Angelina
O belo vaso de cristal que estava sobre a mesa caiu e se espatifou no chão.
Ela tremia de susto e medo. Estava encolhida em um canto. Ficou sem reação. Sua vontade era desaparecer dali.
Diante dela estava ele mais uma vez bêbado e cheirando perfume barato. Cambaleando, esbarrou em seu precioso vaso que tal qual o seu coração se transformou em cacos.
O silêncio da noite aumentava a sensação de solidão.
No escuro da noite tudo parecia um imenso vazio.
O sono fugia e as lembranças povoavam a mente.
Onde estava aquele homem gentil, carinhoso e amoroso que que ela conheceu?
Angelina conheceu Danilo quando tinha dezessete anos e ele vinte e sete. Era um homem bonito, charmoso, inteligente e a tratava como uma princesa. Ele conquistou não só o coração dela como também a simpatia de toda a sua família.
Danilo, ainda tão jovem, já era um sério e próspero homem de negócios. Herdou os negócios e a fortuna de seus pais. Eles morreram em um acidente quando Danilo ainda era adolescente. Seu tio administrou seus bens e ensinou a ele tudo sobre o mundo dos negócios. Quando seus pais morreram ele foi morar com a avó e seu tio. Era filho único.
Angelina era uma bela e elegante garota de classe média alta. Teve uma educação esmerada, era prendada e recatada como convinha a uma mocinha dos anos 1950. Tocava piano e cantava divinamente. Tinha talento para o desenho e pintava belos quadros. Formou-se professora como era comum na época.
Eles namoraram quase três anos e depois noivaram. Ela se sentia a mulher mais feliz do mundo. Ele fazia tudo para agradá-la e parecia até adivinhar seus sonhos para realizá-los. Ela pensava que não havia um homem melhor e mais apaixonado neste mundo.
O casamento foi um sonho de beleza e sofisticação. Uma bela festa foi oferecida aos convidados. O evento foi comentado na sociedade da cidade tradicional e conservadora.
Fizeram uma bela viagem de lua de mel. Ela estava feliz e realizada. Pensava que viveria um casamento perfeito.
Poucas semanas depois ela ficou horrorizada quando ele chegou em casa tarde numa sexta-feira. Estava bêbado. Ela nunca tinha visto Danilo naquele estado e teve uma grande decepção. No dia seguinte ele se desculpou dizendo que foi a uma comemoração com amigos e extrapolou na bebida. Ela, ingênua e apaixonada aceitou as desculpas.
Mas aquela cena se repetiria muitas outras vezes.
Meses depois ela descobriu que estava grávida e se sentiu feliz apesar das farras do marido que muitas vezes chegava em casa bêbado e com marcas de batom e cheirando a perfume feminino.
Ele também ficou feliz e disse que cuidaria dela com o maior carinho.
No quarto mês de gravidez ela teve um aborto espontâneo e descobriu que ele tinha lhe transmitido uma doença sexualmente transmissível e que esta doença foi responsável pelo aborto. Ela chorou e o odiou por ser tão irresponsável e leviano.
Ela fez um tratamento demorado e se livrou da doença. Porém o tempo passava e ela não engravidava.
Tempos depois descobriu que estava novamente contaminada por uma doença. Ela foi se queixar aos pais e disse que queria se separar pois não merecia passar por tudo que ele a estava submetendo. Eles disseram que as coisas eram assim mesmo e que ele era uma ótima pessoa. Ela chorou e descobriu que não podia contar com o apoio dos pais.
Calada e resignada foi se tratar de mais uma doença que o indigno marido lhe transmitiu. E sabia que não seria a última vez pois a última coisa que ele conseguia é ser fiel.
Depois de algum tempo e mais um aborto o médico lhe disse que não engravidaria mais. Ela odiou Danilo que roubou dela a possibilidade de ser mãe.
Há quase quinze anos ela vivia aquele pesadelo que chamavam de casamento. Aquele homem inescrupuloso muitas vezes chegava bêbado e usava seu corpo de maneira desrespeitosa e sem seu consentimento. Ela sentia náuseas com o toque e o cheiro dele.
Até que um dia, depois de passar mais uma noite em claro e com nojo de si mesma por ter seu corpo usado por aquele ser nojento e bêbado que dormia e roncava ali do seu lado, ela tomou algumas decisões. Precisava recuperar sua autoestima e amor próprio.
Parou de sentir pena de si mesma, resolveu que a partir daquele dia começaria a se libertar daquele monstro que chamava de marido. Se não tinha o apoio nem de sua família ela iria se virar sozinha. Com seu diploma de professora saiu em busca de um lugar para trabalhar. Além das escolas estaduais, ali tinha duas escolas particulares.
Como tinha muitos dons e talentos, conseguiu trabalho justo onde mais se sentia bem, na área de artes e criações artísticas.
Depois de ter certeza que sobreviveria, mesmo que modestamente, sem o marido e a família que nunca lhe apoiava, foi conversar com Danilo:
-Eu quero comunicar a você que não pretendo mais viver ao seu lado. Quero me separar, terminar nosso casamento.
-Que brincadeira é essa? Um casamento não se acaba assim.
-Realmente um casamento não se acaba assim. Um casamento acaba cada vez que há traição, cada vez que o homem se deita com vagabundas e depois vem transmitir doenças para a esposa, cada vez que o homem se entrega ao vício da bebida e chegando bêbado em casa desrespeita a esposa, promove quebra quebra e destrói o amor, cada vez que a esposa é tratada como um simples objeto, cada vez que o homem só espalha o desamor. Isto basta pra você ou quer que lhe dê mais motivos?
-Eu nunca quis lhe magoar. Eu posso tentar mudar.
-Você sempre diz que pode tentar mudar, mas é sempre o mesmo.
-Sua família jamais vai concordar com esta separação. Jamais vai lhe apoiar.
-Eu sei. Você representa muito bem o papel de bom marido e homem sério diante deles. Só que isto não me importa. Eu não casei com minha família, casei com você.
-E como pensa que vai sobreviver sem mim e sem sua família.
-Isto é problema meu. Eu prefiro trabalhar, ter uma vida modesta e me sacrificar que ficar ao seu lado. Vou levar minha vida sozinha, se minha família não me aceitar. Prefiro passar fome sozinha que continuar com você.
-Eu prometo que desta vez é sério. Eu vou mudar.
-Não tem mais chance e nem amor. Acabou.
-Se você ousar me deixar eu lhe mato. Prefiro ser viúvo que ser preterido por uma mulher e ser um desquitado.
Ela abriu os braços:
-Pois bem, seja um viúvo assassino. Mate-me. Por certo é preferível morrer que viver esta vida que estou vivendo. A morte é mil vezes melhor que viver como sua esposa.
Ela tinha certeza que, covarde como era, jamais teria coragem de matá-la. Sabia também que apesar de tudo ele a amava. Ele chorou e mais uma vez jurou que ia mudar e que seriam muito felizes.
-Eu não acredito mais em suas promessas e juras. Não suporto mais viver ao seu lado.
-Você pode me dar só mais uma chance? Não vai se arrepender.
-Não. Todas as chances que eu tinha que lhe dar, já dei. Basta.
Ele não disse mais nada. Naquele dia chegou em casa mais cedo que de costume e estava sóbrio.
-Eu tenho uma proposta a lhe fazer.
-Nada do que diga vai me fazer mudar de idéia.
-Eu posso morar na casinha que temos aqui no fundo por um tempo. Você vai ver que eu vou mudar. Vou conquistar seu amor novamente.
-É inútil. Você não vai mudar e não vai me reconquistar.
-Se for assim, eu continuo morando lá e você aqui. Eu não quero me desquitar e sei que uma mulher desquitada é muito estigmatizada e não quero isso pra você. Além do mais eu não tenho ninguém na vida depois que minha avó e meu tio morreram.
-Você quer que a gente viva de aparências?
-É o melhor pra nós dois. Só não admito que você tenha outro e macule minha honra.
-Nem penso nisto. Mas eu quero trabalhar fora. Já consegui uma vaga em duas escolas.
Eles entraram num acordo e passaram a viver de aparências.
Várias vezes ela o viu chegar bêbado e acompanhado com alguma mulher.
Passaram algum tempo nesta situação até que um dia ele chegou com uma mulher. Estava bêbado. Esta mulher e seu comparsa sabiam que ele tinha muito dinheiro em casa. Pensaram ser fácil pegar o dinheiro, mas mesmo bêbado ele reagiu e eles o mataram.
Por mais que tentassem abafar, a notícia se espalhou e o caso se tornou um escândalo.
Angelina ficou arrasada com a violência e com a perda do marido de forma tão trágica.
Percebeu então que ainda o amava mesmo depois de tudo que ele fez.
Ela sofreu com sua morte e viveu seu luto.
Depois, como uma mulher forte que se tornou, assumiu os negócios dele e aos poucos foi aprendendo a ser uma respeitada mulher de negócios e com sua inteligência brilhante, competência, talento e dedicação tocou a empresa e expandiu os negócios.
Levava uma vida discreta e não dava margem a falatórios.
Namorava, tinha seus prazeres e alegrias, mas nunca se casou novamente.