ETERNO AMOR

Porque ganhara de seu primeiro amor, não havia quem convencesse titio Saul a beber o que fosse em outro recipiente, a não ser em sua caneca especial. E olha que havia mais sete, só em sua coleção, num cantinho próprio de seu armário.

Mas essa, ah, essa caneca azul... Mesmo trincadinha, já toda desbotada, a borda lascada, fosse chocolate quente, chá, um simples cafezinho ou mesmo água, era nela que ele fazia questão de tomar. E demorava-se a degustar tão precioso líquido. Não pelo conteúdo em si, mas porque esse momento lhe reportava a dias de indescritíveis alegrias.

Olhava para as douradas iniciais “SR”, pintadas por sua inesquecível Rafaella e, com seu indicador, as contornava sempre. Depois, fechando os olhos, parecia transportar-se para os idos de sua juventude. Sorria. E, então, punha-se a narrar a troca de olhares e sorrisos no intervalo das aulas, os bilhetes que a ela escrevia, entregando-lhe, diariamente, na saída da escola, o primeiro filme a que juntos assistiram, as várias vezes que sua amada lhe preparara ambrosia ou compotas de goiaba (seus doces prediletos), o primeiro beijo que, aliás, ela lhe roubara...

Assim ficava titio, perdido em suas adoráveis lembranças, até que... até que, por fim, seu semblante, aos poucos, se fechava, e lágrimas rolavam por sua face. Não pôde se casar com sua "alma gêmea". Ela morrera jovem demais!

Essa rotina se sucedera nos últimos anos, até a tarde daquele sábado, 1º de novembro. Quase sem voz, pediu a sua sobrinha-neta mais nova, Amanda, que lhe preparasse um chá de maçã. - Ela o amava demais e sempre lhe era muito carinhosa. - Nesse dia, sorriu-lhe, como de costume, e, impulsionada por um sexto sentido, resolveu caprichar ainda mais.

Molhou a borda da “diletinha”, - como, habitualmente, a chamava -, passando-a numa mistura de açúcar e canela; pôs, dentro, as cascas da maçã, acrescentou água fervente, um toque de gengibre, deixando tudo em infusão; em seguida, adoçou o chá e, para fazer maior charme, no momento de servi-lo ao tio-avô, com uma colherinha lambuzada de caramelo, desenhou a letra R.

Titio Saul aspirou a fragrância daquela delícia, sorriu, e, ao levá-la à boca, parou com o olhar absorto em direção à janela. Sem tirar os olhos, foi baixando os braços, trêmula e lentamente.

Com rapidez, Amanda segurou a azulzinha, sem entender o abrir do mais lindo sorriso que, até então, vira em seu tio-avô. E então, ouviu-o balbuciar: - Raf...

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Junto ao corpo, a caneca descera ao túmulo. Na lápide, lia-se: “Aqui jazem as lembranças de um dourado amor que, ora, vive em dimensão esplendorosamente azul.”