MARINA, UM CONTO ENTRE TERRA E MAR

Desde a grande duna, passando por sobre toda a areia fina daquela vila de pescadores até os pés da rocha vazada, todo vivente sabe (que “ela” não é daqui), que ela veio de muito, muito longe…

Sussurram ainda hoje quando ela passa. Comentam às vezes quando ela não está presente. Contam sempre secretamente o segredo de sua chegada, nas madrugadas, longe das luzes do vilarejo.

Dizem, em tom de suspense, que foi no amanhecer de uma noite invernosa, após vários dias de chuva, sem que se pudesse ver o azul do céu ou o brilho do sol, que ela surgiu junto com raiar do dia... A maré baixa a trouxe. Era a princípio uma crisálida finamente trabalhada com algas das mais distintas, vindas de todos os cantos dos sete mares. Por toda a superfície daquela estrutura via-se perolas incrustradas dos mais variados tons e cores. Alguns afirmam com veemência que se podia observar, em uma parte específica, o que parecia ser um bordado feito de fios de madrepérola, onde se podiam ver escrituras e desenhos até hoje indecifráveis.

Os primeiros a avistar e a se aproximar do objeto em forma de casulo, foram um grupo de artesãos hippies, que de tão extasiados limitaram-se a apenas admirar aquela maravilha, a uma distância respeitosa. Logo, atraídos pela magia daquele momento, veio vir um jovem casal de andarilhos, que haviam chegado de lugares diferentes e equidistantes, para ali se encontrarem individualmente, um com o outro e também com o seu próprio destino. Os dois, como que hipnotizados, se entreolhavam com risos nos olhos. A jovem mulher, instintivamente, se pôs a acariciar o casulo, ao que o mesmo veio a se desfazer como que por magia, revelando no seu interior uma encantadora criança, uma menina de pele clara como o dia e cabelos encaracolados como as ondas do mar. Os olhos do casal marejaram no mesmo instante, esboçando agora sorrisos largos em seus rostos. E foi assim que eles acolheram e levaram com sigo aquele bebê, para ser criado com todo amor que dispunham na então casinha que ainda seria construir naquela mesma vila.

A criança viveu por tanto, entre os filhos dos pescadores, em meio às brincadeiras, perigos e aventuras entre o mar desafiador e o aconchego das casas, quintais e ruas de frouxa areia. Desde cedo se percebia que a menina dividia seu precioso tempo de infância entre a imensidão solitária do mar e a proteção restritiva de seu lar terrestre. Na verdade, temiam muito mais os pais da jovem, pela miúdes das mentes do lugarejo que pela incerteza e vastidão imprecisa dos oceanos… Muitas descobertas, desafios e dilemas foram vividos intensamente ali.

Algumas vezes a garotinha desaparecia por dias. Quando isso ocorria, organizavam-se buscas por parte dos familiares, vizinhos e amigos. Embarcações eram lançadas ao mar, na tentativa secreta de comprovar o que muitos já desconfiavam. Alguns pescadores experientes, disseram certa vez, que em pleno alto-mar ouviram o sorriso inconfundível da menina. Chamaram por seu nome, mas tudo que ouviram foi o intensificar daquele riso radiante, e ao retornarem para o continente descobriram, como de costume, que a menina já se encontrava na casa dos pais a tempos, dormindo profundamente.

Todos sabiam: – Ela é diferente! Ela não é daqui! Ela veio de longe… Muito, muito longe… – Afirmações assim, encontravam certa compreensão justificável nos caminhos solitários que a mocinha frequentemente escolhia trilhar, pelas constantes “crises” de introspecção, pelo seu apetite voraz por peixes e frutos do mar, pela insistência exótica em combinar a cor verde com vinho tinto, pelo desejo desbravador, bem como por sua relação incondicional com as águas, sobretudo as salgadas. Tudo isso sempre intrigou os que a observavam ainda que a distância.

Com o passar dos tempos ela cresceu sob todos os aspectos, tornou-se uma belíssima jovem. Porém, sua atraente beleza, combinada a sua personalidade ímpar, associada ainda ao seu histórico a cerca principalmente de sua possível origem, a faziam cada vez mais semelhante ao mar, causando fascínio e receio ao mesmo tempo, principalmente nos homens mais desavisados.

Mas era ela agora quase mulher feita, e seus anseios assim como seus instintos e desejos a guiavam para fora do paraíso, era preciso e necessário que se fizesse o translado, a travessia dos fortes, o cumprimento da razão de se estar vivo, muito além de simplesmente ser/estar feliz, era fundamental que ela fosse e deixasse o conforto previsível de sua morada, muito embora ela nunca pudesse de fato deixar completamente aquele lugar, ela agora precisava ir. E foi assim, contrariando a todos, que em um fim de tarde alaranjado, lembrando à lendária Lílite, ela partiu para longe do éden, disposta a enfrentar o houvesse de vir.

Antes disso, porém, os profetas do sertão assim como as velhas bruxas do mar, bradavam aos sete ventos o que, por sua vez, estava por vir. Eram tremores de terra em pleno maciço semiárido brasileiro! Ameaças de tsunamis que inundariam capitais inteiras! Chuvas de granizos na terra do sol… Os mais místicos diziam que Poseidon, o grande deus dos mares estava furioso, que em momentos de cólera extrema, atirava seu tridente contra as rochas no fundo do mar, provocando inúmeras consequências na crosta terrestre. Houve até quem falasse em guerra entre os deuses e em fim de mundo. Foi então que os filhos e filhas de santo brasileiros, cientes de quão era difícil acalmar os deuses, decidiram recorrer a uma santidade divina mais próxima deste povo. Então, foi invocada a entidade feminina, que também é deusa dos mares, cujo nome é Iemanjá. Foi ela quem interveio astutamente junto aos outros deuses das águas, da terra, do fogo e do raio... Evitando um possível conflito entre as crenças humanas, conseguindo mais outra trégua, esta sem data para acabar.

Assim, a então jovem mulher distanciou-se do oceano… Cada vez mais e mais… percorreu primeiro o agreste, os sertões, os planaltos e as cordilheiras… até decidir desbravar as selvas impiedosas de concreto e asfalto. Ali ela também conheceu a solidão acompanhada das multidões e a variedade superficial que há nas vitrines que existem por toda parte.

Numa dessas paragens, dentre outras ousadias, ela cruzou algumas vezes com o seu futuro, mesmo estando ela ainda vivendo um presente. Era como se as forças que regem o plano dos vivos, a estivessem testando em seu poder de decisão quanto ao que estava por vir. E após alguns encontros e desencontros, por fim sucedeu…

Era nas praças, nas ruas, nos prédios e na virtualidade que eles impreterivelmente se encontravam. Ele, era o fruto da cópula do vento no ventre da Negra Rosa, o menino peregrino, o jovem paladino, o homem das mil resistências e o Dom Quixote dos moinhos de farinha. Já era ele neste tempo, o pai do filho da mão direita, da pedra da coragem e da pequenina defensora da humanidade. Pessoa de muitos ofícios, este preferia o bem semear-plantar-colher como costume principal seu, ele próprio considerava-se ao mesmo tempo faroleiro e timoneiro de seu farol.

O fato é que tendências conjunturais os aproximavam inevitavelmente e, muito aquém de suas meras vontades, que cresciam e avançavam como lava vulcânica, se resfriando com a água do mar para formar ilhas inteiras… estava desenhada a próxima etapa da saga da filha das águas.

Quando estavam juntos havia permuta constante e infinita entre os dois. Ela o acariciava docemente em seus dilemas, arrastando para as profundezas abissais do seu íntimo, tudo que dele era desprendível. E ele a oferecia tudo que tinha. Ou seja, seu singelo farol como abrigo, guardado mesmo sob forte e impiedoso sol.

E foi-se assim como hoje é… Ela vinha e levava e ele ia e trazia, ela linha e levada, ele tinha e fazia, de noite, de dia, trocavam-se um pelo outro, a revelia… tanto foi e tanto é que chegou ele certa vez a escrever para ela, sobre um encontro passado:

Para a minha Estrela do Mar.

Sobre tudo, ontem à noite, desde hoje quero entender. Num instante, olhava você e noutro não sabia de mim. Acho que foi antes do clarim que vi seu olhar no olho meu, de dentro do corpo que era seu. Tudo enquanto ciranda virava, adoçava, fervia e molhava...

Sobre tudo, ontem à noite, se quer sei como acabou. Se o tempo, voou, voltou… Melhor é repetir outra vez. Será resposta nossa nudez? Sou desde agora nu sempre, pronto a revolver seu ventre e misturar o que é espalhado… o doce, o quente e o molhado.

Assinado: O Seu Faroleiro.

O certo é que a partir daí, ela pôde seguir com melhor clareza. Indo percorrer todas as terras, singrar todos os mares, disseminando e contagiando a tudo e a todos com sua candura e resplendor. Pois agora a jangada fazia-se marina e Marina ganhava velas ao vento, sob toda atenção dos deuses e cuidados do seu faroleiro.

Desde então o que se viu e se vê é o sertão absorver o mar e o mar irrigar o sertão. Depois que o faroleiro trocou o timão de sua jangada pelo giro helicoidal do antigo farol, e que a filha das águas aprendeu a costurar as distâncias e a domar o tempo, tudo o que houve em seguida foi a emersão de um mundo novo, um lugar onde realidade e fantasia tem o mesmo significado, onde junto e distante não tem significado algum. Surgiu um lugar no tempo/espaço onde deixar de ser bom para ser melhor ainda, tem todo significado possível.