Esse Cara

As diferenças entre nós dois eram gritantes.

Ele trabalhava na linha de produção de uma indústria e mal tinha terminado o ensino fundamental e eu era médica.

Ele vinha de uma família humilde e eu nasci em berço de ouro.

Ele usava roupas simples e eu sempre elegante com roupas de grife.

Ele era rude, cabelos maltratados, pele grossa, queimada pelo sol e eu sempre com cabelos bem cuidados, pele fina e bem tratada, perfumes de bom gosto e andava impecável.

Ele não sabia se expressar e falava de maneira muitas vezes errada e vulgar e eu acostumada a com a linguagem culta.

Ele conversava sobre assuntos cotidianos e falava de um mundo que eu não conhecia e eu me sentia encantada com seus casos tão prosaicos.

Eu nunca me importei com formalidades e estava acostumada a chocar e assustar ao quebrar tabus e preconceitos, ao quebrar protocolos e regras preestabelecidas.

Entre nós tinha tudo pra dar errado, segundo moralistas, elitistas e palpiteiros.

E foi assim que conheci esse cara:

Quando formei médica resolvi ir para uma cidade do interior.

Queria conhecer o outro lado da vida. Nasci em berço de ouro, mas sempre tive uma grande consciência social. Eu queria viver a realidade de uma cidade pequena.

Meu pai e meu noivo não aceitaram a minha decisão e queriam a todo custo me fazer mudar de idéia. Mas eu sempre tive minhas próprias convicções e opiniões e não abria mão delas. Disse que ficaria dois anos lá e eles protestaram, mas eu acabei indo.

A cidade, como todo lugar, tinha grandes diferenças sociais onde muitas pessoas passavam por muitas dificuldade e outras tinham muito mais que precisavam. E ostentavam.

Era uma cidade conservadora e como tal cheia de preconceitos e elitismo.

Eu montei meu consultório. Como a cidade tinha poucos médicos e eu era muito dedicada, formei logo uma boa clientela. Nunca deixei de atender quem não pudesse pagar.

Um tempo depois uma profissional da educação veio me convidar para dar aulas na área de ciências em uma escola para adultos. Era uma escola com a proposta de oferecer suplência para o ensino fundamental e médio a quem não estudou no tempo certo.

Eu nunca havia sido professora, mas estava entusiasmada com a idéia. Poderia saber um pouco mais sobre aquele mundo que eu desconhecia. E eu me joguei de cabeça naquele projeto. Atendia no consultório durante o dia e trabalhava na escola à noite.

Eu sempre fui muito comunicativa e fazia o social na escola. Isso cativava os alunos.

Lucas, meu noivo, sempre me pressionava pra voltar e eu sempre dizia que ia ficar lá o tempo que quisesse. Na verdade eu nunca gostei muito dele. Estava com ele mais por pressão de nossos pais que viam naquela união um negócio lucrativo. Éramos filhos únicos e um dia poderíamos unir as fortunas de nossos pais. Tanto nossos pais como ele só pensavam em dinheiro e juntar cada vez mais.

Pouco tempo depois que estava trabalhando na escola chegou em minha sala um aluno, um rapaz mais ou menos da minha idade.

Era ele, Tiago.

Um cara simples, maltratado pela vida, mas lindo. Tinha os cabelos e olhos castanhos bem claros, um sorriso tímido e lindo. Era rústico, alto e forte.

Ele me olhou sem tentar disfarçar sua admiração. Eu fingi que não percebi.

Conversamos e ele não tirava os olhos de mim. Eu me sentia bem com isto.

Ele sempre vinha conversar comigo e ficava cada vez mais evidente que ele estava se encantando e sentindo uma grande atração por mim. Eu por minha vez tentava me enganar que não estava sentindo atração por ele. Mas não conseguia parar de pensar nesse cara tão diferente de mim. Ele me falava sobre sua vida de uma maneira tão espontânea como se estivesse falando consigo mesmo. Coisas que talvez nunca tenha conversado com ninguém. O seu modo de se expressar era tão franco e sincero que eu me lembrava do quanto as pessoas do meu meio tinham reservas e cuidado ao falar.

Um dia ele me perguntou se eu tinha namorado. Eu disse que era noiva e vi a decepção nos olhos dele. Ele disse tinha uma namorada, como se quisesse me deixar enciumada.

Eu sentia que estava nascendo um sentimento entre nós que não seria bom nem pra mim nem pra ele, mas eu não queria e nem podia fugir do que estava rolando.

Lucas me pressionava pra eu voltar, pra marcar o casamento e sentia que eu estava cada vez mais fria com ele. Ele me questionava e queria saber o que estava acontecendo. Ele se queixava ao meu pai, que também estava me pressionando a voltar.

A única certeza que eu tinha é que não queria voltar. Talvez não quisesse voltar nunca.

Uma noite quando saí da escola Tiago estava me esperando. Perguntou se podia me acompanhar. Ele me olhou demoradamente, eu senti que ele iria me beijar. Eu queria tanto aquele beijo, mas lhe faltou coragem.

Depois daquele dia ele começou a se afastar de mim. Acho que sabia que o que estava acontecendo entre nós não ia acabar bem.

Mas eu não me importava com isto. Decidi que não ia fugir daquele sentimento que estava nascendo em mim. Nunca tive medo de encarar a vida de frente e não teria medo de amar. Mesmo sendo tão improvável aquele amor.

Eu o procurei e perguntei porque estava fugindo de mim. Ele ficou nervoso e saindo me deixou falando sozinha. Eu fui atrás. Quando o alcancei parei o carro e disse que precisava falar com ele, descendo do carro.

Nós nos olhamos demoradamente. Ele então me puxou pela cintura e me beijou. E eu me entreguei àquele beijo que queria tanto.

-Entende agora porque estou fugindo de você?

-Eu não quero e não vou fugir.

-Você sabe que é impossível. Eu não posso gostar de você.

-Não lute contra o amor. É inútil.

-As vezes eu penso que estou ficando louco.

-Eu também.

-Pois é. Nossos mundos são diferentes.

-Mas eu quero ficar louca.

Tirei minha aliança de brilhantes do dedo e joguei dentro do carro, disse que não usaria mais. Terminaria meu noivado.

-Você enlouqueceu, Gisele?

-Enlouqueci. Porque você não enlouquece também?

-Você não percebe que não é possível?

-Uma vez ouvi, não sei onde, que o amor não se divide entre o possível e o impossível, mas entre o grande e o pequeno, entre o falso e o verdadeiro.

Eu o beijei.

No final de semana Lucas foi me ver. Ele notou a falta da aliança.

-Cadê sua aliança?

-Perdi.

-Como? Você me diz nessa tranquilidade que perdeu uma aliança de brilhantes que vale uma fortuna? A aliança do nosso compromisso?

-Quer que eu lhe reembolse?

-Você sabe que não é isto.

-Sei que é isto. Você só pensa em dinheiro e no valor material das coisas. Eu quero romper nosso compromisso. Você sabe que eu nunca lhe amei.

-Tem outra pessoa?

-Não. Só resolvi que não quero mais me casar com você.

Ele continuou perguntando e tentando fazer eu voltar atrás.

Meu pai tentava me fazer mudar de idéia. Mas eu estava irredutível. E ele acabou sabendo do meu romance com Tiago e o mundo veio abaixo. Ele tentou me coagir, ameaçou Tiago, tentou comprá-lo. Mas nós estávamos firmes e sabíamos o que queríamos.

O tempo foi passando e Tiago e eu estávamos vivendo um amor de corpo e alma. Nos braços dele eu me sentia plena e feliz. Ele sabia muito bem como satisfazer e fazer uma mulher feliz e eu sabia que ele também estava feliz comigo.

Mas as investidas de meu pai e o fato dele se sentir inferior a mim começou a pesar e ele começou a se sentir mal com o nosso relacionamento.

Até que chegou o dia em que ele não conseguiu mais segurar a barra.

Ele começou a falar que não dava certo, que ele não estava se sentindo bem e que era pra eu seguir o meu caminho que ele seguiria o dele.

-Eu superei todas as barreiras, bati de frente com meu pai, rompi meu noivado, rompi com tudo pra ficar com você, Tiago.

-Mas eu não superei, Gisele. Eu estou me sentindo mal por ser inferior a você, por não estar à sua altura. Eu estou me sentindo infeliz por saber que não sou homem pra você.

-Isto é um machismo besta. Você é o homem que me faz feliz.

-Pense o que você quiser. Mais cedo ou mais tarde você vai perceber que não sou bom o suficiente pra você.

Eu chorava. Tinha mergulhado de cabeça naquele amor.

-Você não me ama como eu te amo.

-Eu te amo, jamais vou te esquecer nem que se passe mil anos. Eu te amo tanto que não quero te prejudicar. Tenho medo desse amor tão imenso que eu sinto.

-Fica comigo Tiago. Eu preciso de você. Eu deixo tudo por você.

-É impossível. Não torne mais difícil a situação. Adeus, Gisele.

Eu não disse mais nada. Eu o beijei. Um beijo tão intenso como se quisesse levá-lo comigo. Depois fui embora.

Eu decidi que iria embora daquela cidade. Encerrei todas as minhas atividades ali e voltei pra casa.

Estava tão triste e infeliz que não queria saber de nada. Não queria trabalhar. Para afrontar meu pai disse a ele que iria viver sem trabalhar e torrando o seu dinheiro. Nem queria ver Lucas. Passei um ano vivendo assim.

Mas eu não era assim e a futilidade me deixava ainda mais infeliz.

Peguei aquela aliança de brilhantes e vendi pelo melhor preço que consegui. Mandei o dinheiro para que a diretora da escola comprasse o que pudesse para suprir as necessidades das pessoas carentes daquela cidade. E assim ela fez.

Voltei a trabalhar e comecei a me especializar em cirurgia plástica.

Uma vez por semana passava o dia atendendo em uma comunidade carente pois não conseguia viver sem fazer nada por quem necessita.

Fui voltando a viver. Algumas vezes saía com Lucas, mas sem prometer compromisso.

Nunca mais vi Tiago, mas muitas vezes conversava com a diretora da escola e ela me dizia que ele estava estudando e que estava sempre sozinho. Eu tentava esquecê-lo. Por fim não tive mais notícias dele.

Tempos depois eu me casei com Lucas. Não sentia amor por ele, mas sabia que não sentiria por ninguém e era um casamento conveniente para nós dois. Principalmente pra mim pois ele assumiria o comando dos negócios e eu poderia continuar com a medicina que sempre foi minha paixão.

Tivemos dois filhos que passaram a ser a razão da minha vida.

Vivemos um casamento morno e tedioso e uma vida enfadonha e sem sentido como muitas vezes é a vida de milionários e os casamentos realizados por conveniência.

Na maioria das vezes viagens, luxo, carros caros, jóias, ostentação, vida social não trazem satisfação e felicidade. Muito pelo contrário, deixa as pessoas com os cofres cheios e a alma vazia. As pessoas insistem em juntar muito mais do que precisam e não vivem.

Se não fossem as nossas diferenças e os preconceitos da sociedade, Tiago e eu poderíamos ter vivido o nosso amor e sermos felizes.

Mas acredito que tudo aconteceu como era pra ser. Eu sempre estive no lugar certo na hora certa.

Não sei se ele nunca me esqueceu como falou naquele dia. Só sei que eu nunca o esqueci. Guardo o amor em meu coração. Apenas me acostumei a com a ausência dele.

Conheci o amor que jamais conheceria se tivesse me casado com Lucas antes de conhecer Tiago e tive a felicidade de compartilhar minha vida com ele. E nunca fui tão feliz como naquele tempo.

Pena que ele não segurou a barra de amar uma mulher como eu e preferiu dizer adeus…

(Obra de ficção e fantasia)

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 24/02/2023
Reeditado em 20/03/2023
Código do texto: T7726802
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