Com amor, Miguel - 1: A fuga

Já passava da meia-noite, Cora estava desperta na cama, esperando ouvir o ressonar de sua mãe indicando que finalmente estava em sono profundo.

"Certo, pensou, é agora ou nunca". Levantou-se, pegou a trouxa que fizera com o tecido de uma saca de grãos. Ali dentro, somente seu vestido extra, uma pedra que coletara no rio para nunca se esquecer do lugar onde nasceu e algumas bananas que deveriam mantê-la alimentada até chegar na capital. Sobre a mesa da cozinha deixou uma flor e um desenho que ela fizera, um pássaro que parecia até cantar! Não sabia escrever, foi a forma que encontrou para dizer que iria embora, como um pássaro que sai do ninho, mas voltaria, assim como os pássaros voltavam para onde foram felizes. A mãe entenderia, porque as mães sempre entendem.

Seguiu pé ante pé até a porteira que marcava o fim do terreno de casa, com cuidado para não acordar o cão Boris que denunciaria a fuga com altos latidos.

"Muito bem, estou aqui fora, agora é apenas seguir a linha do trem e logo estarei em meu destino". Era uma jovem sonhadora e corajosa, mas nunca esteve só na vida - com uma família tão grande, era difícil estar só em qualquer lugar - e por uma fração de segundos sentiu medo e pensou em voltar, mas ergueu a cabeça, segurou firme a pedra do rio de casa em uma das mãos e a faca em outra (ah... não mencionei a faca; Cora decidiu de última hora levar uma faca, como precaução; afinal era obstinada, corajosa e sonhadora, mas não era tola). Sem sapatos, logo conseguiu sua primeira ferida na sola dos pés, que viraria uma cicatriz e, mais tarde, uma emocionante história de aventura para os filhos que teria.

Passou toda a madrugada caminhando, bem como a manhã e a tarde seguintes. Próximo ao fim do dia, chegou ao seu destino. Para seu plano dar certo, seu padrinho precisava aceitar sua chegada em casa. "Tenhamos fé, vai dar certo!", ela falou para si mesma, mas soou como uma prece.

- Meu Deus, menina! O que você está fazendo aqui? Aconteceu algo de grave em casa?

- Padrinho, me perdoe chegar nesse estado, mas preciso de um lugar para dormir.

- Seu pai! Seu pai sabe que você está aqui?

- Na verdade, papa não sabe que eu saí... ele chega em casa amanhã. Deixei mamãe com a vizinha Vera, que está lá em casa para ajudar.

- Minha querida, teremos uma guerra! Seu pai vai ficar furioso...

- Bem, a fúria se cura com o tempo, mas tempo é uma coisa que eu não podia mais perder. Posso ficar? Preciso de um banho.

E assim, ela mesma resolveu como seria. Seu padrinho mandou chamar a filha, Fátima, para que ajudasse Cora com o banho e os curativos nos pés.

Fátima e Cora eram muito amigas, tratavam-se como irmãs. A única irmã de Cora tinha apenas um ano de idade, os demais irmãos eram todos rapazes; já Fátima era filha única, a mãe havia morrido no momento do parto e o pai jamais se casou novamente.

O padrinho de Cora era médico, chamava-se Doutor Guilherme; ele e o pai de Cora se conheceram em um momento difícil, quando os dois sofriam suas perdas, Doutor Guilherme pela esposa, e o fazendeiro Assis acabara de perder um de seus filhos para a malária. Na ocasião, a mãe de Cora estava para dar a luz em poucas semanas e Doutor Guilherme foi convidado, entre uma cerveja e outra, para ser padrinho do bebê, e assim se fez.

Após um banho, curativos, roupas limpas e uma deliciosa sopa, Cora dormiu em uma cama quente e confortável e acordou cedo no outro dia, com um grito alto!

-Ela vai para casa comigo!

Parece que papai chegou mais cedo da viagem!

Sylphide
Enviado por Sylphide em 23/05/2023
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