Desejo Algoz

Era um dia como outro, de sol e gente andando alheia pelo campus. O RU, como sempre, lotado e o barulho familiar de risadas e empolgação caloura tomando conta de tudo. Eu, sentado com o livro no colo, aguçava os sentidos para captar a aura e, ao mesmo tempo, fugir da tela do celular com a fatídica mensagem que recebi de manhã. Tentei me concentrar na leitura, mas a tela vítria de brilho artificial continuava me interpelando no colo oposto. O que faço agora?- pensei. Não me restavam muitas opções, a não ser conversar com ela e tentar negociar. Negociar parece uma palavra fria demais para o imbróglio em questão, mas era isso. Uma transação no campo afetivo. Um escambo amoroso entre duas pessoas que estavam em lados opostos de um mesmo oceano. Eu, um aluno de pós graduação teimoso e ela, a professora preferida de todos os estudantes hippies da universidade. O estilo alegre, suave, arrogantemente despojado da mulher que parou minha vida no momento em que a vi, fazia delirar qualquer incauto. Não era simplesmente uma mulher atraente, era a mulher mais atraente que já conheci e fui estapeado por sua alma dócil. Não resisti e, na verdade, não tentei. No entanto, ali estava eu, sem ela, totalmente desamparado da sua presença por causa de uma denúncia. Alguém achou justo denunciar o nosso amor. Inveja? Não sei! Desejo reprimido? Possível. Fato é que, ao me deparar com a mensagem curta e grossa, quase chorei:

" Acabou, querido. Foi bom enquanto durou."

Não me atrevi a especular se ela também estava triste com o fim. Preferi não ficar consciente de uma realidade que, há alguns dias, me parecia distante. Simplesmente absolvi a informação e decidi, por bem, tentar salvar o nosso Titanic amoroso do naufrágio iminente. Fechei o livro, guardei o celular e caminhei silencioso para o departamento de Letras, sala 10. A aula ainda não havia começado e apenas duas ou três pessoas se organizavam nas cadeiras. Ela não estava. Chegaria em cima da hora, como sempre. Até o seu atraso é charmoso, sutil, tolerável. Esperei, pernas cruzadas em uma das cadeiras do fundo. De repente, a expansão da sua entrada e o desconcerto, logo em seguida, por enxergar o meu rosto. Colocou as coisas sobre a mesa, prendeu os cabelos em um rabo de cavalo bagunçado e abriu um sorriso simpático.

- Olá, queridos!

A voz límpida e segura de quem, apesar de ter tomado um tombo, conseguiu se reerguer sem sequelas aparentes.

A aula transcorreu como sempre. Debates profícuos, outros, nem tanto. Caras, bocas, risos, rugas e pronto. Uma despedida apressada e um monte de meninos e meninas empolgados atravessando o portal para a próxima aventura intelectual. Quando todos se foram, levantei, cheguei perto, toquei seu ombro e ela não me olhou.

- Não vai falar comigo, não?

- Não leu a mensagem?

Ela permaneceu concentrada na tarefa de fugir de mim.

- Li.

- Então.

- É um fim definitivo?

- O Comitê de Ética da instituição me convocou para uma conversa, cara.

- Quem denunciou?

- Sei lá. - Ela deu de ombros e, pela primeira vez, me olhou. - Sei lá.

- Eu acho exagerado terminar tudo por causa disso.

- Exagerado, Vey? - Ela sorriu e balançou a cabeça. Os cabelos cacheados se desprendendo do nó do rabo de cavalo e caindo sobre os ombros banhados de melanina. - Ouviu o que eu disse?

- Somos adultos, poxa.

- É, mas para o Comitê, eu sou a professora que comeu o aluno inocente, saca?

- Besteira da zorra.

- Fazer o que...

- Quando vai ser ?

- Ser o que ?

- A conversa

- Para que quer saber?

- Só quero saber- Ela guardou o último item na bolsa e suspirou. Os olhos castanhos agressivos, ferozes, organicamente poéticos me atravessaram e ela sorriu, sossegada.

- Não vai se contentar com o não, né?

- Terminar pelo ZAP, poxa?

- Não tive a oportunidade de te falar pessoalmente. Foi isso! Só isso, entendeu? Seja compreensivo, gatinho.

- Não consigo não, poxa.

Segurei o braço dela, deslizando os dedos com delicadeza pela pele arrepiada. - A gente tava se curtindo, não foi?

- O problema é que ficou perigoso.

- Algum filho da puta nos entregou.

- Sim

- Mas...- Minha mão permaneceu sobre o braço dela, que não se movia, embora eu conseguisse sentir a pulsação acelerada. - Uma última vez, só. Só essa.

- Da última vez, era a última vez. Por isso não queria falar pessoalmente, tá vendo?

- Poxa ...

- Tem que acabar aqui. Desculpa!

Tirei a mão do seu braço e a vi seguir contrariada ou cansada até a porta. Permaneci ainda um tempo tentando me refazer daquele não perene. Suspirei, caminhei até a saída e me perdi em meio aos rostos universitários.