CARTAS A UMA JOVEM POETA
Já passava da meia-noite quando me vi diante das criaturas noturnas da mata. Tive um vislumbre de aves que voavam vida afora no sombrio e gélido céu de outono. O som da floresta velejando através do vento enquanto os lobos uivavam para a lua cheia. Eu podia ouvir as montanhas conversando com as nuvens enquanto a chuva lavava nossa terra depois de um longo período de seca. As flores dançavam com os pássaros da alvorada que cantavam ao redor das árvores. O povo da floresta acordou o velho rio que dormia ao som da canção dos Tupiniquins do Sertão.
A onça, uma velha conhecida, que caminhava sorrateira por entre a mata escura se aproximou e indagou-me:
– Jovem poeta, o que fazes aqui a essa hora da noite? – questionou-me curiosa. – Veio atrás do Velho Rio fazer-lhe perguntas sobre a vida?
– Sim, mas perdi-me enquanto cruzava a estrada de ferro onde repousa a maria fumaça da antiga Estação de Serra Talhada. Ainda bem que consegui chegar aqui. – respondi. – E quanto a você Îagûara?! O que fazes aqui a essas horas?
– Nós, guardiãs dessas terras, não dormimos quando o céu escurece! – respondeu-me. – Os povos da floresta descansam sob a luz da lua enquanto cuidamos da mata na plenitude de seu repouso. – Diga-me menina. Tens alguma curiosidade sobre o que se esconde na imensidão dessas estradas sem direção? – questionou-me gentilmente.
– Estou aqui porque procuro respostas para as minhas inquietações. – respirei fundo! – Ouvi falar sobre as coisas da natureza quando viajava por vilarejos longínquos. Aqui me encontro para conversar com a entidade suprema dessas águas. – disse-lhe com a respiração já ofegante.
– Visse as montanhas que falam e as flores que cantam. Já não te é suficiente? – questionou. – Já veio aqui tantas vezes e não encontras o que procura.
– Vim buscar as respostas que não encontrei outras vezes. – respondi ansiosa. – Os povos da floresta sabem mais do que eu. Preciso de respostas sobre a vida e a morte.
– E de que te adiantarias ter alguma resposta sobre a vida, jovem poeta? – indagou-me curiosa. – De que te servirias saber das coisas? O que mudarias com as respostas às suas indagações? Não deverias apenas te importar com o lugar onde estás?
Respirei fundo e Îagûara vociferou:
– Me permitas que te acompanhe para que não te percas por aqui!
Segui caminhando mata adentro e refletindo sobre minha conversa com Îagûara enquanto ela caminhava silenciosa e vagarosa ao meu lado. Não conseguia compreender o porquê de a vida ter levado meu grande amor. Precisava conversar com o Velho Rio, com as flores que cantam, as montanhas que falam... as árvores tão vividas e tão sábias. Mas de que me adiantaria? De que me serviria? Não posso trazer de volta o meu grande amor...
– Olá, jovem poeta! – ouvi alguém me chamar. – O que fazes aqui a essa hora da noite?
– Amary, quanto tempo não a via. Que bom te encontrar por aqui! – reagi com alegria ao ver a Árvore da Vida.
– Ah minha menina. – disse ela, calma e docemente. – Não achas que querer descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais?
– Como sabes de minhas indagações Amary?
– Esquecestes que sou a Árvore da Vida, minha criança? suspirou. – Não há nada que eu não saiba sobre os segredos da nossa existência.
– Podes então responder minhas mais profundas inquietações? Preciso de respostas! – respondi-lhe enquanto as lágrimas escorriam pelo meu rosto.
– Ora, menina. De que te servirias saber o que tanto procura? Poderias alterar o passado? Trarias de volta teu grande amor? – Indagou-me, tão cheia de sabedoria.
– Ah, Amary. Não, não mudaria nada. Sequer traria de volta quem eu tanto queria... mas ao menos eu saberia o porquê de sua partida.
– Não posso trazer-te as respostas que tanto procuras, jovem poeta! Assim acabaria todo o mistério da vida! E que sentido teriam as coisas então? De que te servirias saber tudo? De que te servirias viver aqui nesse plano, sem todos os mistérios que circundam nosso existir?
Emudeci, logo depois despedi-me e segui andando pela mata. Se nem Îagûara e nem Amary podiam me dar as respostas que tanto procuro. Então, quem poderia? Os povos da floresta me diriam o mesmo, me questionariam sobre as coisas da vida, me diriam que quero saber demais...
– Agora que já tens a resposta da Grande Árvore... vamos seguir caminhando! – Disse Îagûara!
– Psiu, você aí. – ouvi alguém me chamar mas não vi ninguém!
– Jovem poeta, que prazer em conhecê-la! – disse aquela voz aveludada mais uma vez.
– Onde está você que não posso ver? – disse-lhe, desconfiada.
– Olhe para cima e vais me ver melhor! – respondeu alegremente.
Um beija-flor-de-gravata-vermelha.
– Boa noite, belo pássaro da floresta. De onde me conheces? – indaguei.
– Ora, todos te conhecemos aqui. Nós aqui da Floresta sabemos tudo!
– Como se chamas?
– Sou Gûyra, da Terra das Aves da Cotinga, ao norte do morro dos ventos uivantes.
– Beija-flor, tu que voas e beijas as flores, pode dar-me respostas para os meus questionamentos?
– E de que te servirias saber das coisas? O que mudarias em tua vida? – me questionou.
– Se nem você, nem Îagûara e nem Amary podem me trazer respostas, então, quem poderia?
Segui caminhando pela mata, ouvindo o silêncio dos pássaros e o canto solene das pedras. Fui atrás das velhas montanhas...
– Boa noite Apuã.
– Jovem poeta, o que fazes aqui outra vez? – perguntou-me serenamente.
– Vim atrás de respostas para as minhas perguntas!
– Queres saber o porquê de a Vida ter levado teu amor? – questionou-me já sabendo o que viria pela frente.
– Ah, como eu queria! Como eu queria!
– E de que te servirias ter as respostas de algo que não podes mudar, minha menina?
– Ao menos saberia, velha montanha, ao menos saberia...
Îagûara seguiu ao meu lado com seu instinto protetor. Nem ela, nem Amary, nem Gûyra, nem Apuã... quem poderia então me trazer respostas sobre a vida? Vou procurar Apoena, talvez ela possa me ajudar! Caminhei mais uma vez com a luz dos vagalumes iluminando meu caminho na mata escura.
– Apoena, Apoena... que bom que vos encontrei!
– O que queres aqui? – murmurou a Velha Bruxa da floresta.
– Vim da cidade procurar respostas para as coisas da vida! – respondi já cansada de tanto caminhar...
– Ora, minha menina. Já não te bastas o céu, e o sol, e as flores, e as árvores, e os montes... já não te satisfazes mais viver o mistério do universo e da vida sem que precises compreendê-los? De que te adiantarias saber o porquê das coisas inefáveis? – disse Apoena, me deixando confusa e sem direção.
– Quero saber, velha amiga, por que levaram meu amor? Pra tão longe, tão distante, onde meus olhos não podem ver?
– Ah, jovem poeta. Se soubesses quanta sabedoria existe em não saber das coisas. Quanta completude existe em não compreender o que não podemos explicar...
Respirei fundo. Andei de um lado pra cá e coloquei a mão na cabeça como quem não entende nada e questionei:
– Apoena, se não posso compreender os mistérios da vida, o que faço então com a minha inquietação? – indaguei-a enquanto enxugava minhas lágrimas e me consolava com Îagûara.
– Ah, menininha, se você soubesse quantos humanos nesse mundo afora se encontram nesse mesmo lugar. Não lhes cabe questionar... mas já que estás aqui na floresta, tenho certeza que encontrarás refúgio para tuas aflições, mas não busque por respostas, apenas viva as perguntas, o mistério das coisas.
Continuei caminhando com Îagûara pelo escuro da mata até que encontrei com o povo da floresta. Estava claro, não havia muitas árvores aglomeradas naquela região, e era noite de lua cheia. Vi o luar refletindo na água alertando-me que ali estava o Velho Rio. Aproximei-me:
– Boa noite Velho Rio. Vim da cidade procurar respostas sobre a vida mas acho que já estou cansada. – afirmei enquanto bocejava.
– Jovem poeta, que prazer tê-la em nossa casa. Já fui informado por Apoena de que estarias aqui. Mas me diga, por que te afliges tanto em querer saber das coisas? – questionou o Velho Rio.
– Ah, grande entidade da floresta... vim atrás de respostas! Estou confusa e perdida...
– E por que pensas que deves entender as coisas da vida? Por que queres saber de tudo se a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas? – Respondeu o Velho Rio, suave e sereno.
– Ah, Velho Rio. Não entendo porque a vida levou meu amor... e isso me entristece por inteiro!
– Desde que aqui chegastes, não visses tantas coisas sem explicação pelo caminho? As árvores, os montes, as flores, os pássaros, as criaturas da noite (...) Devias olhar para o mundo e se encantar com o mistério!
– Ah, Velho Rio! – suspirei! – Se soubesses como tua sabedoria me conforta!
– Agora vá, jovem poeta! Tens que andar floresta adentro e floresta afora para ir para casa...
Despedi-me dele e fui caminhar pela mata com Îagûara e outros animais. Avistei algumas corujas, vagalumes, morcegos e lobos... e também tinha flores, e cogumelos gigantes, e montanhas estrondosas... tinha gente pequena que morava no tronco das árvore e as Luzes da floresta guiavam as borboletas para que não se perdessem na escuridão. Minha velha amiga onça me levou de volta até o outro lado do trilho que separa a floresta da cidade. Ela há de proteger a mata e guardar os segredos da vida. Continuei caminhando sem entender nada! É que o mistério das coisas levou meu amor. Meu amor me trouxe o mistério das coisas...
Você consegue ouvir Îagûara? É a canção do universo que adormeceu a noite para que o dia pudesse nascer outra vez...
Essa é uma história de ficção, qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência...
LEGENDA
Amary: Árvore frondosa em tupi-guarani
Apoena: “Aquele(a) que vê mais longe” em tupi-guarani
Apuã: Montanha em tupi-guarani
Cotinga: Termo para designar um pássaro colorido em tupi-guarani
Gûyra: Pássaro em tupi-guarani
Îagûara: Onça em tupi-guarani
LEGENDA
"IAGÛARA" ERA O NOME DE UM BICHO DE ESTIMAÇÃO DA MINHA VÓ
“A VERDADE CHEGA A NÓS COMO UM SENTIDO SECRETO DAS COISAS”: TRECHO DO POEMA “A PERFEIÇÃO” DA POETA E ESCRITORA BRASILEIRA NASCIDA NA UCRÂNIA, CLARICE LISPECTOR (1920-1977) CURIOSIDADE: SEU NOME DE NASCIMENTO É CHAYA PINKHASIVNA LISPECTOR
“APENAS VIVA AS PERGUNTAS, O MISTÉRIO DAS COISAS” FAZ REFERÊNCIA A UM TRECHO DO TEXTO “CARTAS A UM JOVEM POETA, DE RAINER MARIA RILKE
“DESCOBRIR O VERDADEIRO SENTIDO DAS COISAS É QUERER SABER DEMAIS”: TRECHO DA MÚSICA “SONHO DE UMA FLAUTA” DO GRUPO MUSICAL BRASILEIRO “TEATRO MÁGICO”
“JÁ NÃO TE BASTAS O CÉU, E O SOL, E AS FLORES, E AS ÁRVORES, E OS MONTES” FAZ REFERÊNCIA AO POEMA “HÁ METAFÍSICA BASTANTE EM NÃO PENSAR EM NADA” DE ROBERTO CAEIRO, HETERÔNIMO DE PERNANDO PESSOA
“MORRO DOS VENTOS UIVANTES”: ROMANCE DA ESCRITORA E POETA BRITÂNICA EMILY BRONTË (1818-1848)
“NÃO DEVERIAS APENAS TE IMPORTAR COM O LUGAR ONDE ESTÁS?” FAZ REFERÊNCIA AO POEMA QUE FALA SOBRE A VIDA E A MORTE “PARA ALÉM DA CURVA DA ESTRADA”, DE ALBERTO CAEIRO, HETERÔNIMO DO POETA PORTUGUÊS, FERNANDO PESSOA (1888-1935)
“SE SOUBESSES QUANTA SABEDORIA EXISTE EM NÃO SABER DAS COISAS” FAZ REFERÊNCIA AO POEMA “SABEDORIA É NÃO ENTENDER, DE CLARICE LISPECTOR
PRIMEIRO TRECHO DO CONTO: TRADUÇÃO NÃO LITERAL DE “COLORS OF THE WIND”, UMA PROSA POÉTICA AUTORAL
TÍTULO: O TÍTULO FAZ REFERÊNCIA AO TEXTO “CARTAS A UM JOVEM POETA”, DO POETA E ESCRITOR AUSTRÍACO RAINER MARIA RILKE (1875-1926)