Marcelo e Ana

Eu tinha oito anos quando a vi pela primeira vez. Era o primeiro dia do segundo ano e ela se sentou perto de mim na sala de aulas.

— Oi, como você chama? — perguntou a menina com uma voz meiga, sorrindo para mim.

— Marcelo — respondi retribuindo o sorriso.

— Eu me chamo Ana. Vim de outra escola, porque antes morava em outro bairro.

— Ah! Que bom que você veio estudar aqui, Ana — meu coração falou sem hesitar.

Ana era a menina mais bonita que meus olhos já tinham visto. Sua pele era clara e usava uma tiara nos cabelos que eram pretos, não muito compridos e algo ondulados. Logo Ana e eu nos tornaríamos os melhores amigos.

Perto de completar nove anos eu era um tipo franzino, tinha uma perna levemente menor que a outra, o que me fazia às vezes perder um pouco o equilíbrio e não ser bom em esportes. Na escola os garotos viviam rindo e caçoando de mim e nunca me escolhiam quando formavam os times para jogar futebol. Além disso, usava óculos com lentes grossas para corrigir uma miopia.

No início confesso que ficava um pouco envergonhado de ter que brincar com uma menina, contudo, Ana parecia apreciar a minha companhia e eu amava estar ao lado dela. Eu construí um balanço de pneu para ela e a ensinei a fazer lindas pipas que voavam alto “feito uma águia” Ana ria muito com a minha pueril comparação. Ela me ensinou matemática e mais tarde quando ambos entramos para o Curso de Letras, minha melhor amiga me dava uma mãozinha com o inglês.

Passávamos muito tempo juntos e Ana ficava triste quando precisava voltar para sua casa. Dizia que assim que arrumasse um emprego deixaria a casa de seus pais. Nessas horas eu propunha:

— Se quiser nós podemos morar juntos, Ana. Assim não precisaremos nos separar nunca.

— Ah! Até lá você terá se engraçado por alguma bela garota e se esquecido completamente da sua amiga aqui.

— Não diga bobagem. Eu nunca vou te esquecer

— É muito bom ouvir isso, Marcelo — disse ao mesmo tempo que tentava enxugar algumas lágrimas que já brotavam de seus olhos claros.

Ana e eu tínhamos a mesma idade e quando completamos dezessete anos o pai de Ana morreu. O episódio que costuma ser muito doloroso para uma família me causou estranhamento, pois Ana não compareceu ao velório e tampouco ao sepultamento do pai. Ela me pediu para ficar uns dois dias na minha casa e logo concordei. Não haveria inconvenientes uma vez que meus pais e o chato do meu irmão estavam fora da cidade excursionando pelo litoral paulista.

Durante todo o nosso tempo de convivência, Ana nunca me falara de seus pais e de sua relação com eles e talvez por isso não me animei a conversar com minha amiga sobre a morte do pai.

Alugamos alguns filmes, jogamos videogame e conversamos, já fazendo planos, sobre o vestibular que se aproximava. Eu estava feliz com a presença de Ana em minha casa, entretanto, ela não conseguia ocultar a angústia. Na noite que antecedera o seu retorno para casa eu segurei firme suas mãos e lhe disse:

— Escute, Ana, aconteça o que acontecer estarei sempre ao seu lado. Confie em mim. Então aquele ser delicado que já se transformara em uma mulher se desprendeu das minhas mãos e explodiu em um choro dorido e raivoso. Finalmente Ana deixou escapar em sua primeira catarse emocional aquilo que guardara consigo durante anos.

— Por que, Marcelo? Por que aquele animal tinha que me estuprar? Ele era meu pai, meu pai! Um pai deveria amar e proteger sua filha, e não a violentar. Eu era apenas uma criança, meu Deus! Ana silenciara as palavras caindo em meus braços num pranto copioso.

Mais calma, minha amiga me contaria depois os detalhes: o pai de Ana era alcoólatra e por qualquer motivo aplicava surras em sua esposa. Numa noite, como ocorrera em tantas outras, o homem chegara bêbado em casa, só que em vez de entrar no próprio quarto acabou se enganando, indo se deitar no quarto da filha. Tomado de um desejo insano, agarrou a menina que então contava nove anos de idade e covardemente a violentou para se saciar. Quando envergonhada e humilhada a menina contou o sórdido episódio à sua mãe, a pobre mulher totalmente dependente financeiramente não teve coragem para confrontar o marido e ficar do lado da filha.

Ana se fechara em sua dor, acumulando ódio e ressentimentos pelos pais.

Tempos depois, perto de concluirmos a faculdade, Ana se apaixonou por um veterano do curso de Direito e mesmo contra a minha vontade aos poucos fomos nos distanciando, até que um dia Ana deixou de retornar minhas ligações e finalmente entendi que não cabia mais na vida dela.

...seis anos depois...

Marcamos um encontro em um bem frequentado parque da cidade. De repente eu a vi e meu coração disparou: “Meu Deus, é ela mesma e ainda tão bonita!” Ela também me reconhecera de pronto e exibia aquele mesmo sorriso de quando nos vimos pela primeira vez na escola. Nos abraçamos demoradamente.

— Fiquei surpreso quando li seu e-mail, Ana. Afinal faz tanto tempo. Como lhe disse eu me formei, adoro lecionar e nunca me casei.

— Então, Marcelo, como lhe escrevi, meu casamento durou apenas um ano. Jorge era muito ciumento e possessivo. Acho que nunca me amou, só me queria como seu troféu. E como se não bastasse, meu ex-marido bebia muito. Larguei a faculdade e há alguns anos trabalho como vendedora numa loja de roupas.

— Você o amava? Parecia muito apaixonada.

— Na época eu achava que sim, mas depois fazendo terapia entendi que inconscientemente eu desejava apenas abandonar em definitivo a casa e a convivência com minha mãe. Eu também estava querendo te esquecer.

— Me esquecer! Mas por quê? Ana então se aproximou um pouco mais e acariciando o meu rosto, prosseguiu:

— Peço perdão, Marcelo. Nunca quis te magoar. Acontece que eu te amava, seu idiota! Mas você nunca me deu esperança e nunca tentou avançar o sinal com a sua amiga aqui. Eu queria ser sua namorada, Marcelo, e não apenas a sua melhor amiga.

— Tá, mas por que demorou tanto pra me procurar depois que se divorciou?

— Por favor, procure entender. Depois que percebi que meu casamento afinal foi um grande erro, fiquei um tempo perdida, sem saber que rumo tomar na minha vida. Quanto a lhe procurar, creia, era o que eu mais queria, no entanto, após a forma como te abandonei tive muito medo de que você não quisesse mais me ver. Eu desejava consertar as coisas entre nós, mas não sabia como.

— Ana, se eu nunca me casei não foi por falta de pretendentes. Na verdade, jamais senti por outra mulher o que eu sinto por você. Sinto que o que existe entre nós é especial. Eu sempre te amei e ainda hoje continuo te amando. Algumas vezes tentei me declarar, porém, sempre batia aquele medo de que você pensasse que eu estava confundindo os sentimentos. Não queria arriscar perder a sua amizade.

— Enfim você se declarou. Bem, ainda não é tarde pra nós dois. Eu também te amo, Marcelo. Você foi e permanece sendo meu verdadeiro amor.

Ora, se toda boa história de amor termina com um beijo, Ana e eu não iríamos decepcionar. Segurei levemente o queixo de minha amada e juntamos nossos lábios num prolongado e há muito desejado beijo apaixonado.

Com o meu apoio, Ana finalmente conseguiu perdoar seus pais. Entendeu que a mãe afinal só agiu como fora certamente ensinada por seus próprios pais, num tempo em que as mulheres não deveriam de forma alguma contrariar as vontades de seus maridos, os legítimos provedores da família. Também compreendeu que presa de uma dependência química, o pai não passava de um homem infeliz, doente do corpo e da mente.

Com a ajuda dela, passei a me aceitar mais como sou e a viver a vida com um pouco mais de ousadia e alegria.

Somos um casal feliz e muito gratos um ao outro.

O presente trabalho é apenas uma ficção literária. Nota do autor.