Evelyse
Evelyse
Amanda Kraft
Ele chegou em um fim de tarde com a viola a tiracolo. Andou pelas ruas empoeiradas da vila mineira e pousou os olhos no bar ao lado da praça central. Estava cansado das longas andanças sem destino, contudo trazia um sorriso acolhedor no rosto marcado de sol. Os que se encontravam às mesas, jogando cartas, olharam-no com olhos apertados. Cumprimentou a todos com um leve meneio de cabeça e se sentou em um canto afastado. Pediu água e passou a observar o recinto. Segundos depois, sacou a viola e se pôs a cantar. Em instantes as cartas foram deixadas de lado e, os jogadores esfalfados, puseram-se a ouvi-lo. Em seus rostos a tristeza logo emudeceu e se tornaram iluminados.
Foi quando a morena trigueira adentrou ao recinto. Regressava das aulas, ministradas na pequena Escola Municipal da cidade vizinha, acompanhando Toninho, filho do seu Juca, o dono do bar. Os olhos claros do moço da estrada miraram a pequena e seu sorriso se alargou na noite festiva. Por instantes, que pareceram horas, ela o encarou e algo se agitou em seu ser. Queria ficar com os convivas e se perder nas canções do mancebo, entretanto não ficaria bem a professorinha sentar-se à mesa de um bar, sendo ainda enamorada do filho do principal fazendeiro daquele lugar: Leôncio.
O moço da viola foi avisado por seu Juca, ao notar a troca de olhares que conferiram certo rubor à face da morena, logo que o show acabou e o jovem lhe pediu pouso:
— Essa aí tem dono, moço. Não espicha os olhos para cima dela que vem chumbo-grosso. — proferiu com uma voz empossada, de quem sabe o que diz.
— Por acaso a pequena é casada? — retrucou o rapaz, confiante em seu riso solto.
— Ainda não, mas é como se já fosse. — concluiu, erguendo a sobrancelha direita, encarando o rapaz.
Radiante e esperançoso o forasteiro arpejou a viola, enquanto mirava o horizonte enegrecido através da porta do bar, disparando em seguida:
— Então a moça ainda é livre.
Um frio percorreu a espinha do velho Juca ao ver o sorriso tolo no rosto do jovem. Benzeu-se quando o forasteiro deixou o lugar em direção à pensão da Dona Chica. A paixão dos dois sucumbiu à razão, quando passaram a se encontrar as escondidas, assim que Evelyse retornava das aulas. Logo o falatório da pequena vila correu feito pólvora, vindo a cair justamente nos ouvidos de Leôncio, o noivo traído.
A professorinha não negou. O amor tomou conta de seu peito, avariando seus pensamentos. Era fato que deixaria a cidade de braços dados com o cancioneiro, ainda por aqueles dias.
— Como você pôde se apaixonar em tão pouco tempo por um desconhecido qualquer, a ponto de abandonar a vida que lhe prometi? — indagou o noivo, enfurecido e perplexo, diante do olhar passivo e resoluto da noiva cruel.
— Não sei, Leôncio. É mais forte do que eu. Perdoe-me. Nós vamos embora. Você ficará bem. Eu sei. — insistia a jovem, sentindo-se temerosa pela primeira vez, ao notar o olhar de sanha a lhe encarar.
O noivo preterido anuiu, dando-lhe as costas. Era um bom partido para qualquer mulher com quem se propusesse a casar. Contudo, a ofensa dirigida a ele, enegrecia sua visão, empedernindo seu coração. Não seria chacota para aquela gente que conhecia desde criança.
Evelyse sentiu o perigo e tratou de avisar o enamorado. Fugiriam daquele lugar naquela noite. O forasteiro não deu crédito às ameaças. Em suas andanças havia encontrado muitos valentões e sempre acabara dobrando-os com suas canções de esperança e paz. Faria o fazendeiro perceber que amor nasce para quem está disposto a cuidar bem dele. Segundo soubera, a relação dos dois não passava de um acordo entre pais.
Naquela noite, após se despedir do público cativo, despejando versos de amor, o forasteiro pegou os últimos trocados que conseguira no bar e se pôs à caminho da pensão. Logo pela manhã iria atrás do Leôncio. Era assim que um homem agia. Encará-lo-ia de frente, pois nunca fora um covarde.
Ao chegar à porta de entrada, antes de pôr a mão na maçaneta, ouviu o clique de uma arma engatilhada. Dobrou o corpo para trás, perscrutando o rosto desconhecido que lhe apontava o trabuco.
O tiro se fez ouvir por toda a vila. Evelyse, enquanto preparava a mala com suas roupas humildes, sentiu-se paralisada. Suas mãos tremeram quando a visão turvou. Seu coração lhe dizia aquilo que já desconfiava. O Juca, que se encontrava com a mão na trava da porta do bar, escancarou-a. Ainda teve tempo de ver um cavalo em disparada, erguendo poeira ao pegar a estrada que deixava a pequena vila. Correu até a pensão e lá estava o forasteiro caído. A viola se calara para sempre. Em pouco tempo o corpo fora rodeado pelos amigos que ali ele fizera. Os gritos de dor da enamorada foram ouvidos, após alguém lhe confirmar o fato.
Quando o corpo do jovem cantador foi enterrado, e a viola pendurada na pequena cruz de madeira, Evelyse gritou e amaldiçoou o dia em que conheceu Leôncio, sentindo o seu coração sangrar.
Da moça de olhos morenos e lábios cheios, só restou o olhar vazio e distante. Da cadeira na varanda, de fronte à praça, ela às vezes sorri calada. Nesses momentos, apenas o espera. Há que diga que nas noites quentes de luar é possível ouvir os arpejos de uma viola. Então os olhos dela se tornam luzidios e o vulto do violeiro é visto na pequena praça.
O destino de quem ouve o violeiro é segui-lo. E o primeiro a ouvi-lo foi o próprio Leôncio. Nesse dia ela gargalhou por um bom tempo, lá de sua varanda, sentindo-se vingada, até se calar novamente. Evelyse ainda se encontra no mesmo lugar, esperando que o próximo arpejo se torne uma serenata para ela. Talvez, quando esse dia chegar , ela possa se juntar a ele. Dançarão ao luar e jurarão amor eterno.
Enquanto esse dia não chega, nas noites quentes de luar, há apenas uma janela que se mantém constantemente aberta na pequena vila mineira.