Amor sacrílego
“Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora eu provavelmente chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim. ”
Clarice Lispector
Meu corpo é um vazio: meu espírito saiu procurando outro espírito que nunca se apresentou, mas o corpo Dele é visível. Está em toda parte. Eu giro ao redor dele como uma mosca em volta da lâmpada. Outras mulheres me acham louca, pois elas não sabem que quem ama o Amor em tudo o vê.
Dentro de casa: pulo da cama, dobro o lençol, faço o café, limpo o fogão, passo a vassoura, ligo a máquina de lavar. Olho e ouço o pai e a mãe, idosos. E, no entanto, giro ao redor Daquele amor como a roda gira em torno do eixo.
Fora de casa: faço o mercado, passo na quitanda, vou à farmácia, paro no salão. Estaciono no canteiro, absorta. Ele pode estar ali.
Poucas pessoas me convidam para sair. As amigas mais próximas arriscam dizer que homem nenhum cai do céu, mulher! Eu as ouço, pois aprendi a ouvir bem. Faço sala para elas todos os finais de semana, mas a noite faço a cama pensando Nele.
E toda noite a mesma coisa. Eu O olhando. Ele parado de braços feridos me esperando, grudado na parede do quarto acima da cabeceira da cama. Não desce de lá. Com Ele ali, varo a noite em vigília. E a noite passa como passa um desconhecido. O que fica é o cheiro das rosas que pula a janela e invade o quarto, celebrando minha paixão. No jardim do meu corpo Ele me faz subir aos céus na sua frente.
Meu prazer ficou muito tempo esparramado pelo corpo como fruta verde, fruta de vez, depois madura. Antes que o prazer apodreça eu o transfiro para os olhos, para o ouvido e a ponta dos dedos. Hoje eu vejo aquele Homem em todo lugar, ouço sua voz no vento. Com o toque das mãos faço-me sentir como se Ele estivesse aqui, em mim.
Estas mãos, quentes e suadas, sabem o que eu quero e meus pés inquietos procuram nestes quartos, ruas e praças o meu Homem. Porém, não o quero com outro corpo, quero naquele corpo que desde criança aprendi a amar. Antes mesmo de estar na minha parede Ele já esteve em meus braços: O carreguei no colo em numerosas procissões.
Aquele Homem é um reflexo meu no espelho de minha mente. Sinto-O como me sinto. E sinto até sofrer. Mas, meu sofrimento me mantém desperta. Diante Dele não consigo fechar os olhos, nem naquelas horas.
Uma mão profana O conduz até minha boca aos domingos de manhã. Eu O como em trigo, desejando comê-Lo em carne. A boca litúrgica diz que é carne, mas meu corpo sabe e sente a diferença entre um e outra. Sei que riem de mim, pelas costas, essas mulheres que têm um marido na cama e o rei na barriga. Deixo que riam, saio da missa com a cabeça erguida e o Rei no coração.
Sempre desejei que meu quarto fosse um púlpito, um altar onde ele pudesse discursar, bradar e vencer o mundo. Ele venceu o mundo, assim O disse, mas cada pedra que Ele pisou dói até hoje nas plantas dos meus pés. E os cravos, então? E a coroa? O sangue que foi derramado por todos, propiciou para alguns a vida e para outros propiciou o sofrimento.
Por hoje, nestas linhas, quero deixar claro, principalmente para mim mesma, que é ao Homem que eu amo, a parte divina eu temo e desconheço. Lá, na parede do quarto, em gesso e solidão o Cristo balança. Talvez seja um terremoto em algum lugar, ou a trepidação dos carros que passam na rua. Ou meus olhos que oscilam entre lágrimas, não sei. O que sei é que ele parece se desprender pouco a pouco e cair como um cobertor sobre mim. Vejo os braços, o abdome, a sunga branca e o mais importante: o rosto de homem sério e fiel.
Que fique expressa a minha vontade: quando eu estiver morta que queimem este diário e joguem as cinzas sobre o meu corpo que somente a terra há de comer.