O último mongol – J B Pereira - reescrito por mim em 25/05/2023. E conheça, também, O Califa Romance (2012)

Conheça, também, meu livro: O CALIFA ROMANCE

Sinopse

Já posso partir deste mundo. Vou despedir-me de todos: dos que me amam e dos que me desprezam. Devolvo à terra o que dela recebi. O genoma fica nas entrelinhas dessa obra. Não tentem me compreender e me reduzir às personae que elejo em meu lugar. Somos deveras paradoxais. Peço sua prece e uma mirada estrábica. Perdoem-me as fraquezas, sem as quais não se vê meu ser. Visite meu túmulo e leia minha obra. Se a lâmpada apaga; em outro lugar, seu candelabro está disponível a outra que vier.

Autor: J B Pereira

Formato: rtf

Tamanho: 108 KB

Ano: 2012

Enviado por: J B Pereira

Enviado em: 22/01/2019

Classificação: seguro

https://www.recantodasletras.com.br/e-livros/6557148

O último mongol – J B Pereira

Agostinus Boscovita para certo concurso em Minas Gerais – pseudônimo de J B Pereira – meu conto antigo dos anos 1990, agora sendo digitado por mim em 25/05/2023.

Jaguariúna, SP, sol de inverno, com o sol forte lá fora e o cantar do bem-te-vis felizes!

Obs.: Esta produção literária aqui é independente do livro: El último Mogol: El ocaso de los emperadores de la India 1857, de Dalrymple, William em: https://www.marcialpons.es/libros/el-ultimo-mogol/9788412381726/

O último mongol – J B Pereira

A chuva caia lá fora, e eu aqui pensava a trajetória de um desconhecido que fluía em mim.

Certa vez, não sei se foi maio ou dezembro de Nissan, encontrei um Bem-Salon, um dos últimos mongóis que veio a mim impressionar sobremaneira, porque ele procurava como eu algo mais, um “plus” que desse sentido à opaca existência humana de um errante nômade.

Fugira, sim, porque, certa noite, vira coisas demais, por isso fora perseguido deveras.

A tristeza caíra-lhe sobre a alma. Nada o acalmara nesses anos a fio. Tivera uma visão de cavaleiros exterminadores, um apocalipse: seres alados invadiam a Terra. Ou talvez isso seria uma fobia herdada desde a meninice quando da fuga de sua família de uma casa em chamas.

Um crime levava a outro rumo para um homem cuja velhice se tornara inevitável e enfadonha. Não conseguira decifrar o enigma de seu sonho, mas sua revolta o conduzira à violência de muitos inocentes.

Ele passou, então, o deserto da Arábia ao encontro de um tal Canaã. Não era judeu, nem simpático a esses exóticos semitas; se para estes os do extremo oriente não passam de pagãos quanto filisteus e moabitas, para a Mongólia judeus não parecem tão interessantes, nem sequer um povo promissor.

A chuva continuava a cair, não mais sobre o corpo de nosso homem. Imagine as cores de uma filmagem, caro e curioso leitor?! Se falasse às montanhas de Qumrãn, hoje silenciosas e desertas cavernas deserdadas – lá da região do Mar Morto ou Salgado, é certo que gritariam vozerio absorto em dores, que o ancião traz no âmago de sua frágil existência. Será que tu acreditarias nesses uivantes ecos noturnos que atucanam o coração de um oriental guerreiro em extinção?

Bem-Salon tinha uma estranha admiração por essas paisagens, sentir-se-ia renovado vale de suas buscas. Quais? Por quê?

Tente, assim, descobrir, nosso leitor, querida leitora, se for capaz? Se lhe parecer enfadonho tais linhas, deixe este manuscrito de lado ou pule ao fim dessa trama.

Quanto à infância dele, era-lhe sobeja, a mãe contava-lhe a fé e as aventuras de um povo do qual ela descendia. Caso raro, custou-lhe o preconceito e uma vida inquieta por tantos reverses, como se fora reduzida à forasteira em um país hostil. Dizem que não era bela para seus coetâneos, porém sábia se portou... Até morrera ainda jovem e o pai de Bem-Salon só ficara com o garoto pequeno.

Bem-Salon recordava-se de seus dez anos, porque vagava com seu pai de vila em vial para sobreviver e o retrato velho da mãe nova tornara-se sacramento ou sinal indelével de coragem, saudade e lágrimas. Estava no bolso interno do casaco paterno corroído pelo tempo, frio e gelo. Tudo é tão vivo à memória que o tempo tenta apagar!

Este Bem-Salon cujas cãs se altaneiam qual atalaia em destaque na savana, cuja neve o surpreende no difícil serviço de auscultar a perigosa noite, agora também perdia suas raízes ou parte dela a fim de descobrir o segredo de uma vida dura, sofrida e errante.

Correu à sinagoga, ouviu gente de toda espécie, inqueriu livros e doutos, porém a resistência dele era maior, uma fusão de interância e revolta, autopiedade e medo povoavam seu interior. E dilacerava a teimosia de uma fé distante e tímida não tivera fôlego para atenuar o fagulhamento de incidentes a ameaçar a paz de uma consciência de estrangeiro.

Aprendera que “o homem honesto na palavra e atitude não faz curva”: que deveria ser forte, mais corajoso que suas vãs inclinações ou seus instintos..., mas não soubera se conter, uma vez que nesse instante as imagens materna e paterna se misturavam às lágrimas que mourejavam seu olhar avermelhado pela areia do deserto, embora fossem tão lindos e azuis os olhos de quem lembra um mito, um deus, um Jesus, conhecido por “o Nazoreu”. Chorara a noite toda a solidão e o receio de morrer sem reparar males praticados outrora.

Como lhe custava perdoar a si, mais fácil a outros. Àquela tarde, a tempestade prendera-o num oásis perto de Ramá. Aí nos conta a tradição oral: inimigos de Israel matara os filhos de Raquel, que, chorosa, rechaçara consolação. “Porque, eles não mais existiam”. Sim, não mais existiam que lhe devolvesse seus filhos amados.

Outrossim, era essas imagens a fluir em mim ao ver tamanha dor do peregrino do deserto, vindo da Mongólia. Era Bem-Salon: angustiado, solitário e apátrida... Dessa forma, ele se sentia... Sua errância se parecia ao abandono de si... Semelhante a ninguém se solidarizar àquele abandono-grito que o Messias deixou escapar no alto do patíbulo; talvez todos os homens assim, mais ou menos, experimentassem o seu nada - a solidão radical de Prometeu na tentativa de inventar o tão contraditório dos seres: o homem. Ele roubara de Zeus no pináculo das moradas míticas o Fogo. Agora o Fogo dos Titãs. Em decorrência dessa ousadia, Zeus mandara o abutre feroz ou águia impiedosa devorar, rasgar-lhe as entranhas expostas pela manhã... E a dor mergulhava Prometeu no lamento ou grito de raiva o dia todo. A rapina ave diga à posteridade de sofreguidão prometaica, se ainda quisesse explicar ao leitor e à leitora, aqui, presentes na leitura dessas linhas. Era uma violência colossal para o gigante rebelde e perigo para Zeus. Prometeu deu ao Olimpo banquete digno de deuses, embargou-lhes tanto que dormiam... E aproveitou a deixa para furtar o Fogo do Céu. Atos premeditados e Zeus arrependera ter feito ou contado com os colossos para vencer Cronos, o tirânico pai de Zeus. Cronos tem tempos imemoráveis e caóticos, engravidava a fértil Terra. E abandonava seus filhos todos. A mãe instigou os filhos para matar o pai. Zeus liderou tudo! E pegou os testículos do Cronos e lançou ao mar. Daí surgem criaturas de toda forma e cor. Até da concha a beleza de Atenas com suas deidades performosas.

Retornemos ao sacrifício ou punição contra Prometeu. A águia saciava sua fome alimentando-lhe das vísceras de Prometeu. Dessas em sangue abundante, o grito ecoava ao mundo inteiro. E as feridas do lado aberto, cicatrizavam... Para o outro dia cedo, a águia avançar de novo. Era a condenação de Zeus ao pecado ou harmatia ou castigo ao mal ou desobediência de Prometeu. Os deuses não deixavam por menos, irritado pela manopla ou artifício da festa do Olimpo. Se não é o grego mito a explicação da dor, da criação frágil da humanidade, nossa natureza corrompível, nossa mortalidade, nossa contingência original..., era uma das tantas narrativas da humanidade em tentar desvendar o segredo do mal e da dor do mundo. Até que se nos viesse em paixão de Jesus, a tentativa de Javé em restaurar a criação dominada pelo pecado e maligno. E o povo teimoso, judeu errante, vagava o deserto por 40 anos, depois de fatos brilhantes de sinais contra o Egito. E Paulo rima com tudo isso, para enfatizar que é uma libertação dos filhos de Deus, cuja natureza clama dores de parto por se resgatar do mal que entrou no mundo pelo pecado das origens de Adão e Eva com a sedução da serpente má no perfeito e puro Éden, morada suave cujo jardineiro era Deus mesmo.

Como nos é penosa a existência sem o amor, sem o perdão, sem os outros! ...

Naquela noite dormira com seus queixumes e suores febris. Ben não ousava desafiar o destino, a Deus. Ele não se configurou tal Jó fizera depois da rejeição de sua lepra e da mulher a incomodar demais em acusações. E não parasse por aí, Jó repelia os 3 amigos a desafiar seu modo de vida para ver-se pecador... Agora dormia Ben! Era o cansaço da dura viagem, comigo aí a escutar... Desabafara, instante de seu único conforto na solidão de anos e, talvez, o fim temporário da dor ou trauma.

Quando se alistou no exercício mongol, ainda jovem, homem forte e insolente, cegou-se pela fama ou carreira militar: suas mãos revestidas de poder golpeavam vidas e forjavam crimes e prisões, ameaçam inocentes e camponeses... Com tiranos, cúmplice se tornou. Desatavam submissões e corrupções, das quais a tirania lhe impôs e nele reinou.

Agora fugia de si e de seus mortos, remorsos, fobias e lamentava tanta tirania. Da solidão e da autopunição, enveredara-se pela culpabilidade e remoía seus fantasmas sem luz ao fim de túnel. Sim, perdera a alegria de vida, em última análise, perdera a vontade de viver, não obstante contar a cada ano o peso das luzes e sóis que nasceram e ocultavam seu pensar, seu penar, sua diáspora com e como tantos outros guerreiros ao fim de império perverso. Nada, contudo, podia aliviar sua dor moral e a tristeza do seu olhar sobre si e o mundo... Era um quadro desesperador... Medo de morrer e não encontrar a solução ou resposta de sua contradição existencial.

Sim, nessa terra da Judeia, antes passara pela Galileia e Samaria, agora vinha ao encontro do mito ou místico confortador. Ouvira dizer de sua mãe a figura de um líder diferente, não insolente... Ora se velava nesse caminho, ora a via se revelava intransponível, para o forasteiro Bem-Salon. Era a luz entre ventos, a candeia de regeneração à sua atra amargura.

Pela manhã, não havia mais chuva, nem tempestade de areia, subira a uma elevação, talvez para ver o Horeb, de onde, de um lado, avistara vozes humanas e poeira de rebanhos típicos da região; de outro, o cheiro ruim de incêndio de uma vila próxima. Como se desatara a chorar à tarde, resolveu descer logo até o vale do Hebron, terra fértil dos pastores e agricultores. Para sua curiosidade de homem fugidio, vira uma pastora a apascentar o rebanho. Seu nome era Débora, em hebraico: “doce como favo de mel”. Realmente, o encontro com a pastora, fez-lhe bem, devido à beleza e simplicidade forte de uma mulher naquelas mediações desérticas.

- Jovem, dê-me de sua água, porque sede tenho eu! Disse Bem-Salon, de modo respeitoso e cauto.

- Não só isso, Senhor, me venha à tenda de meu pai Amur para descansar e comer o pão nosso. Vejo-o como peregrino e seu sotaque é diferente do nosso aqui. Como aprendeu a minha língua? Enfatiza, finalmente, a donzela.

- Ah! Sim, foi aos pés de minha mãe que aprendi.

Depois de alguns momentos de silêncio entre ambos, que se observavam, após terem andado muito rumo ao salgado mar morto, toponímico ponto da Palestina, a curiosidade sutil da moça aguçava-se sobre o estranho homem. Os orientais têm seus costumes de conversar com mulher em lugares públicos. Mas, a circunstância do deserto e longe dos olhares dos outros facilitava a conversa esparsa entre eles, sem interrupção e maldade. Porque primeiro vem do diálogo por parte dele, fruto da necessidade de água, depois a curiosidade de se conhecerem pelo caminho, por parte dela.

Ficara ali algum tempo. A intenção de Bem-Salon era seguir viagem até Alexandria, Egito, para encontrar o filósofo de sua juventude. Deste modo, aceitava cumprir o percurso da Crescente fértil – de Ur da Caldeia ao Egito, perambulando pela Arábia e Palestina.

Caríssimos leitor e leitora, é necessária essa pincelada da geografia e o respeito dos costumes, para entender o modo de viver dos moradores dessas regiões... Desse modo, o diálogo entre Bem-Salon e Débora afeiçoam ao nosso propósito: a itinerância e os encontros de diferentes culturas e suas peculiaridades.

São peças ou figuras do jogo da vida a arte de encontros e desencontros, perdas e ganhos...

Coloque-se na pele de Bem-Salon! Ora destemido, ora medroso... como todos nós ao longo da nossa frágil existência e percursos no vale de lágrimas. Ausculte-lhe o ritmo pungente de suas buscas e receios... Tais questões serão suas ou não? Entretanto, escute-o e vá com ele até aonde puder. Se tiver você, caro leitor e destemida leitora, paciência e sabedoria, entenderás sua questões e queixumes mais profundos. Faça-os seus, sim. Essa é a condição sem a qual a narrativa ficaria enfadonha, sem sabor, sem saber seu fulcro.

Contudo, leitor e leitora, não se fixe no exterior das personagens e nem se perca nas paisagens. É preciso ir mais fundo, às intencionalidades, pelo menos, no jogo entre os atores desta história. Cremos que fica mais instigante tal proceder de nossa leitura ou recepção deste conto.

Se não se fixa na particularidade, avança na global visão dos fatos e personas, há de desvendar a direção pela qual pretendemos conduzir aos que leem nossa história.

Todos queremos a verdade, o sentido da vida terrena, entender o clamor universal das aflições humanas.

Poder-se-ia aquele filósofo dar que luzes ou entendimento a quem já vivera tanto e não apreendera as sinuosidades de seu próprio itinerário?

A companheira da vida muitas vezes não a alegria e nem a felicidade, mesmo que todos queiram isso. Nesse ínterim, Bem-Salon encontrara o agrado de uma pastora, ficara na tribo dela por um ano. Tornara-se um entre tantos daquele lugar. Vira o velho pai cego e a velha reumática esposa a formarem como um dos casais do acampamento. Era o que gostaria de ter por um tempo, uma trégua em sua crise pessoal.

Veja, caro leitor e nossa leitora, as inquietudes de sua alma fluíram novamente e juntas lhe palpitavam no calor da sua busca interior e da face rosada; era o coração a ouvir o doce murmúrio de Débora como as ondas suaves do mar ao entardecer sobre os rochedos ou penedos. Eram gemidos da corça sobre os aguaceiros no deserto. Era ela a sua anfitriã bela.

Ela havia a ele confiado a sua vida, após o incidente daquele dia do encontro quando, em choque com outros rapazes ao poço de água, levava suas ovelhas. E Bem-Salon a defendera, dera água aos sedentos animais e suas crias. As ovelhas estavam bem. Eles também. Os moradores das vizinhas terras se mostraram hostis a jovem bela. E Bem-Salon lutara com eles com certeira força.

Tudo eram motivos de disputas: poço, mulher, rebanho, religião, região...

Ela dissera a Bem-Salon:

- Mesmo cansado e sedento, teu bastão é forte e resistente contra a tirania. Teu andar e teu pilar sacodem as torres do Egito como nossos ancestrais e Moisés com Arão fizeram... De onde você veio? Por que está a rondar por essa terra deserta?

Ele rira pois era pouco e poucas vezes a ouvir elogio assim. Ganhara a confiança da jovem bela Débora. E ele retrucou:

- Faria por você de novo, por qualquer um injustiçado. O direito da água será sempre bom para os pastores e seus rebanhos. Mas, nada de desrespeito. É meu dever defender o necessitado, fosse quem fosse. Na verdade, sou da Mongólia. Vim por aqui atrás de um messias e um filósofo.

A moça diz que não era a primeira vez que houvera tal incidente com os hititas, mas que a situação de hoje se exasperara.

Em meio a tias colóquios, olhares e risos superaram os solilóquios de ambos nas trilhas, entre os arbustos, Bem-Salon, à sombra dos salgueiros, foi inquerido por Débora sobre o que mais gostava, o que o inquietava, machucava sua alma peregrina. Aquele, pois, respondera:

- Eu tive mulher e amável, e filho honrado até, infelizmente, isso foi há muito tempo. Fiquei revoltado ao vê-los mortos na Sibéria, depois de um ataque de outros mongóis de outra cidade.

- E como vive agora com sua dor cruel? – interrompeu Débora em tom suave e firme.

- Logo morrerei. A dor morrerá comigo... A revolta e o sentido a isso tudo fazem de mim um teimoso, que vive e morre todos os dias como canta poesias de todos os povos. Digo, quero viver até o último instante! Mas, falta-me a paz interior. Esses anos vaguei por terras, vales, desertos, abismos...

Tentei reparar o mal que causei. Fui atingido no cerne de minha vida familiar. Perdi o que vai amava, mais valia. Antes destruí outros lares. Veja se há solução para tão grande crime?!

- Mas, ao ver seu bastão, que era familiar, sujo e amarelo pelo tempo, logo que me pediu água. A destreza acompanha a sua periculosidade e nem temeu a quantidade de seus contendores e rivais. Por isso, imagino, entendo e tento poder ajudar. Sim, ajudar a rever sua história e sinto que fala a verdade de quem tanto errou... Meu pai da Fé, Moisés, em Madiã, encontrou esposa logo após ferir um egípcio, fugir para o deserto... Não morreu! Chegou vivo aqui e enfrentou os pastores que não queriam dar da água ao rebanho de sua futura esposa. Parece que a história e lugares mudam, mas a ação de Javé é a mesma. E dias depois, com o povo saído do Egito, teve a visão da Sarça ardente, quando Deus o entregou as tábuas da Lei. Foi o Fogo ocultado e manifesto no arbusto do Sinai que fez a diferença. Seu coração agitou por si como terremoto e recebeu o Decálogo do nosso povo errante, de dura cerviz, pois esse povo não reconheceu os feitos e milagres de Deus, blasfemou...

- Ora, não acredito em tudo que você diz, Débora... Sou de outra cultura, língua, crenças... Estou aqui, vejo você, obrigado pela água, pelo seu interesse por minha história. Não acredito como você, embora admire sua coragem de mulher solitária nesse deserto a apascentar as ovelhas de seu cego pai. Você está rodeada de gente perigosa, inimiga.

Aquela semana respirou mais um pouco, refez as forças, melhorou o olhar... Decidira Bem-Salon colocar de novo o pé na estrada, rumo ao Egito. Os parentes de Débora, família Shmul vinha-lhe ajudar na lide diária da terra. Lutavam por uma herança de seus antepassados... Terra de Noebum, perto de Belém. Poderia recompor seu roteiro de viagem, seguir à frente, dar adeus... Seria como o ceifeiro a retornar seus prados para plantar, após as cheias de um rio. O que atrai aos plantadores são a fertilidade da terra e a presença das cheias que tudo umidifica. É preciso que o rio transporte suas margens para dar esperança aos agricultores.

A fala de sua mãe germinava-lhe o coração de novas esperanças depois de boa convivência entre os pastores, agricultores e a atenção sábia de Débora.

Seria uma luz no fundo do túnel de novo a mirar? Não tinha certeza se a sua mãe fosse cristã. Judia de fé distante, sim ela era! A voz da pastora ecoara em si como o radar dos morcegos nas cavernas ou o pio da rolinha ao longe. A voz da pastora coincide com a fala materna.

Um dos pórticos deixava ler uma esperança em grego que logo traduziu para sua língua mongol: Javé é lento na cólera, longânime em perdoar. Estende sua tenda entre nós, fala-nos da Misericórdia com Justiça perfeitas...”, desde os antigos profetas até hoje em tal Cristo, seu Filho – apressou Débora a contemplar o pórtico do povo dela. Fez sua tenda perto da tenda de Débora, para ajudar os pais idosos da jovem. Talvez judeus convertidos fizeram o pórtico, pensava Bem-Salon.

“Isso aquecia meu coração desanimado na busca... Débora falara que o tal Cristo, carpinteiro da Galileia, morrera perdoando seus algozes. Não me soara tão bem, já que sempre levava tudo à espada e me vingava facilmente. ” Pensava isso por não conceber o Cristo como estoico, pronto para tudo suportar e morrer herói.

Se a filosofia ou arte de pensar, forte entre militares, religiosos e políticos, não respondesse de tudo e dos meus pesados crimes, talvez há em algum lugar outro remédio. Ardia-me um misto de dor e alegria, primeira vez em minha vida. Mas, o receio ajuntou-se ao medo e à esperança diante dessas palavras de minha mãe e de Débora. Calaram-me no fundo tudo quanto disse antes. Meu coração permaneceu perturbado, confuso, emocionado e ainda ousado de novo estilo de vida.

Logo após percorrer parte da Ásia e países até chegar a esse rincão, vi-me numa das pequenas praças de Nazaré, dia 10 de Nissan, ano 64 d. C. Houve tumulto em Roma, os líderes Pedro e Paulo foram martirizados por Nero, devido a oposição raivosa dos judeus de Jerusalém.

Entre os gregos, ouvi fala de Sócrates e sua maiêutica, que ele mesmo se intitulava “parteiro de ideias”, pois sua mãe fora parteira em Atenas. Também Sócrates foi obrigado a morrer ao tomar a taça de cicuta no século V antes de Cristo. Sim, Sócrates fora definido pelo Oráculo de Delfos como o maior dos homens – “por nada saber do saber...” A sua sinceridade agradava a todos até o dia que o acusaram de corromper os jovens, ser desobediente ao estado e infiel aos deuses. Tudo consta na Apologia de Sócrates – escrita por Platão, confirmadas por Aristóteles, seus discípulos jovens gregos.

Depois de anos, Paulo pregou no Areópago em Atenas ao se referir ao Deus desconhecido dos gregos, era uma imagem na via dos deuses.

As diferentes culturas e suas visões da dor e da contingência humana mexeram comigo à medida que procurava a cura de minha alma. Sabia que errara, que muitos lugares me prometiam vingança, desmantelara lares e a solução na velhice era meu dilema fundamental.

Em Nazaré, feliz fiquei ao ver Débora a caminho de um dos poços da cidadela. Deixei a caravana que ia para minha terra. Talita, sua vizinha, serviu-me vinho, água e pão quente. Esse nome significa: “O Senhor levanta seu povo abatido e sofrido. Ele me ampara mesmo quando cair sua serva e seu povo.”

A mesa arrumada, Débora assentou ao meu lado sorrindo. Estava linda demais! Havia alguns anos sem a ver. Agora estava cada vez mais bela. Olhos suaves, voz adocicada, perfume discreto... Turbante a ocultar seus longos cabelos... E somos conversando enquanto a mesa pronta por Talita nos aconchegava como fôssemos velhos conhecidos novos, na flor da idade a se entreter. Menos, já tinha meus 70 anos.

A refeição da noite, sim, exalava suaves cheiros da culinária judaica. Mesa enfeitada com flores do deserto e dispostos os pratos e talheres em ordem dos comensais. Tudo era acolhedor e sereno. Na verdade, cada povo tem seu “modus vivendi” – não seria diferente no Oriente, que se preza às maiores e lindos manjares à base de frutas e frutos do mar, ervas e incensos ao ar.

Outro motivo da Ceia: a Alegria de encontro de amigos e amigas da Mispará ou da Família grande judaica, agora os encantos de Débora eram só para mim. Tiago, um dos Doze estava presente, abriu o Ágape com oração comovente... Eu olhava aquele homem com a curiosidade de saber sobre o tal Jesus Cristo, dos lábios dele, Tiago ouvira e escrevera escritura sábia. Lemos no Koiné ou grego popular a paixão de Jesus e sua Ressurreição. Eram passagem de amor, coragem, perdão, liberdade...

Não me eram familiares tais escritos, nem ser judeu e muito menos cristão. Não me parecia claro a natureza e extensão disso: Sei que o império romano já promovia perseguições, torturas e mortes aos seguidores do Nazarenus. Agora chamados de Cristãos. O império matava tanto judeus quanto cristão, sem os distinguir – eram parecidos por causa da mesma etnia e lugares da Palestina.

Plinio, o Moço, escrevera ao imperador Trajano que achava absurdo alguém morrer por um homem, uma ideia ou um deus... Contudo, muitos morriam por terras e domínio do imperador.

Também aqui meu entender de oriental não se discrepava do escritor Plínio, porém me escandalizava ou enfurecia matar gente inocente. Sabia que morrera injustamente Jesus como inclusive Sócrates, cada qual a sua maneira. Morrera Pedro, Paulo, Estevão, os apóstolos e até Tiago, que eu conhecera na casa de parentes de Débora em Nazaré. Eu igualmente pratiquei crimes como guerreiro contra inocentes para tomar suas terras ... Não sou melhor que os romanos. Também, era eu assassino.

Odiei-me por ter sido assim, feito parte de confisco de terras e tomado parte do partido dos mongóis contra camponeses... Era-me duro fardo. Gostaria de fazer tudo diferente, nascer de novo... Nada de estoicismo, nem epicurismo... Nem indiferença ou entusiasmo extremos e idealizados para a morte e a vingança. Invejava a vida dos camponeses e cidadãos que não pegava em armas...

Por que o homem tem aptidão ao bem; entretanto, o mal pratica? E bem que poderia tomar inócuo à ação do mal, como poderia o justo sofrer e morrer pelos outros e no lugar de outros, se o mal parece tudo dominar e serem a força injusta dos poderosos?

Depois de muitas buscas e poucas respostas em sua diáspora, Bem-Salon resolveu procurar mais vezes Débora. Esta já com os anos avançados, quis voltar ao campo e concluir seu viver com vida calma e contemplativa.

Havia algum tempo, perdido seu pai Agora Débora cuida do rebanho e das terras com os irmãos e parentes ainda. Desse modo pode assistir a mãe viúva e idosa.

Bem-Salon passou alguns meses junto de Débora, eram bons e velhos amigos. Aprendera muitas coisas com ela. Seu coração ainda aflito e dominado pela culpa tardava em pedir perdão a Deus. Ficou diante de um ex-centurião romano, sua vida contou e como Jesus curara seu empregado. Esse cristão morava a umas vinte e cinco léguas de Ramin Hafar, norte de Belém. Sua tal conversão custou-lhe a morte na arena por decreto de Pompeu.

Bem-Salon ficou triste com o esse último acontecimento. Pediu a Deus perdão de pecados e maldades de sua juventude, sua militância na Mongólia.

Leu a Carta do Senador Públio Lentulus ao Imperador Tibério Cézar, descrevendo as características morais e físicas de Jesus.

“Sabendo que desejas conhecer quanto vou narrar, existindo nos nossos tempos um homem,o qual vive atualmente de grandes virtudes, chamado Jesus, que pelo povo é inculcado o profeta da verdade, e os seus discípulos dizem que é filho de Deus, criador do céu e da terra e de todas as coisas que nela se acham e que nela tenham estado; em verdade, ó César, cada dia se ouvem coisas maravilhosas desse Jesus: ressuscita os mortos, cura os enfermos, em uma só palavra: é um homem de justa estatura e é muito belo no aspecto, e há tanta majestade no rosto, que aqueles que o vêem são forçados a amá-lo ou temê-lo. Tem os cabelos da cor amêndoa bem madura, são distendidos até as orelhas, e das orelhas até as espáduas, são da cor da terra, porém mais reluzentes.Tem no meio de sua fronte uma linha separando os cabelos, na forma em uso nos nazarenos, o seu rosto é cheio, o aspecto é muito sereno, nenhuma ruga ou mancha se vê em sua face, de uma cor moderada; o nariz e a boca são irrepreensíveis. A barba é espessa, mas semelhante aos cabelos, não muito longa, mas separada pelo meio, seu olhar é muito afetuoso e grave; tem os olhos expressivos e claros, o que surpreende é que resplandecem no seu rosto como os raios do sol, porém ninguém pode olhar fixo o seu semblante, porque quando resplende, apavora, e quando ameniza, faz chorar; faz-se amar e é alegre com gravidade.Diz-se que nunca ninguém o viu rir, mas, antes, chorar. Tem os braços e as mãos muito belos; na palestra, contenta muito, mas o faz raramente e, quando dele se aproxima, verifica-se que é muito modesto na presença e na pessoa. É o mais belo homem que se possa imaginar, muito semelhante à sua mãe, a qual é de uma rara beleza, não se tendo, jamais, visto por estas partes uma mulher tão bela, porém, se a majestade tua, ó Cézar, deseja vê-lo, como no aviso passado escreveste, dá-me ordens, que não faltarei de mandá-lo o mais depressa possível. De letras, faz-se admirar de toda a cidade de Jerusalém; ele sabe todas as ciências e nunca estudou nada. Ele caminha descalço e sem coisa alguma na cabeça. Muitos se riem, vendo-o assim, porém em sua presença, falando com ele, tremem e admiram. Dizem que um tal homem nunca fora ouvido por estas partes. Em verdade, segundo me dizem os hebreus, não se ouviram, jamais, tais conselhos, de grande doutrina, como ensina este Jesus; muitos judeus o têm como Divino e muitos me querelam, afirmando que é contra a lei de Tua Majestade; eu sou grandemente molestado por estes malignos hebreus.Diz-se que este Jesus nunca fez mal a quem quer que seja, mas, ao contrário, aqueles eu o conhecem e com ele têm praticado, afirmam ter dele recebido grandes benefícios e saúde, porém à tua obediência estou prontíssimo, aquilo que Tua Majestade ordenar será cumprido. Vale, da Majestade Tua, fidelíssimo e obrigadíssimo… Públio Lentulus, presidente da Judéia Lindizione setima, luna seconda.”(Este documento foi encontrado no arquivo do Duque de Cesadini, em Roma. Essa carta, onde se faz o retrato físico e moral de Jesus, foi mandada de Jerusalém ao imperador Tibério César, em Roma, ao tempo de Jesus.)

Mais tarde, pôde ler Bem-Salon os textos de Platão em Fedro Nº 279b, no qual se confirma a sabedoria:

“Senhor, concedei-me que chegue a ser belo interiormente

E que exteriormente, o que venha a ter,

Esteja em harmonia com o interior.

Concedei-me ainda que considere rico ao sábio

E que, quanto à riqueza material,

A tenha em tal quantidade

Que fosse a ideal

Para a posse e o uso de um homem sóbrio. ”

= in: Momentos poéticos, 2006) - link: https://www.recantodasletras.com.br/poesias/4118632

Não poderia negar o passado medonho, nem condenar a sua mudança possível no presente, se o futuro parecia ser nova chance de fazer o bem e partilhar tudo o que sabe da vida.

Se a filosofia platônica bifurca tudo: terreno e eterno, o acesso ao Deus Supremo e Eterno se volta à esfera da unidade e à estrela da reconciliação, não por mero mortal sombrio, mas pelo brilho de umbral numioso-luminoso. Era preciso passar do aqui e agora para o nível do além, sem perder no caminho das disputas e dureza do coração.

Ora, isso se diluía com a vida no convite do Evangelho que dava à criação e ao resgate do cosmos em Cristo Senhor como nova Criatura e Deus vindo visitar seu povo. Somos novas criaturas quando nos arrependemos de pecar e viver uma vida nova depois do nosso Batismo.

Sabia que assim o cristão vive a conviver na criação como ser criado rumo ao Infinito.

Depois de viver Jesus e amar e perdoar aqui, fazer boas obras, o lugar do homem novo é com Deus e para Sempre no Céu.

As descobertas da filosofia são dons da fé, abre-nos para a teologia: estudo de Deus com a fé e o amor por Deus em nós. Deus primeiro amou... Criou tudo por amor. Perdoa os que erram ao estarem contritos ou arrependido. Ao bom ladrão Dimas perdoou sim na lá cruz. Perdoou a todos os que o crucificaram... para nos dar o exemplo de santidade e via de salvação. Aliás, Jesus é O Caminho, A Verdade e A vida... João 14,6. Meu pai me ensinou:

- Ego sum: Via, Veridita et Vita. João 14,6

Bem-Salon aprendeu a si perdoar. Ficou contente demais.

E descobriu a força do perdão na fraqueza do homem. Perdoar a si mesmo não é sinal de fraqueza e nem humilhação. O pior é não se perdoar e morrer doente, desiludido, apostando na maldade humana. Perder-se eternamente. Perdão é sinal de amor para quem esvaziou-se de si, do seu orgulho ferido, do ódio implacável, da revolta interior doentia, para deixar-se embelezar e embeber-se da luz Divina de Jesus, Príncipe da Paz e Suporte do Perdão. Se quer perdoar, paz e justiça, amor e compaixão brilharão em si.

Ao fim daqueles últimos dias, no inverno, Bem-Salon era outro homem, mais confiante, alegre, compassivo, amoroso, feliz. Casara-se com Débora. A chuva caia! E o arco-íris sorria para ambos, que chegaram até aí.

Muitos anos depois, ambos faleceram no mesmo dia! Era páscoa de 75 d. C. Seus corpos foram sepultados em única cova, belo túmulo, digno de cristãos, sob a oração e a benção do sacerdote de Éfeso, para onde os Cristão foram com a virgem Maria após a invasão dos romanos e destruição do templo de Jerusalém no ano 70 d.C.

J B Pereira e https://www.recantodasletras.com.br/poesias/4118632 e https://radioriodejaneiro.digital/blog/carta-do-senador-publio-lentulus-ao-imperador-tiberio-cezar-descrenvedo-as-caracteristicas-morais-e-fisicas-de-jesus/
Enviado por J B Pereira em 25/05/2023
Reeditado em 29/05/2023
Código do texto: T7797198
Classificação de conteúdo: seguro