O Livro Tombado
As últimas palavras de Irineu à esposa foram as seguintes:
- Clara, posso desligar o televisor?
Ela não replicara pela primeira vez. O marido espantou-se pelo silêncio da mulher. Talvez estivesse ela profundamente mergulhada - talvez perdida - nas páginas de Charles Dickens - a quem lia fervorosamente. O primeiro movimento de Irineu foi dirigir-se à tevê e desligá-la nos
botões - pois sempre Clara olvidava o controle remoto entre as dobras da velha poltrona.
Pela primeira vez Irineu espantara-se com a expressão da esposa: o livro tombado sobre a perna esquerda, seus olhos vazios e mortos pousados no infinito e os óculos embaçados cujas lentes já não brilhavam com a luz. Clara estava morta. Irineu aproximou-se da poltrona e passou-lhe os dedos entre os cabelos brancos e a cabeça já fria da mulher.
Quis chorar copiosamente, mas não conseguiu. Estaria ela a brincar consigo? Aquela expressão cadavérica não podia substituir os gestos vívidos de Clara. Aquilo não era ela. Ela já não era mais. Estava ausente, embora seu corpo ainda repousasse, com os olhos a fitar em silêncio seu próprio esvaecimento.
O livro de Dickens, dessa vez, como nunca antes ocorrera, escorregara do colo de Clara e atingira o chão. Antes de fechar-se com a capa virada ao chão, deu para observar a página noventa e oito - que desaparecera tal como Clara. Fechara-se sob uma incógnita inexplicável. Os primeiros esboços de lágrima começaram a escapar dos olhos de Irineu.
Deixou-a só, como nunca antes fizera, para chamar uma ambulância. Cogitou se uma ambulância mesmo ou já o IML. Podia ter esperança? O vazio da solidão já começava a
arrebatar-lhe, mesmo estando a presença morta de Clara a esperar e a fazer suas últimas divagações sobre a poltrona velha e esburacada - que um dia fora de sua avó.
Irineu, enquanto tentava achar recordar num número que ligar, pensou naquela histórica poltrona herdada pela esposa: a avó desta ali falecera, enquanto fazia o que mais gostava: crochê; a mãe dela também ali falecera, sentada a fazer o que mais lhe apetecia: a bisbilhotar pela última vez o farfalhar das folhas amarelas de um ipê que ficava na calçada. Ora, como que
cumprindo a sina de sua família, Clara também vira sua existência findar a fazer o que mais gostava: a ler Charles Dickens.
Quando finalmente encorajou-se, ligou ao IML e pouco viu o movimento daqueles homens em sua casa. Não viu retirarem o corpo de Clara, enrolado sob uma manta térmica, pela última vez. No velório, Irineu era só silêncio. Respondia às condolências dos familiares e achegados com um sorriso triste e vazio.
Ao volver à casa, tomou coragem e pegou o livro tombado do chão. Abrira na página que vira fechar no chão. Por dias fez o ritual da esposa. Quando fechou a última página de Moby Dick,
não resistiu: chorou copiosamente.