Gênio analfabeto
De era em era nasce um gênio. Ou dois. Ou não nasce nenhum, fabricam-se. Gênio nascido é das legitimidades, o feito à mão é esmerilado. Lá nas Taiobeiras, o esmeril era de um gênio original, cuspido do corpo morimbundo da mãe. Não teve estudo, ajeitou-se no bê-a-bá pescoçado da janela, treinou na Bíblia e lapidou-se na mecânica desvendada na bisbilhotice.
No cedo foi que precisou de rumo. Esquecido pelo pai. Enxotado pela descarinhosa madrasta. Achou importância no lado de dentro da prima, com quem casou-se aos dezesseis anos. Ela, seis dias mais velha. Os mesmos olhos de profundo celúreo de descendentes de alemães, provenientes da Colônia Nova Filadélfia no Vale do Mucuri, se olhavam nas noites de amor ou nos desaguisados de dias difíceis.
Os filhos foram chegando, de ano em ano, sem bispo de dificuldade, mas elas eram afincadas, sem tardio, sobejando. Ele, que por diante chamaremos Felintro, desabilitava juízo, raparigava, era um biriteiro e comungador dos “istraiques”. Tantas vezes voltava para casa sem a camisa, que deixava no Pôquer, batido, apanhado.
Ela, que agora ganha o nome de Lorde, pelejadora sem largura, criava as galinhas, semeava o quintal, lascava as lenhas, dava de comer ao fogo com as felpinhas de condombá no fogão de lenha, com os peitos pra fora aleitando os pequenos enquanto pudesse. Vindicar não lhe cabia, resignava-se.
Foi então que veio um nove de fome. A era do rádio, antes das cantorias feiticeiras, era de notícias desprimorosas. Um assombro de crise, que nem nas catações de bugigangas, nem nos consertos de intuição, se dava o escambo de sustento. Felintro apavorou-se. Sua pacatez findava nos olhos miúdos de uma prole esfomeada.
Numa manhã acocorou-se na beira do riacho e ficou vendo as piabas fazendo piruetas na água limpa. Espelhou de pensar: “será se eu panho na enxada?” Nesse foro de precisão decidiu “panhar”. Foi ajudar a mulher na labuta de cada dia, semeando feijão, cana, café, mandioca e o que desse pra menino esfomeado remansar. Sentiu um corisco de ventura e animou-se, mas no interno das coragens era afracado para aquela faina, preferia serviços de pensar e não de lombalgias. Semeava e colhia na toada da urgência, e com as inteligências provocadas criava petrechos de atenuação da lida. Desmanchou uma bicicleta velha que fez virar máquina de lavar panos, com um torno achado no lixo fez moenda de café, os gravetos abestalhados no chão viraram rastelo e até uma sanfona velha foi transformada em um piano de foles para animar os ócios. Soltava-se nas horas existindo como dava, sem satisfação genuína.
Ouviu falar de um dentista prático por aquelas bandas. Interessou-se, viu vantagem. “Se um homem faz eu também posso fazer.” Investigou, atalaiou pela janela, foi descobrindo os formantes da chapa. No começo estimava irreal, malgastava as coisas na folha de bananeira, então buscou socorro na mulher, que analfabeta era sabida e poderia lhe dar bons conselhos: “Tem que dar tempo ao tempo, misturar direito, estipular.”
Dona Lorde, na resignação de sequaz, ofereceu a própria boca para que o marido aprendesse a profissão. Uma turquesa, muito sangue, lágrimas, água de sal e cânfora. Muito cuspe vermelho, dor e mais dor. Todos os dentes foram arrancados. Arrancam-se dentes por amor, doam-se dentes por candidez.
Lá vai uma mistura de alginato com um terço de água fria, rechear a moldeira com essa massa mole que ao contato com a saliva do banguela fica rosa no pronto. A gosma gelada era deleitante para as gengivas sensíveis. Os dentes vinham enfileirados em uma plaquinha de plástico colados em uma cera vermelha e sempre anuindo a escala vita de cores, com opções sortidas no atendimento máximo a todos os tipos de rostos e arcadas. O casal esculpia a dentadura, simulando os sulcos das gengivas, com suas imperfeições, um trabalho artesanal e artístico. Restava agora ao paciente regalar sua nova dentição, o novo sorriso lhe indenizaria a dignidade através de uma oclusão perfeita e uma mastigação eficiente, com estética airosa.
Foi um tempo de muita aplicação, Seu Felintro treinou em Dona Lorde, fez e refez as dentaduras uma porção de vezes até que pudesse oferecer seu préstimo aos clientes. Ela também aprendeu e ficou com a parte de esculpir e cozinhar cada peça, no poscênio. O apregoado era ele, fez fama e fortuna com as supremas dentaduras da região, daí por diante só conheceu na vida o auge.
Ela foi a mais silenciosa das criaturas, a mãe mais amável, amanteigada avó. Foi a esposa resiliente, veemente devota de Cristo e do marido, fez votos de ser santa quando deu-se ao primo aloucado e genioso. Fez dele um homem barulhento e musical, engenhoso e feliz. Dona Lorde foi sempre de seu Felintro a luz. Seu Felintro foi sempre de Dona Lorde a razão de existir.