporção áurea em cada detalhe, lograva de uma pinta em seu pômulo, isto é, a maçã de seu rosto, no lado sestro. Suas bochechas eram levemente coradas e róseas, com lábios mui belos e sanguíneos, concedidos pela vivacidade e calor que corriam em suas veias; sua pele sedosa e branca trazia um tom rosado, embora, remetendo ao marfim, atribuindo-lhe um semblante fresco e saudável, seus seios eram do tamanho exato de um romã grande; com um pescoço sedutor, era magra, esguia e delicada, inobstante, possuíra um esbelto e deleitável corpo, sem detença, já á muito passara pela menarquia, haja vista, que seus dotes e contornos, evidenciavam a lapidação de seus atributos mulheris, revelando que deixara então, a puerícia, sendo agora uma jovem mulher, perspicaz e astuciosa, todavia, atirada, era vestal.

     Naquele frio lacerante, cobri aquela donzela atônita, de cabelos doiros, com minha arcaica capa de cavalagem; recostando-a ao aconchego do calor que emanava de meu corpo. Suso meu ombro, apoiando de guisa tenra sua face, enquanto vertiam sobre mim suas oleosas madeixas, não obstante, assaz olentes, como odre de alabastro. Ouvíamos o sinistro ganir dos ventos boreais, a roçarem infrene pelas rochas e charnecas, dobrando nos morros e planaltos as solitárias coníferas e abetos que persistiam em existir ali.

     O crepúsculo iridescente escondia as últimas cintilações daquele maravilhoso dia, por detrás das encostas montanhosas à nossa destra, conquanto à nossa sestra, um colossal escarpado de pedra branca era tingido num amalgama de carmesim dourado, jubiloso, eram as únicas cores além dos monocromáticos tons de preto e branco que naquele momento alteravam os matizes de nossa vista, deixando tudo em infinitos tons de cinza até o preto absoluto, acentuado pelo fiorde à nossa frente e suas ciclópicas falésias banhadas pelas águas negras do mar do norte.

 

     Naquele lusco fusco com o purpúreo avermelhado, as sombras outrora esticadas, agora se escondiam após o poente, deixando a neblina caliginosa chegar após o decesso lumio. Uma mescla de sensações terríveis e inenarráveis ante ao vazio, a desolação e a morte apeavam nossos corações, com batimentos ímpios de angústia, tormento e pavor.

Comeios que regressamos a nossa casa, esta, era miúda, em formato triangular, disposto em uma aresta semi natural do relevo, com um pé direito de pouco mais de três metros, análogo a um chalé campestre alpino, com telhado inclinado de duas águas disposto sob uma pildra e soalho, mantendo a edificação acima do solo permafrost, constituído de cedro e pinheiros com acabamento burlesco de óleo queimado, e possuindo apenas uma porta na parte frontal, abertura esta, compósita, afixada na guarnição, juntamente a duas pequenas fenestras que ladeavam a esquerda do umbral, possuindo vidros transparentes, leitosos e encardidos, desgastados pelas intempéries, o limiar e os alisares dessa eram pintados de branco, similarmente desbotados; a parte interna requeria pouca explanação, possuindo dois armários grandes, um raque, dois criados, um ancestral futon. Lateralmente ao leito, uma pia pitoresca, uma frágua ao lado da lareira, uma espécie de deck com uma grande barrica para banho, um tronco de árvore feito de mesa e duas cadeiras, um balcão forâneo com singelos utensílios domésticos, todo soalho era coberto por pelos de animais e couro de boi.

Tal habitação estava aterrada por seixos onde cresceram turfas, ciperáceas, gramíneas e musgos sobre a laje de pedras pomes, cercando também a lateral e a retaguarda de nosso módico abrigo; deveras diferente dos luxuosos casarões e apartamentos art déco, art nouveau e eclético, cujo soer Alina estava ambientada! Podia compreender sua frustração e descontentamento com o advir!

 

     Nos assentamos na cama e haurimos toda uma garrafa de bourbon, até ficarmos completamente embriagados, nos fartamos do mel que trouxéramos da cidade, frutas secas, e uma intricada e graúda maçã verde, ascendemos nossos cigarros com o mesmo fósforo, e neste ar glacial, aquela vênus inebriada, se despiu e abluiu-se na barrica de carvalho, entrando naquela água gélida, enquanto eu atiçava o fogo da lareira para não morrermos de frio naquela noite. Nesse interim, aqueci mais águas com fito de preparar alguma bebida quente.

     Ao terminar de se lavar, seu corpo esguio, impúdico e lascivo; emanava uma névoa em eflúvio, irradiando sutis e expressivas derramas de calidez e abrasadora concupiscência. Naquele soflagrante, servi-nos em chávenas, uma infusão de chá carcadet, framboesa e baga sangrenta, vertido com cristais frutados e brandy de ameixa. Isto lançara aquela beldade nua aos meus braços, em maneio que vossos lábios evolaram aos meus, em passo desespero, acentuou ainda seu coração a palpitar entre seus seios rijos e seu corpo nu, venusto, banhado pela luz acerejada da lareira que nos aquecia, fora eu libando sua saliva doce, mordiscando seu mento e sorvendo seu pescoço, acariciando seus tenros pomos, comeios que ventos gélidos e impetuosos molestavam a escarpa onde a casa repousava, fazendo esta ranger, como também o sopro da lufada à suscitar enormes ondas a insurgirem contra os taludes do fiorde.

Dentro de nossa pequena morada, ela não fora como flores indeiscente, ao contrário, em deiscência, descerrou seu cimélio, em ledice e apreensão contra a noite voraz, ao passo que lá fora, irrompiam os arbustos e maquis a bailarem com uma canção lúgubre e inteligível, ficamos ali deitados vendo o fogo da lareira estalar e bulir, liberando olência de lenha de pinheiro, reconfortante, juntamente com o inefável cheiro feminal que Alina emanava.

     Aquele momento fora tenebroso e transcendente, à atmosfera de taciturnidades e ventos hórridos, uivantes, enquanto nas horas mortas da noite as trevas eram apoquentadas por uma pequena candeia de querosene, suso a um tronco que fizemos de mesa, naquela habitação, deitar-se-á despida minha amásia, ladeando a brasa da frágua e tão somente só soeremos de nossa companhia naquela terra erma, imota, sôbolo a rocha, abaixo da relva em nosso antro de libertinagem, permaneceremos entre esses promontórios com o sopro invernal a fustigar o outeiro na noite sem fim, enquanto as luzes virentes do norte adentram nossa módica fenestra, bruxuleando pelo soalho de madeira, naquele âmbito tomado de matiz eigengrau, em um confuso e lôbrego ambiente. Além do ulular das rajadas, ouvia doce e lubricamente, a voz inarticulada de Alina a suspirar enquanto a tomava por mulher sobre aquelas mantas, em seu estado radiante de fêmea.

     Ficaríamos assim por dias a fio, ouvindo o chicotear do mar sobre a costa pedregosa, estava tudo tão morto que não mais se ouvia o canto dos pássaros, tampouco de animais ao longe, somente os inomináveis ruídos silenciosos a estalarem dentro de casa.

     A neve caía gélida naquele algente cortante, mundo onírico, petricor, onde o sol que fulgurou no dia antanho parecia um sonho a muito esquecido; nesta encosta solitária, deserta, congelada e decadente. Perduraremos ali exaurindo as forças e fluidos um do outro, em nossa perquirição da apocatástase, na última fenda dos ventos árticos.

 

Conrrad de Passant
Enviado por Conrrad de Passant em 21/08/2023
Reeditado em 21/08/2023
Código do texto: T7866841
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