PÁGINAS DO CORAÇÃO (conto)

Diária rotina: a última verificação e arrumação na gravata; efetuar a tranca da porta com três giros da chave e experimentar por três vezes se está realmente trancada; levar trinta e um minutos de caminhada até o banco da praça; sentar-se no banco; cruzar as pernas e retirar do bolso do paletó o relógio de ouro preso à corrente para confirmar que está no horário. A partir, é ficar com o olhar vago, ora ao horizonte, ora às árvores centenárias e às pessoas que passam. Manhãs rotineiras, que acabam lá pela dez e meia quando retorna ao apartamento, aos seus livros, à sua velha Olivetti, aos noticiários das emissoras de televisão e rádio. Os transeuntes, adivinhando a sua vontade de ficar sentado apegado à solidão e às recordações segredadas, não se sentam ao seu lado e nem os pássaros aproximam-se para ciscarem na grama.

De repente, a rotina é contrariada. O vulto o traz de volta das meditações. Tem forma de menina com seus vinte e cinco anos, calça colada ao corpo, camiseta rosa com dizeres estampados em inglês e um livro. Ela se senta e o cumprimenta respeitosamente. Abre no marcador entre as folhas e começa a sua leitura. Ele a observa discretamente, pelo canto dos olhos. Com medo da indiscrição, retoma a rotina de ficar apenas olhando. É por pouco tempo, pois olha dissimulado à jovem e ao livro.

Está concentrada. Ele, nota que demonstra estar gostando da leitura, pois expressa sorrisos, depois seriedade, sorrisos, volta a balbuciar preocupações, indignações com algum personagem, sorrisos e deixa cair gotas de lágrimas por outros trechos. A menina para, momentaneamente, observa, o horizonte da sua distração, encostando ao peito o livro num abraço apertado para suspirar e retornar à leitura. Lê por mais algum tempo, parando de ler novamente, repetindo outra vez algumas das emoções. Quando dá no tempo ávido por passar ligeiro, mais ou menos por uma hora, ela se vira ao homem dizendo-lhe:

— Que história emocionante! Li-o seguidamente por cinco dias, até altas horas da noite.

O senhor permanece calado, limitando-se a um rápido olhar e a nada mais. Ela continua:

— Uma linda história de amor. Uma que qualquer mulher gostaria de vivenciar.

Não recebeu dele nenhuma emoção, nem a mínima vontade de participar de algum diálogo.

— Acredita que o autor conseguiu com o seu estilo prender o leitor intensamente? Ele me levou para dentro da história, fazendo-me ora um dos personagens e, logo em seguida, vestir-me como outro. Maravilhosa história!

A atenção dele é através de um olhar vago, inerte, marcantemente gelado.

— No começo acabei ficando ao lado da personagem esposa e dos filhos. O marido e pai era um alcoólatra, aparentando incorrigível, nada de ações judiciosas no dia a dia, nefasto. Infiel ao casamento, infiel aos filhos, infiel a si mesmo. Perderam tudo que tinham como a casa, empregos, oportunidades de felicidades. Acredita que eu o odiava em cada palavra, a cada frase, a cada capítulo? Cheguei até querer parar de ler, exigir o preço do livro de volta.

De olhar frio a quem ainda a observava. Continuou:

— Magicamente, eis que o autor dá uma guinada à narrativa. Inverte tudo. Coloca o incorrigível personagem como um recuperado marido e pai. Como raramente acontece na realidade, aquele homem passa a viver de tal maneira que leva a esposa e os filhos a uma felicidade ímpar. Com a sua descrição passo a entender as mazelas humanas, a capacidade infinita existente no interior de cada um que é capaz de viver os milagres, criá-los; aceitá-los. Calou-me a boca, provando a insensibilidade que temos em uma situação difícil e acabamos a sentir de ser capaz de julgar. Aprendi que, numa situação parcialmente revelada, numa palavra isolada, somos nós as pessoas nefastas que acabamos por condenar alguém.

Interrompeu-se para tomar folego, quase o perdendo por estar empolgada e exultada pela narrativa. Ambos ficam em silêncio, copiando, simultaneamente; olhares vagos, inertes, mas não mais gelados. Cada um meditava da sua maneira. Ela voltou a dar nova opinião:

— O mais legal da narrativa é que a esposa permaneceu ao lado do marido. Não se entregou, se bem que não foi do tipo Amélia, não foi aquela traída que tudo aceita dizendo que se ruim era com ele, pior sem ele seria. Ela, sabia que aquele alguém que levara a amá-lo estava ali, bem ao seu lado e passando por algo que teria que passar.

A jovem, outra vez, procura no homem pelo menos uma palavra ou perguntas, em forma de críticas, em forma de curiosidades. Nada o moveu.

— Parece que o estou cansando. Peço-lhe mil desculpas, mas é uma história maravilhosa, mexendo comigo, que não consegui deixar de lhe expressar a minha admiração por ela. Nego a não lhe dizer mais uma coisinha só. Como será que o autor conseguiu uma história tão bem sacada? De onde ele tirou inspiração? Será que ele tem outros livros bons? Ele deve ter outras obras de ficção tão boas quanto este romance!!

A jovem se surpreendeu quando ele estendeu a mão para pegar o livro. Olhou demoradamente a capa, alisando-a, com o nome Páginas do Coração estampado sobre a silhueta de uma mulher em alto-relevo, abraçando a obra contra o seu peito como se fosse um abraço interminável. Devolveu-o à moça com afeto, como se estivesse devolvendo um tesouro. Disse-lhe:

— Não tem outras obras. É única e ele jamais irá escrever novamente. Acredite, minha jovem, que não é uma obra de ficção, e sim! uma crônica longa e de fatos intensamente vividos.

— Como o senhor sabe?

Enquanto, ele levanta o corpo com seus noventa e um dos anos de vida, respondeu-lhe:

— É que eu a escrevi para a mulher mais maravilhosa que existiu, que com ela vivi por sessenta anos de casamento, que amei intensamente até a sua morte há dois anos. Sabe como parei de experimentar os erros? Quando, em um dia sombrio para nós dois como sendo a maior tristeza existente no Universo, ela me disse que por mais que eu tentasse fazê-la me odiar; não conseguiria por simplesmente me amar desde o momento que eu a pedi em namoro.

Fez uma pausa. Ela, por sua vez, pedia por mais...

— Eu perguntei à minha esposa: Como pode ainda me amar?

A jovem permanecia concentrada:

— Ela respondeu que amor incondicional não pede por explicações. Então, perguntei-lhe o que eu teria que mudar...

Ele, parou para limpar algumas lágrimas das lentes dos seus óculos. Continuou:

— A minha amada olhou-me com os olhos mais meigos do Universo. Pegou em meu rosto com a delicadeza das pétalas de flores. Disse-me que era eu quem deveria decidir. Por ela, se a minha decisão fosse continuar sendo alcoólatra e violento, continuaria a esperar por dias melhores. Aceitaria como um intérprete que tinha ainda aquele papel a cumprir. Da mesma maneira, eu mudando, ela teria que passar a aprender a cuidar do novo ser amoroso, regenerado, sem vícios e violências. O amor seria o mesmo, somente que poderia voltar a sorrir e não sentir mais medo.

Parou... Ele olhou à praça, árvores e flores, aos transeuntes apressados, ao céu iluminado pelo Sol intenso escondendo com a sua forte luz as estrelas. Fez, para a moça, um leve gesto de despedida e foi caminhando de volta à rotina, pisoteando as folhas do outono quase findo, carregando saudades, sentindo-se só, esperando o tempo chegar-lhe como o fim da história que viveu e escreveu. Sabe que tudo tem o seu começo, tempestades e calmarias, e o seu fim.

A vida ensinou-lhe que o começo e o fim são fáceis de aceitar, de conviver e viver. Nas tempestades ou nas calmarias é que se exige intenso amor para nelas; poder sobreviver.

Arabutã Campos
Enviado por Arabutã Campos em 02/08/2023
Código do texto: T7851734
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