Jardim

         

           Ontem, quando acordei pela manhã, eu estava bem como em todos os dias normais. No decorrer do dia, entretanto, senti que algo acontecia dentro de mim. Algo que antes não saberia explicar, pois jamais havia sentido. A bem da verdade, ainda não sei explicar. O que posso dizer é que se trata de uma coisa estranhamente nova, diferente de tudo o que já senti desde a minha criação. Eu realmente não entendo. Tenho tudo o que quero e o mundo inteiro gira ao meu redor, mas ainda assim acordei e senti um incompreensível vazio; uma inexplicável ausência, uma vaziez indizível. Meu amigo leão comia grama por ali e percebeu em mim aquele olhar nunca antes visto.

 

— Ei, chefe, está tudo bem? – disse ele, com a primeira expressão de preocupação que já o vi fazer desde seu nascimento há mais tempo do que posso lembrar.

 

— Sabe, Léo, a lógica diz que devo responder sim. Mas… já sentiu como se houvesse um vazio em algum lugar dentro de você? Como se te faltasse algo?

 

O leão, é claro, olhou-me com assombro antes de dizer:

 

— Na verdade não, chefe. Nem faço ideia do que seja isso.

 

— Não achei mesmo que faria. – dei um sorriso com o canto da boca.

 

— Já falou com O Paizão sobre isso?

 

— Ainda não. Mas certamente essa questão será tema de nossa conversa mais tarde.

 

Léo assentiu com a cabeça e em seguida caminhou na direção do riacho. Novamente encontrei-me só. Apenas eu e as elucubrações de minha agora inquieta alma. Ouvi barulho nos galhos da árvore e olhei. Era o babuíno.

 

— Chefe, não pude deixar de ouvir sua conversa e acho que tenho a solução para o seu problema. – disse ele, ao mesmo tempo em que  deslizava com destreza pelos galhos até chegar ao chão.

 

— Bom dia, Baboo. E qual seria sua ideia? – falei, num tom que mesclava esperança e incredulidade, com destaque para a última.

 

— Chefe, olhe para o leão.

 

Olhei e vi Léo, Minase e Dora, deitados sobre a grama, observando o pôr do sol. Eles são uma linda família, mas não entendi o porquê da observação do babuíno. Olhei-o com olhar inquiridor.

 

— O que te falta é isso! – ele apontou o trio de leões.

 

— Observar o ocaso mais vezes do que já faço?

 

— Não, chefe… uma família.

 

— Mas... eu já tenho uma família. Todos vocês! – retruquei.

 

— Sim, é verdade. Mas falo de outro tipo de família. Como a do Léo, ou a do Rino, ou de qualquer outro bicho.

 

Diante das palavras do babuíno, um brilho se acendeu em meus olhos naquele momento. Todavia esmaeceu logo em seguida. A lógica gritava em meus ouvidos que não havia, em lugar algum do Jardim, uma fêmea por quem eu me interessasse. Nem mesmo entre os primatas.

 

— Conversa com O Paizão! Ele saberá o que fazer. – Baboo percebeu meu desânimo.

 

Assenti com a cabeça e passei o dia esperando a visita do Paizão que por algum motivo não apareceu. À vista disso, outro sentimento inédito quis se apoderar de mim. Algo que sub-repticiamente sugeria a ausência de seus cuidados para comigo. Mas então olhei ao redor e pus minha atenção em todos os motivos que eu possuía para não anuir a esse sentimento avesso, contraditório. Na medida, porém, em que recobrava minha confiança, uma sonolência inesperada apossou-se de mim e, sem que eu pudesse perceber exatamente quando isso ocorreu, dormi… profundamente.

 

Pela manhã, acordei com as vozes dos bichos. Eles estavam agitados e eu não sabia o porquê até que meus olhos avistaram a mais linda de todas as criaturas presentes no Jardim. Léo e Baboo me olhavam sorridentes. Os demais bichos também. Eu simplesmente não conseguia dizer algo. Estava hipnotizado. Meus olhos percorriam cada centímetro de seu corpo e outro algo estranho acontecia dentro de mim. Era um sentimento novo, uma coisa que jamais senti por nenhum dos bichos presentes, por mais que os amasse. Ela abriu os olhos e seu olhar mergulhou dentro de minha alma. Por um instante tudo parou e não existia mais nada... só nós dois. Sua primeira reação ao me ver foi sorrir e, quando fez isso, senti como se meu coração derretesse dentro de mim. Seu sorriso era como o brilho de mil sóis e seu olhar tão profundo quanto o oceano abissal. Ela estendeu o braço. Estendi o meu também e, quando nossas mãos se tocaram, senti algo como uma explosão de inúmeras substâncias que me inundavam o corpo e a mente. Ela sorriu novamente enquanto olhava-me com aquele olhar encantador. Descobri que passaria facilmente o dia apenas olhando-a nos olhos e vendo seu sorriso.

 

— Chefe… – Baboo interrompeu meus devaneios – Deu nome a todos nós. Acho que sua fêmea também precisa de um. 

 

Pensei por um instante e então falei:

 

— Bem-vinda ao Jardim… Dany!

 

 

Nota do autor: Para entender melhor o texto supra, recomendo a leitura de "Uma poesia para Dany", última publicação antes de "Jardim".

Netokof
Enviado por Netokof em 02/05/2023
Reeditado em 14/05/2023
Código do texto: T7778194
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