Pedaço
Era uma tarde silenciosa, um pouco mais-que-perfeita, ventos que apitavam quase nada, quando Lyuba sentiu em seu braço um arrepio e lembrou do cheiro do café que subia quando estava com quem havia lhe dado aquele pedaço incerto de torta escura e doce. Estava frio e tudo aquecia a sua barriga; o café, a sensação, o momento, as palavras que desesperadamente corriam da garganta magra dele e ela só sentia passar as existências pairando pelo chão e ar; energias loucas e música dançando no centro do salão. Olhava para o pedaço que restara e a colher lambuzada de migalhas e chocolate, terminá-la seria engolir o momento para sempre? Ela pensara em não comer, deixar endurecer na geladeira, dentro do pote de isopor ou talvez, alguém pudesse comer por ela, para não recordar mais daquele dia glorioso, dos risos incontidos, do abraço em caminho desencaminhado, a formação de uma única realidade em seu peito que se continha de vez em vez. Lyuba experimentava o sentimento em guti-guti, temendo que acabasse como o pingo de chuva, que caía todo esbugalhado no chão, atirado pela furiosa nuvem cinzenta que um dia abraçou a água e a sugou para dentro; cheia, choveu. O pedaço centralizado e cheio de buraquinhos, cremoso era uma metáfora do que sempre acontecia? Lyuba já não tinha ninguém, estava acostumada a comer vagem em conserva no jantar, um ovo cozido pela manhã e tomava café preto no almoço em sua sala verde mofo. Sempre comia de frente à janela, olhando a vida passar pelos seus olhos e não tinha tanto apreço pelas pessoas; era franzina e sem graça, tomava sorvete de creme todos os sábados e nos domingos bebia a água da vagem, no pote de vidro. Costumava cair o caldo pelo seu pescoço e a blusa branca enverdecia, ela não limpava. Jamais gostou de música, nem de filmes, nem de livros; nunca gostou de ninguém, pois não esperava que ninguém a olhasse, sua íris jamais havia sofrido nenhuma alteração, só quando sua mãe morreu, uma lágrima caiu no chão como um pingo de chuva. Ela não queria ser nuvem. Trabalhava na loja de tortas do sr. Rosso, um senhor baixinho e rosa, parecia um porco. Não sabia como aquele rapaz que vendia sorvetes ficara tão interessado nela e a chamou para sair. Quando ele o fez, seus olhos saltaram e o nariz entrou no sorvete, ela ficou com o nariz de creme, ele pegou o guardanapo limpou seu nariz, sorriu; ela sorriu e o acordo estava feito. Marco era o nome dele. Marco. Marco cor de creme, Marco sabor gelado. E lá estava ela, dividindo com a colher o último pedaço que ficara. Sobrou mais um pedacinho, ela deixou ele intacto para pensar mais a quentura. Olhou para o saponário quase seco dentro do vaso, se sentia um saponário. Ela era um saponário. Lembrou de um poema que havia lido em algum lugar e nunca havia entendido, não por ser complexo demais, mas porque não havia nada no mundo que a fizesse entender, leu quase sem querer um dia, folheando uma revista. Justamente, naquela tarde, ela entendeu o que aquele conjunto de palavras enfileiradas queria dizer.
“Ser horizontal que no fosco preto reside,
Prelúdio do inverno, a neve o chão incide.
É o último vislumbre de mim, beba-me
É o último feixe de luz, olha-me
Hibernarei dentro do que pulsa dentro,
Fora, acima, embora, entro.”
Engoliu o último pedaço. Pensando em Marco e seu sorriso de piano. Ela havia o engolido, como uma nuvem. Ela pensava “Ah! Marco! Como te amei naquela tarde!”, e o encontro nem tinha acontecido.