O FUGAZ E O EFÊMERO

“Comigo me desavim, sou posto em todo perigo; não posso viver comigo nem posso fugir de mim.” (Sá de Miranda, 1495-1558)

Tinha comportamento exemplar, sendo paradigma para muitos amigos e passantes. Firme em convicções e propósitos, corajoso e destemido em divulgá-las. Mas, houve o dia que lhe aportou Estela, moça alegre, de eventuais bons modos, corpo rígido e costumes flácidos.

Aos poucos encantou a Jorge, bem-sucedido no reino das finanças, que exibia seus valores de comportamento com maestria e muitas ênfases, deles, e por eles, se fazendo notar em qualquer ambiente, de preferência naqueles onde tinha convicção não poder ser cotejado com contraditas. Daí, sua descida aos bares, casas de diversão, armazéns de quinquilharias, e lugares sem intolerâncias, onde poderia reinar descuidado com as palavras e gestuais, sem esforços nem temores.

Estela encantou-se fantasiando pudessem todos aqueles saberes transferir-se a ela, como legado, por uma tal de osmose, palavra que ouvira pela primeira vez ecoando dos finos lábios de Jorge, ornado por bigode ralo, mínimo, cinco raros fios de cada lado muito bem cuidados. Sentiu-se em outro patamar, superior ao nível de seu grupo; ou tribo. Passou a ser invejada entre os pares, alguns ímpares, pelo alcance e possível solidez da nova conquista.

Mas... tempo vai, tempo vem, beijos vão, beijos vêm, as rígidas amarras que mantinham Jorge em um dos lados do cercado sem tapumes de seu mundo, para ele julgando poder atrair Estela em face da própria habilidade que a si encantava, aos poucos viu-se por ela abduzido mercê de favores amorosos recebidos, tão mais inéditos e impactantes quanto mais frágil cedia ao rigor dos comportamentos que eram sua marca e expressão.

À paixão avassaladora, imparável, cedeu valores de longo cultivo como moeda de troca. E mais não conseguia de Estela se não desvalorizasse o valioso estoque de sua consolidada pecúnia imaterial em processo inflacionário galopante. Sem reservas nem “hedge” para cobrir aqueles comuns períodos de entressafras amorosas, nem condições de poder arregimentar “crowdfunding”, suspeitou ser o momento de abandonar as âncoras cambiais por algum píer para fugir do iminente naufrágio. Mas era tarde; com a reputação ferida e sentimento de menos-valia relutante, inescondível, percebeu que não mais obteria aval para emitir novas debêntures conversíveis para surfar triunfante como antes.

Estela enfadou-se e evadiu-se ao descobrir que a áurea firmeza de Jorge, que a atraia e excitava, era fluida e nada pétrea; tigre de papel. Igualado Jorge a outros comensais, divertia-se a contabilizar e a cotejar resultados concretos em comparativos com aventuras pretéritas, presentes, maquinando experimentações futuras.

Jorge tornou-se parte da burocracia dos desejos comuns de Estela. Suportado pela confiança na onisciência da empáfia arrogante dos bons modos, na admiração que provocava pelo sucesso nos negócios, pano de fundo do seu êxito, não percebeu que no universo dos desejos, na dimensão dos prazeres, os cânones são de outra ordem e desconhecem as liturgias das fronteiras consulares. Não soube conciliar o tempo de um com o apelo do outro, perdendo-se.

Navegante experimentado de águas profundas, mestre das cartas náuticas, respeitado senhor de si, mago das complexas equações dos derivativos e variações bursáteis, faltou-lhe destreza para orientar-se pelas estrelas... em Estela. Restou-se, então, fundeado no raso, sem rumo, inquieto na vastidão daquele mar em provocante calmaria.

Sem referências nem lenço nem documento nem forças para remar, claudicante e somente consigo como companhia, findou-se exangue, sem ânimo nem mesmo para produzir lágrimas.

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(Dez/2021)