Votos Perpétuos

 

Com reverência, Padre Carlos abençoou os fiéis, fez o Sinal da Cruz, o Nome do Pai e deu a missa das dez por encerrada.

 

Já nos seus aposentos, tirou a casula, a estola e a batina. De calça jeans e tênis, vestiu uma camisa clergyman, azul clara, de mangas longas, que gostava de usar com duas ou três dobras nas mangas. Padre Carlos, que já estava próximo aos cinquenta anos e era um tanto vaidoso, sabia que, assim, realçaria a jovialidade ainda aparente.

 

Desde que iniciaram as restrições por causa da Covid-19, Padre Carlos recebeu um jovem colega, o padre Luiz, enviado pelo bispo, para que fizessem um revezamento entre as celebrações. Hoje o padre Luiz cuidaria da celebração das dezoito horas, portanto, ele não teria mais compromissos eclesiásticos para o dia.

 

Carlos Alberto, ou Beto, como era chamado pelos pais e pelos irmãos, aproveitou para almoçar com a sua família, onde celebrariam os 83 anos do pai. Considerando que todos estavam bem de saúde e vacinados, alguns com a primeira dose, outros já com a segunda, todos os três filhos, mais a única filha, estariam presentes, com os respectivos cônjuges. Carlos iria só, por razões óbvias.

 

Nos, aproximadamente, três quartos de hora que dividiam a casa paroquial e o sítio onde encontraria a família, padre Carlos, ainda em conflito entre a homilia que fizera e o seu propósito de vida, ia confabulando seus dilemas, memórias e vocação.

 

O tema da homilia havia sido os versículos 38 e 39 do oitavo capítulo da carta de São Paulo aos Romanos: Pois estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas, nem os abismos, nem outra qualquer criatura nos poderá apartar do amor que Deus nos testemunha em Cristo Jesus, nosso Senhor.

 

O padre sabia discorrer como ninguém a interpretação do texto. Não foram poucas as vezes em que havia se debruçado sobre esses versículos, dentro do contexto do capítulo que, já no seu início, afirma que de agora em diante, pois, já não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Jesus Cristo. A Lei do Espírito de Vida me libertou, em Jesus Cristo, da Lei do pecado e da morte. Entretanto, no seu íntimo, ele não estava tão convicto dessa certeza bíblica.

 

O Carlos, homem de carne e osso, se agarrava apenas ao oitavo versículo, que afirma que “os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus” e, para complicar, tinha aquela mulher, pela qual era capaz de qualquer coisa. Era aí que morava o problema, ou melhor, a tentação, que estava em todas as missas, religiosamente, sentada na ponta do banco da segunda fila, à direita do altar.

 

Hoje não foi diferente. Para desespero do padre Carlos, Ana Maria compareceu à casa de Deus. Ela, um amor do passado, que começou nos corredores da escola, ganhou as quermesses, pegou fogo nas praças e sobreviveu aos anos de seminário.

 

Para sua sorte, ele estava cumprindo o seu chamado na paróquia de outra cidade quando Ana Maria se casou na igreja matriz. Padre Carlos só foi transferido para a sua igreja-mãe cinco anos depois.

 

Por ironia do destino, coube a ele batizar dois dos seus três filhos. Conseguiu agir com “profissionalismo”, se é que podemos dizer assim do ofício sacerdotal. Mas já são quinze anos de troca de olhares dominicais. Muitas vezes, padre Carlos precisa focar em outros pontos da igreja, em outros rostos sedentos pela mensagem, para não perder o fio da meada durante a homilia.

 

***

 

Nunca vou me esquecer da primeira vez que o vi. Era o primeiro dia de aula e, quando ele entrou na sala, o meu mundo parou. Era também o meu primeiro dia naquela escola. Meu pai havia sido promovido de cargo no trabalho e foi necessário mudarmos de cidade. Tudo novo, sem amigos, me sentindo um peixe fora d’água. E me aparece aquele peixão...

 

Faltavam três meses para o meu aniversário de 15 anos. Estava ansiosa por conhecer pessoas para irem à minha festa de debutante e acabava de saber quem seria o primeiro convidado.

 

As semanas transcorreram dentro da normalidade dos adolescentes que se acham os donos do mundo por estarem no início do ensino médio. Preocupações com as novas matérias, novos grupinhos sendo formados, amizades e rivalidades se estabelecendo, espinhas teimando em explodir no rosto e hormônios deixando o estado emocional em total descontrole.

 

Quando chegou o grande dia, meus pais providenciaram uma festa simples, porém muito bonita. Eu estava radiante! Tinha total consciência da minha beleza, do quão sedutora era e de qual, ou quem, era o meu alvo naquela noite.

 

A festa, num clube da cidade, estava cheia. Eu já me relacionava com boa parte dos alunos da minha classe, mais algumas amizades aleatórias de outras turmas, além de algumas pessoas da vizinhança ou do trabalho do meu pai e, claro, vieram meus avós e os poucos primos e tios que moravam fora. Os parentes aproveitaram a ocasião para conhecerem a nossa nova casa e saberem as novidades.

 

Carlos compareceu. Esse era o nome do rapaz que me arrancava suspiros, acordada ou em sonhos. Duas ou três amigas já sabiam do meu interesse e trataram de convencê-lo a aceitar o meu convite para ir à festa. Ele, tímido e recluso, resistiu um pouco, mas acabou cedendo.

 

Do resto eu mesma cuidei. Desde a dança desajeitada, pois o Carlos não tinha nenhuma habilidade para conduzir uma dama pela pista, tratei de me insinuar, deixando-o constrangido e, ainda que tentasse disfarçar, visivelmente feliz. Mais para o fim da festa, estávamos numa premeditada roda de amigos, que foi se desfazendo, até ficarmos apenas nós dois.

 

Era a minha vez de conduzir a próxima dança: um sorriso no meio de um comentário qualquer sobre a lua... a iniciativa de levá-lo pelas mãos para um lugar longe do barulho... o descompasso da respiração ofegante... o beijo, inicialmente trêmulo, sem jeito, mas que não demorou a ganhar cores, volume, intensidade e temperatura.

 

No entanto, meu melhor presente de 15 anos não decepcionou. Evoluímos rápido para um namoro. Carlinhos, como passei a chamá-lo, era tudo de bom. Atencioso, carinhoso, educadíssimo e adorado pelos meus pais. Como bom namorado, sabia aproveitar os corredores e cantinhos escondidos do colégio para deixar nos meus lábios inchados um sorriso feliz até o término das aulas.

 

Sendo religioso, me apresentou as quermesses que aconteciam nas paróquias da região. Eu achava lindo esse lado devoto do meu amado. Era um homem de fé, que acreditava no sobrenatural e pensava na espiritualidade como algo tão parte de si como as coisas físicas e materiais, portanto, cuidava não só da sua saúde física, mas também da saúde da alma.

 

Eu, sendo o lado profano da relação, não perdia qualquer oportunidade de provocar a carne. Adorava namorar nos coretos ou numa esquina mal iluminada. Só dois anos depois, numa tarde chuvosa, no meu quarto, enquanto meus pais faziam uma rápida viagem, conseguimos romper aquela barreira e nos rendemos aos múltiplos prazeres do amor.

 

As cortinas do ensino médio foram fechadas com uma linda formatura, onde nos confraternizamos e fizemos juras de amizade eterna. Estávamos todos cheios de sonhos, planos e inseguranças em relação ao futuro. Para mim, a realidade bateu à porta em menos de duas semanas.

 

Carlinhos me chamou para conversar e revelou o seu grande sonho: ele queria entrar para o seminário e se tornar padre. Me disse que, durante o nosso relacionamento, lutou bravamente para se desvencilhar do desejo do sacerdócio que, entretanto, era mais forte do que ele. Em lágrimas, jurou que se sentia culpado por me fazer sofrer, mas também sofria por dentro a cada beijo molhado e a cada noite em claro que passávamos.

 

Em prantos, a tudo ouvi. Sofri, implorei, não compreendi. Durante os anos de seminário, ainda nos encontramos algumas vezes, e, nestas ocasiões, caprichei na tentativa de desviá-lo do propósito sacerdotal. Não consegui. Resignada, aceitei.

 

Jamais imaginei que um dia estaria diante do padre Carlos. Menos ainda, que entregaria a ele dois filhos para serem batizados.

 

***

 

Aproximava das onze e meia quando Ana Maria chegou da missa. Nesse domingo ela havia ido só à igreja. Seu marido foi chamado ao trabalho para resolver uma urgência. O filho mais velho já tinha os seus próprios compromissos e não era adepto da religião. Os dois mais novos estavam naquela fase em que só saem da cama cedo, aos finais de semana, se obrigados. Hoje a mãe não os incomodou.

 

Ana casou-se com Felipe. Um bom homem, de quem aprendeu a gostar. Era tratada com muito carinho e recebia todo amor que ele era capaz de oferecer. Os filhos tinham o melhor pai do mundo e cresceram saudáveis e felizes.

 

Estava ainda muito bonita, já passando dos quarenta e cinco anos. Suas três gestações não causaram prejuízos à sua beleza e, sem nenhuma modéstia, ela percebia os olhares de cobiça que recebia quando saía de casa. Era uma esposa fiel e tudo seria perfeito, se o Carlos não tivesse voltado e, para piorar, como o pároco local.

 

Devido à fé adquirida na juventude, Ana não perdia as missas dominicais, porém, sempre ficava um pouco constrangida durante as celebrações. Quando o padre Luiz chegou para alternar as solenidades com o padre Carlos, sentiu-se aliviada e, por um lampejo de tempo, nutriu a esperança de que a troca fosse definitiva. Como eles não haviam estabelecido uma escala fixa de dias e horários, ela ainda assistia a muitas missas do seu Carlinhos.

 

Felipe nunca desconfiou que o passado guardava um segredo envolvendo o pároco da cidade com a sua esposa. E nem teria razões para isso. Afinal, eles não eram uma dessas famílias que se destacavam na comunidade religiosa. Frequentavam as celebrações semanais e não tinham proximidade com os padres.

 

Hoje, Ana chegou em casa um tanto pensativa. O sermão a tocara de alguma forma diferente dos outros que já ouvira. Não se lembrava exatamente quais os versículos foram lidos, só sabia que estavam no oitavo capítulo da carta de São Paulo aos Romanos. Ela ainda guardava uma bíblia que ganhou do Carlos durante o tempo de namoro e sabia como encontrar no livro a referida passagem.

 

Depois de almoçar com o marido e os dois filhos mais novos, naquele momento do domingo quando cada um procura um lugar para descansar e ver o dia passar, ela aproveitou para fazer a leitura. Só que, por não saber exatamente os versículos, começou pelo início do capítulo.

 

Algumas passagens do texto faziam a sua pele arrepiar: Ora, a aspiração da carne é a morte, enquanto a aspiração do espírito é a vida e a paz. Porque o desejo da carne é hostil a Deus, pois a carne não se submete à Lei de Deus... Os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus.

 

Como não ficar assombrada com o texto, ao repassar todos os seus pensamentos impuros dos últimos anos? A sua única certeza é que nada, nem o seu casamento, nem a distância, nem o amor do marido, nem um voto imbecil e perpétuo de celibato, a fariam esquecer o grande amor da sua vida! Sábio era o artista que cantava, num dos discos do seu pai, uma frase que dizia “eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira de que os sonhos desfazem aquilo que o padre falou”. E ela sonhava...

 

Ana Maria não costumava comungar nas celebrações do padre Carlos. Quando não conseguia se desvencilhar, tentava em vão afastar os pensamentos pecaminosos ao fechar os olhos e abrir os lábios para que ele deixasse repousar a hóstia sagrada na sua boca. Em algumas dessas ocasiões ela percebeu o tremor nas mãos do sacerdote. Ainda bem que, por causa desta pandemia, tais momentos deixaram de acontecer.

 

Fechando o livro sagrado, olhou para Felipe, deitado na rede, num merecido cochilo vespertino. Sentiu-se culpada pela inocência do homem que a amava tanto. Aquele homem a protegia, provia o melhor para o conforto da família. Ele apreciava a sua beleza e não fazia economias para manter a bela mulher. Pensou na família que construiu. Três filhos lindos, amorosos, do bem. Os dois mais novos foram especialmente abençoados. Eles não mereciam a mãe que tinha.

 

Lamentou pelos sonhos não premeditados, nos quais o padre Carlos largava a batina, a raptava e fugiam para um lugar qualquer, a fim de viverem juntos até o fim.

 

Quis chorar pelas noites em que entregou o seu corpo em chamas aos desejos amorosos de Felipe, enquanto sentia em si as mãos de Carlos, os beijos de Carlos, o cheiro de Carlos... louca, derretia-se em prazeres pelo padre.

 

Ana Maria não conseguia mais conviver com tamanha culpa. Ela sabia dos olhares de Carlos durante as celebrações. Ela não se inocentava. Era culpada pelos decotes, pelo batom vermelho, pelos vestidos que revelavam as formas do corpo já abençoado pelas mãos que hoje derramam a água do batismo, erguem o santíssimo sacramento e, em convulsão, deitam o Corpo de Cristo sobre a sua língua.

 

Tomada por remorsos, se sentindo condenada pelo Deus que tirou de si a grande paixão de uma vida, jurou nunca mais subir as escadas do santuário.

 

***

 

Lembro, como se fosse hoje, do dia em que fui à casa da Ana Mary, como eu gostava de chamá-la, para comunicar a minha decisão. Há mais de um mês eu já pensava numa forma de fazer isso. Foi triste. Chorando compulsivamente, fui embora. Ela ficou inconsolável. Sei que a magoei. Nada que eu dissesse faria com que ela me perdoasse naquele momento. No meu peito, essa ferida nunca parou de sangrar.

 

Não dormi naquela noite. Busquei refúgio nas orações ao Cristo crucificado, que me olhava triste, do alto da parede do meu quarto, no terço pendurado à cabeceira da minha cama e na certeza do sonho que sempre alimentei e que, cada vez mais, voltava sobre mim em forma de cobrança, como se eu estivesse negligenciando o meu chamado divino ao insistir numa relação meramente humana.

 

Ao interromper todos os meus planos atuais e voltar ao propósito para o qual fui chamado, senti que estaria não só fazendo o que era certo, mas também protegendo a mulher que amava. Temia que o castigo pela minha desobediência fosse a perda da doce Ana Maria.

 

Os anos de seminário não foram fáceis. No início, a saudade da família, o sofrimento e o remorso por ter deixado a única mulher da minha vida, a dura adaptação à rotina e disciplina impostas pela Ordem. Em duas ou três ocasiões a reencontrei e cedi aos anseios da minha carne. O prazer de tais momentos voltavam contra mim em forma de culpa. Ora a culpa era pela minha fraqueza, ora a culpa era por mais uma vez me despedir deixando o seu rosto encharcado de lágrimas.

 

Para me livrar do passado, mergulhei fundo nos estudos e não demorou para que eu me destacasse perante os demais alunos. Os estudos de história e filosofia acharam em mim um terreno fértil para expandir o pensamento e a minha visão de mundo. Já os estudos teológicos me abriam para um Deus que é amor, em contraponto a um Deus de juízos, que os meus superiores insistiam em me mostrar.

 

Enfim, perto dos 30 anos me ordenei. Fui designado para ser pároco de uma cidade pequena, com fiéis, em sua maioria, já idosos e muito comprometidos com a vida religiosa. Foi uma boa experiência, pois me aproximou muito do serviço social, apurou o meu olhar para o ser humano e para as dores às quais todos estamos sujeitos. Foram muitas visitas, nas quais era recebido com broa, queijo e café. Tive o prazer de realizar fartos batizados e, como não poderia deixar de ser, atendi a alguns pedidos de extrema-unção e celebrei solenes missas fúnebres ao cair da tarde.

 

Já havia transcorrido mais de uma década desde que saí da casa dos meus pais e entrei no ônibus que me levaria ao seminário. Depois das recaídas, afastei de vez de Ana Maria. Minha mãe, por sua vez, fez questão que chegasse até mim a notícia do seu casamento. Me contou que ela havia encontrado um bom rapaz e que havia superado a paixão da adolescência. Agradeci a Deus por aquela bênção.

 

Estava há cinco anos e alguns meses prestando os meus serviços sacerdotais àquela comunidade quando o bispo da nossa arquidiocese me procurou com um sorriso largo no rosto. Ele me contou que o velho padre da minha cidade natal havia falecido e eu fora o escolhido para substituí-lo. Julgava que eu ficaria muito feliz de estar próximo aos meus pais já idosos e, por outro lado, a comunidade se sentiria muito honrada ao receber um dos seus filhos como o novo pastor do rebanho do Senhor naquela cidade.

 

Agradeci, demonstrando o maior entusiasmo que consegui. Fiquei mesmo muito feliz com aquela indicação, além de que, confirmava que eu estava desempenhando bem as minhas funções e por isto eu merecia tal oportunidade. Porém, o meu coração logo deu um salto e me fez lembrar que, entre as ovelhas do rebanho, haveria uma em especial.

 

Foram muitas noites sem dormir até o dia da minha apresentação na igreja matriz. Para meu alívio, a igreja transbordava de tanta gente. O templo foi tomado pelos meus parentes, amigos da família e curiosos. Se ela estava lá, não a vi.

 

Por várias semanas me preparei para o encontro inevitável. Rezei muito. Me fiz relembrar os votos e aceitei, de coração, o castigo que o Deus de justiça havia guardado para mim. Afinal, era neste Deus que os superiores da Ordem queriam que eu acreditasse através dos estudos no seminário.

 

Ela estava lá, na ponta do banco da segunda fila, à direita do altar. Estava ainda mais linda. Ao seu lado, o marido com o filho sentado nos joelhos. Quando ela se levantou, percebi que outra criança estava sendo gerada em seu ventre. Abençoei a congregação e encerrei a missa. Nossos olhos teimavam em se encontrar para, instantaneamente, se desviarem. Não nos falamos naquele dia.

 

A primeira vez aconteceu no dia em que, acompanhada do esposo, veio pedir para que eu batizasse o recém-nascido. Foi uma conversa curta, protocolar, de cabeça levemente abaixada. A maior parte da conversa foi conduzida por ele. Senti uma imensa paz interior ao perceber o quanto aquele homem amava a sua família e não se furtava a demonstrar esse amor. Felipe era o seu nome. Gostei dele. Pensei comigo: Cuida bem dessa mulher que eu amo e a faça feliz. Sou capaz de te matar se ela vier a sofrer por sua causa.

 

Com esse pensamento egoísta encobrindo o meu pecado da cobiça, abençoei e despedi o casal, ignorando que, se alguém a fazia sofrer, este era eu.

 

O mesmo ritual aconteceu quando nasceu o terceiro filho, o segundo sobre o qual derramei a água consagrada e proferi bênçãos para a sua vida, com o mais paternal dos sentimentos.

 

Lembro bem das vezes em que ela entrava na fila da comunhão. Por estar sobre um degrau, eu tinha uma visão privilegiada do seu decote, dos cabelos caindo sobre os ombros e da sua boca aberta para receber a hóstia sagrada. Em tais momentos, eu quase entrava num transe. Numa dessas ocasiões, fiquei tão nervoso ante aqueles lábios vermelhos, que precisei de um movimento sutilmente rápido para deixar que a hóstia, literalmente, caísse sobre a sua língua. Eu tremia tanto, que esbarrei um dedo na sua boca, que deixou em mim um pouco do seu batom. Claro que ela percebeu.

 

Para suportar todos esses anos de culpa, segredos e resignação, me apeguei ao Deus no qual eu realmente acreditava. Encontrei refúgio nas palavras do apóstolo em sua carta: Se Deus é por nós, quem será contra nós? Quem poderia acusar os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? Cristo Jesus, que morreu, ou melhor, que ressuscitou, que está à mão direita de Deus, é quem intercede por nós! Ele conhecia o meu coração e contemplava a minha luta contra a carne. E assim eu continuava.

 

Já passa das quatro da tarde e estou aqui, deitado na minha cama. A mala está pronta ali no canto. A casa paroquial está toda fechada e dispensei a empregada. Padre Luiz, neste exato momento, está oficializando a cerimônia fúnebre no cemitério da cidade.

 

A minha Ana Mary deixou uma carta enigmática, dizendo que não suportava o peso da existência e a tristeza que a consumia por dentro. Ninguém compreendeu. Era linda, de sorriso discreto, mas sincero, gentil e tinha uma bela família. Eu compreendi.

 

Inventei um mal-estar e pedi ao colega de batina para conduzir a solenidade da forma mais respeitosa e carinhosa para aquela digna família.

 

O mundo deu voltas, nos reencontramos e ela se foi, como eu tanto temia aos dezenove anos. Não sei se continuo acreditando num Deus de amor. Não quero mais falar dele, nem cuidar do seu rebanho.

 

Enquanto eles sepultam o meu amor, eu parto. Quero viver recluso, em meditação e penitência, até que um dia eu vá ao encontro dela, se Ele assim me permitir. Amanhã o padre Luiz vai ter que assumir o rebanho do Senhor.

 

Não vou me despedir.

 

 

*** Todas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia Católica Online.

Imagem: Gisely Poetry

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 28/02/2023
Reeditado em 23/03/2023
Código do texto: T7729976
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