Cerzindo símbolos e sonhos
O círculo dourado ao longe ia, por fim, completando o seu percurso no horizonte, escondendo-se atrás da cadeia de montanhas, em efeitos quadro-a-quadro, como nas obras cinematográficas de Georges Méliès. O céu estava desbotado, mas pequenas pedrinhas incandescentes encravadas nele iluminavam o rosto dela. Os seus cabelos esvoaçam com a brisa suave. Que inveja da brisa! Poder acaricia-los, sentir a sua textura ao toque. Ela ri, embora não saiba de quê. Eu estou sob a mira deles, imobilizado. Eu já tinha me esquecido da habilidade encantadora que ela tem de sorrir com os olhinhos espremidos. Ela parecia ter se perdido de mim; mas agora ela está aqui, comigo. É bom, ainda que seja terrível, como se ela quisesse esmagar o meu coração com o seu sorriso amoroso. Mas eu a conheço bem, e sei que não faz por mal. Por onde será que ela andou por esse tempo todo?
Mas, o quê? Ela já vai indo... me deu as costas. Quem são eles lá embaixo? Ela demonstra estar à vontade ao lado daquela gente. Desgraçados. Ela dá entender que nem sente a minha falta, na companhia deles. Será que ela sente por mim a mesma dor que eu sinto por ela, quando não estamos juntos? Que miserável eu sou por não ser correspondido à altura. Aquele ser tão frágil e delicado me domina completamente. Como pode uma coisa dessa!? Quem ela... me esnobando como se eu não fosse nada... não passa... de uma ordinária...
A íris verde-mar daqueles olhos não me são estranhos. Mas não são de Joana, e sim do pai dela. Ele tem uma presença tão pacata. O seu jeito sereno afugenta qualquer coisa de obscuro em mim. O seu Aristides trabalhava de enfermeiro na maternidade, e se eu me lembro bem, também encarnava a função de médico espiritual. Diziam que operava por intermediação do além coisas do arco-da-velha. Quanto a mim, não cria nem duvidava. Mas o que ele faz aqui? Não tinha.... Então deve ser dele que ela herdou aquela presença tão característica... eu não sei dizer... suave? Como brisa. Ela está lá, na cozinha, ao lado do filtro de barro, entretida com seus amigos, em roda, e os cabelos sedosos encostando na cintura. E eu aqui, acamado. Será que está brava comigo? Ela não olha na minha direção, como se me evitasse. Acho que é um dom que eu tenho de estragar tudo. A expressão estampada em sua face denota uma aversão medonha. Como é possível eu ter magoado ela tanto assim? Ela nunca vai me perdoar.... Eu quero ir embora daqui.
Então é ali que a gente morava, naquela casinha enfurnada no meio do matagal. A vista daqui é panorâmica. O pai saia antes do sol se levantar, por aquele caminho de chão que serpenteava até dar na estrada, só para não perder o ônibus e chegar dentro do horário no trabalho. Era muito correto com os seus, e todos o respeitavam, porque era trabalhador. Foi pobre a vida inteira, mas quando já estava no leito de morte, o que se via era um homem digno e honrado, despido de vaidades, com a leveza desconcertante de uma criança, plenamente satisfeito com a vida, sem queixas. O lume em seus olhos me aterrorizava, de tão horripilantes que eram. Com os dedos grossos da mão ele acariciava de leve o cabelo do menino, que não fazia outra coisa a não ser chorar, enquanto ele soltava uma gargalhada estrepitosa e sem maldade. A tia Dolores ralhou com ele. Não perdoa o irmão nem no instante final. A mãe catou o menino chorão e o colocou no colo, levando-o para longe dali, tentando acalma-lo. O colo dela era bom e quentinho assim como estar debaixo das cobertas numa manhã friorenta de inverno, lá para agosto, quando se espanta inicialmente com a hora, ao acordar, só para se tranquilizar depois, ao lembrar aliviado que era sábado, e que poderia ficar até mais tarde na cama. Que menino mole, vivia grudado na barra da saia da mãe. Não é à toa que faziam ele de bobo na escola. Tinha que levar umas surras para aprender a virar homem. É assim que se começa, desde cedo, se não dá problema lá na frente. Aí fica mais difícil para descomplicar. Inspirar, expirar...
É lúcido e molhado como as águas do rio, as quais refletem a luz solar num dia límpido, aberto e sem nuvens. Uma dramaturgia noturna espontaneamente encenada por meio de uma sucessão de imagens encadeadas umas às outras. Então foi assim que Adão, o primeiro homem sob a face da terra, sentiu-se quando ele descobria maravilhado aquele admirável mundo novo? Ou Atman reconhecendo-se Brahman. O deus menino tateando às escuras, imerso na deslumbrante e insólita aventura de explorar a plenitude de suas potencialidades infindáveis, enquanto Deus Todo-Poderoso criando com a sua mente um mundo habitável. Hum, segundo a
professora da escola dominical, os atributos teológicos de Deus são três: onisciência, onipotência e onipresença. Espalho olhos e ouvidos por todos os cantos, manifestando a ubiquidade. Como expressão de minha potência fecunda encerro-me num Eu Corpóreo Imaginário, plasmando em conformidade com a minha vontade a realidade ao meu redor. Por fim, valho-me da onisciência que é minha por direito, descortinando num processo de autoconhecimento por excelência uma dimensão essencialmente subjetiva, e o sonho é o teatro onde o sonhador é ao mesmo tempo o ator, a cena, o ponto, o diretor, o autor, o público e o crítico, como me diz, por fluídos telepáticos, o mestre Jung à minha frente, sentado em posição de lótus.
Sim, é bom retomar os ensinamentos antes... E não é que os exercícios meditativos, e todas aquelas leituras místicas, deram certo? Após meses de fracassos sucessivos e desanimadores, finalmente irei começar minhas explorações lúcidas como argonauta de oceanos oníricos. Inspirar, expirar.... Sinto-me revigorado, como quando eu tinha meras duas décadas de existência, um homenzarrão capaz de fazer suspirar qualquer brotinho. Hum, sonhar inconscientemente e esquecer de si próprio são basicamente experiências similares. Que troço alienante! É um homem despedaçado em mil cacos cortantes, de incertezas, de frustrações, de paixões e de anseios. Faz-se necessário recolhê-los e juntá-los, colando as partes, ou ainda, para me valer de outra imagem, costurar tecidos de texturas e cores diversas, cerzindo retalhos e símbolos num princípio de integração.