GAÚCHA
Para Bruna.
Talvez aquela não fosse a melhor das horas. Mas já estava ali. Não teria coragem uma segunda vez. Bateu na porta. Deu um passo atrás. Encheu os pulmões. Suas mãos suavam. As pernas tremiam. Mas já estava ali. Não teria coragem uma segunda vez. Soltou todo ar pela boca. Viu o trinco mexer levemente. Os lábios tremiam assim como as pernas. A porta sendo aberta. Um calafrio percorreu sua coluna. Mas agora não havia volta. Já estava ali. Não teria coragem uma segunda vez.
- Pois não?
Reconhecer a voz não trouxe conforto. Só aumentou a tremedeira. Boca seca. Olhos vidrados. Ela franziu a testa.
- Posso ajudar?
-Sou o Jorge.
Falou baixinho. Quase um sopro. Pigarro. Sem reação. Ela olhando. Congelada. Talvez surpresa. Não dava pra saber. Seu rosto ainda era o mesmo. Ela fechou a porta atrás de si. Os dois a dois passos. Ela olhou pra cima. Olhos azuis o fitavam. Não deveria estar ali. Mas não teria tido coragem uma segunda vez.
- Como você me achou?
- Perguntei por ai.
Agora sua voz estava mais perto do normal. Ainda inseguro. Sem jeito. Com medo do que ela estaria pensando.
- Um. Tendi. Vem. Entra.
Virou e abriu a porta. O cabelo era curto. Na altura do ombro. Com as pontas repicadas. Não foi o que esperava. A reação. Parou e virou na ponta dos pés.
- Jorge. Vem logo. Tá frio ai.
Era como acordar de um transe. Deu o primeiro passo. Coração acelerado. Adrenalina. Sorriu sem sorrir. Entrou. Fechou a porta. Seguiu os pés descalços que o guiavam por um corredor.
- Quer um chá? Cabei de fazer.
- Quero.
O corredor acabou numa sala. Pé direito alto. Grande. Um sofá com muitas almofadas. Como casa de vó.
- Senta ai que vou pegar.
Sentou. Afundou no sofá. Envolto em almofadas. Sorriu de verdade agora. Com os lábios e tudo. Ainda tremia um pouco. Deu câimbra nas pernas. Fotos dela em todas as mesas e paredes.
- Você quer com ou sem açúcar?
Gritou de algum lugar escondido. Sua voz era conforto. Familiar. Não havia mais medo. Só ansiedade.
- Sem.
Queria conversar. Contar a que veio. Sentia-se confiante. Cheio de coragem. Coisa que não teria uma segunda vez. Voltou com o chá. Uma caneca grande de porcelana. Com um barbante saltando na lateral. Segurou com as duas mãos. O calor era reconfortante. Não sabia que o Sul era tão frio.
- Tu é bonito.
Ficou sem jeito. Não esperava que fosse assim. Ela sempre teve muita atitude. Mas ele que queria falar. Foi ele que apareceu do nada.
- Sou nada. Só sou quando me conhecem.
Sorriu. Um sorriso doce. Combina com os olhos azuis. Com o cabelo acima do ombro também. Sentou no sofá. Em cima das pernas. Pra esquentar os pés descalços talvez. O moletom cobrindo os braços. Mas as pernas desprotegidas. Vai entender.
- E aí. Me conta como tu chegou aqui. Passeio? Já sei. Veio me ver!!?
- Vim te ver.
Sorriu de novo. Doce. Como pode? Não sabe. Só sabe explicar assim. Por metáfora. Olhar nos olhos era difícil. Era como ser inundado pelo mar. Ondas violentas. Pesadas.
- O que tá achando, então?
- Do que?
- De mim né, guri.
- Não sei ainda. Não sei explicar. Você é...como o mar. Eu acho.
Levantou e sentou do lado. Deixou os pés pra baixo. Pequenos e delicados. Sem esmalte.
- Como é isso?
- Não sei explicar.
- Deixa disso. Tá calado demais.
- Sou tímido. Você sabe.
- Mas veio aqui me ver.
Sorriu. Doce. Sem som. Só com os cantos da boca. Com os lábios finos.
- Quase fui embora. Não teria coragem de novo.
- Por que?
- Sou tímido.
- Tendi. Quer saber o que tô achando de ti?
- Quero.
- Medroso. Tá se tremendo todo. Antes pensei que era o frio.
Sorriu. Com som. Alto. Ficou assim um tempo.
- O mar é infinito. Se perde no horizonte. A gente sabe que uma hora acaba. Mas nunca se vê o fim. Ele rebenta com força nas encostas. Não dá chance pra reação. É calmo e silencioso. Esconde coisas bem profundas. É azul e é verde. Pode ser escuro também.
Ficou seria. Olhos vidrados.
- Agora tu ta parecendo tu. Eu disse, é lindo.
- Só quando me conhecem.
- Que bom que te conheci então.
Corou. Abaixou os olhos. Fixos nos pés sem esmalte. Tão delicados.
- Você não ficou chateada por me ver aqui? Apareci do nada. Não ficou com medo?
- De tu? Eu não. Reconheci tua voz de primeira. Quase não deu pra ouvir, na verdade. Mas a tua eu sempre vou lembrar.
- Que bom.
Ainda não conseguiu falar o que queria. Uma hora a coragem iria se esvair. Tinha que ser logo. Rápido. Fechou os olhos.
- Que foi, Jorge? Tá tudo bem?
- Sim.
- E porque essa cara de dor?
- Me responde uma coisa?
- Fala.
As pernas voltaram a tremer. Lábios secos. Calafrio na coluna. Virou de frente pra ela. Era difícil olhar direto no mar azul daqueles olhos. Estavam silenciosos. Profundos. Pegou a mão dela. Quente. Talvez por causa do moletom. A dele gelada. Mesmo segurando o chá. Suada.
- Casa comigo?
- Caso.
Sem duvida. Só a resposta. Como se tivesse escolhendo chá. Com ou sem açúcar? Com açúcar. Como as ondas que rebentam onde querem. Sem precisar explicar. Mudar de direção. Parou de tremer. Parou de suar. Tirou a aliança do bolso.
- Era da minha mãe.
- É linda. Põe no meu dedo, vai.
Sorriso doce.
- Se você dissesse não eu ia jogar ela no mar.
- Por quê?
- Não tenho outro amor na vida. Nunca vou ter.
- Tu não pode saber, Jorge.
- Eu sei. Juro que sei.
- Então eu acredito.
O mar estava calmo agora. Azul. Limpo. Sem ondas. Só silencio. Sossego.
- Tu não vai me beijar não Jorge?
E foi ela que beijou. Antes de qualquer resposta. Os lábios de sorriso doce. Também era doce o beijo. Como sonho. Daqueles bons de sonhar. De comer. Com goiabada dentro. Não só o mar. Mas o beijo também: eterno.
- Eu te amo, Jorge.
- Eu sei.
- Tu me ama?
- Não sei explicar o que sinto.
- Como assim?
- Não sei. Só não sei. Mas é como o mar. Infinito.
- Isso é amor, Jorge.
- Então te amo.
Por Rui Santos.