Quando Dudu finalmente abriu os olhos, viu que estava sozinho em um cômodo escuro. Havia um aroma dominante de frango frito. Então se guiou pelo olfato até encontrar comida e água. Da janela aberta, ao lado da cama, vinha um brilho intermitente. Colocou o rosto para fora e deixou que o vento e as gotas de chuva refrescassem sua cabeça, seus ombros, os braços apoiados no parapeito.
Lá embaixo pessoas e carros transitavam pela rua. Gritou para que o vissem, mas sua voz se perdeu no barulho do caos urbano.
Tudo o que Dudu queria era que Mário voltasse.
No outro lado da cidade, Amélia verificava tudo pela terceira vez. O pão recheado amornava no forno desligado. Checou a salada de rúcula na geladeira, e os petiscos especiais que iria servir. Teve que contratar uma assessoria especializada para fazer um jantar sem nenhum item de origem animal. João era vegano.
Conheceu o rapaz em uma regata, no ano anterior. Havia ido por insistência de uma colega de trabalho. Laura havia passado uma semana exaltando as qualidades do rapaz. Amélia nem pensava em se casar e não gostava de esportes ao ar livre, mas foi mesmo sem vontade e se sentindo quase coagida.
Surpreendeu-se com o jovem educado, bonito e inteligente que apareceu. João era muito amigo do marido de Laura. Amigo de infância e de toda a vida. Não entendia como um rapaz tão interessante não tinha namorada.
Tudo o que Laura queria era encontrar uma namorada para o João.
Naquele dia o grupo almoçou no clube, durante a conversa João e Amélia marcaram um “pic nic” no bosque. Foram muitos encontros até que ele a convidasse para conhecer o sítio onde o pai morava. O romance evoluiu tão rápido quanto os planos da moça de ir morar na França e fazer uma pós-graduação em gastronomia, sua verdadeira paixão.
Em setembro do ano seguinte veio o pedido de casamento e combinaram que o jantar de noivado seria realizado durante a festa de fim do ano.
Tudo o que Amélia queria em 2023 era estudar na “Le Cordon Bleu” de Paris.
João pensava em desistir. O pai não queria ir para a festa. O pai não queria ir porque havia um cãozinho no sítio. Um cãozinho que apareceu para pedir comida e foi ficando. O homem não queria deixar o cachorro sozinho, e João pensava em desistir, mas não era por causa do pai. João só queria desistir, mas o pai disse que iria e resolveu levar o bichinho para o apartamento do rapaz. O animalzinho acabou dormindo na viagem.
Tudo o que João queria era poder dormir também.
Fernando esperava. Fernando esperava que a mulher terminasse o ritual de embelezamento. Fernando estava sempre impaciente. Laura só pensava na festa, no casamento e em João indo embora para sempre. Fernando achava que aquela farsa havia ido longe demais. Laura cantava Calypso enquanto se maquiava.
Tudo o que Fernando queria era contar a verdade e que Laura parasse de cantar.
João queria falar. João queria voltar. João queria dormir. João só não queria ir.
João e o pai iam calados no carro. João precisava falar, o pai não queria ouvir o que sempre soubera. Começaram uma conversa neutra. Calaram-se de novo.
– Pai…
– Fale.
– Quero voltar.
– Esqueceu algo?
João falou, se revelou e chorou. O pai gritou. Brigaram sem parar e sem parar o carro. E o carro bateu.
Tudo o que o carro queria era ser desamassado.
O tempo passou. Não houve jantar. O ano virou. Noivado michou. Amélia viajou. Laura está namorando. Fernando se separou. João se libertou (do noivado, mas não do gesso).
Dudu viu a porta abrir e soube que estava salvo. Todos estavam salvos.
No fim, nada saiu como foi planejado, mas tudo ficou exatamente como deveria ser, ou não.
Até o Mário voltou.