Além Do Tempo
“Vi no horizonte azul a tarde desmaiar
E a noite aproximar
Enchendo de tristeza a solidão do mar
Roubando à natureza a luz crepuscular
E a sós no meu jardim cismava a divisar
Na noite sem luar
A vela que singrando o oceano imenso
Levava para além o meu querido bem
Foi que então veio a saudade e eu chorei
Depois, com lágrimas nos olhos, eu jurei
Jamais prender-me por amor
No cárcere cruel da dor.”
(Letra da música “Noite Sem Luar” autoria de Godofredo Guedes, lindamente interpretada por Beto Guedes.)
Em meados da década de 1910 Gilda era uma jovem de dezesseis anos. Conheceu Tarcísio que já era homem feito com seus vinte cinco anos. Ele trabalhava em um banco da cidade. A magia entre os dois foi imediata. Eles se encontravam e conversavam muito. Foram se envolvendo.
Ele era de família humilde e ela filha de um barão do café.
Logo que o pai dela soube, tratou de separá-los. Ameaçou pedir a cabeça dele no banco, onde era um importante cliente e ofereceu dinheiro pra que ele se afastasse dela.
Ele tinha planos de casar a filha com o filho de um outro fazendeiro de café.
Apesar de todas as ameaças, Gilda não se rendeu. Ela batia de frente com o pai. Encontrava escondido com Tarcísio.
Depois de muitas contendas ele resolveu mandar a filha para a Europa, especificamente para a França, para estudar.
No dia da partida, Tarcísio e Gilda estavam arrasados e ela mal pode se despedir dele. Ele ficou de longe vendo sua amada partir sem saber se algum dia voltaria e se não se esqueceria dele.
Ele se encheu de tristeza. Viu o tempo passar e nem uma carta ela enviou.
Tarcísio se desiludiu do amor e se apegou aos estudos e ao trabalho para esquecer sua amargura. Não se divertia e nem se interessava por ninguém.
Ano após ano ele esperava receber uma palavra dela dizendo que não o esqueceu, uma notícia ou a volta dela. O seu amor por ela não morria e seu coração ficava cada vez mais amargurado
Ela por sua vez se apegou aos estudos pra esquecer a amargura e tristeza de estar longe de sua terra e se seu amor. Acabou ingressando em uma faculdade de medicina. Recusava-se voltar pra não ser obrigada a casar com um homem que não amava.
Por fim ela voltou, chantageada pelo pai com uma suposta doença.
Ao chegar ela soube que seu pai estava totalmente falido e queria usá-la para se beneficiar casando-a com o filho de um italiano que fez fortuna no país.
Ela se recusou e bateu de frente com o pai. Como uma mulher à frente de seu tempo, principalmente depois de sua estada na França, não se curvava facilmente.
Nunca se esqueceu de Tarcísio e decidiu procurá-lo. Soube que sempre esteve sozinho.
Ele abriu a porta e na sua frente estava ela. Ele pensou ser uma visão, um sonho.
Ficou paralisado. Não sabia se ria, se chorava, se batia a porta bem na cara dela, se abraçava, beijava. O que fazer numa hora desta? Depois de mais de dez anos?
Ficou mudo.
-Não me reconhece, Tarcísio?
-Sim, eu reconheço. Só não acredito que você seja real.
-Se me abraçar vai ver que sou real.
Ele continuou calado.
-Não me chama pra entrar?
-Sou um homem sozinho. Não fica bem você entrar em minha casa. Vai dar o que falar.
-E o que me importa isso? Depois de tudo que passei, não me importa mais nada.
-E o que você passou? Pensei que estivesse muito bem na Europa. Nem uma linha você se dignou me escrever. Como se tivesse esquecido que eu existi.
-Tem certas coisas que só aumentam a saudade e a dor. Carta de amor é uma delas.
-Você não parece a mesma que partiu.
-E não sou. Eu não sou aquela jovem boba que meu pai manipulava. A Europa está muito a frente deste país arcaico de coronéis e barões decadentes e que são sem nunca ter sido. Aprendi muito sobre a vida, sobre o mundo, sobre a liberdade. Mas, se não vai me chamar pra entrar, vamos sair um pouco. Ou não quer conversar comigo? Esqueceu completamente de mim. Sei que você não se casou.
-Durante todos esses anos estive paralisado. Tentei dar meia volta. Seu vulto me envolvia por todos os lados. Seu nome me assustava. Você poderia ter qualquer nome, mas tem um nome específico que meus lábios não pronunciavam. Talvez se eu tivesse pronunciado seu nome, quem sabe eu tinha me libertado de seu vulto que me prendia. Fechava os olhos. Via seu sorriso. Outros lábios já sorriram pra mim, mas nenhum teve o encanto do seu. Via o seu olhar. Outros olhos já me olharam, mas nenhum teve o brilho do seu. Os anos passaram e eu sozinho. Acostumei com sua ausência em minha vida… Eu me odeio por falar estas coisas pra você.
-Tenho tantas coisas pra te dizer. Vamos ficar parados aqui?
-Se não se importa com o que vão falar, entre.
Ela entrou. Conversaram por muito tempo.
Ela contou que se formou em medicina, que participou de muitos movimentos sociais, que amadureceu suas convicções e pensamentos. Que cresceu como ser humano.
Contou que seu pai queria casá-la com um jovem rico. Que ela não aceitaria por amá-lo.
Disse que o pai estava completamente falido e que por isto queria vendê-la a um milionário descendente de italianos.
Ele a abraçou e beijou. O amor que havia entre eles resistiu aos anos de separação.
-Não se case com outro. Não me abandone nunca mais.
Eles continuaram se encontrando apesar da resistência e insistência do pai em casá-la com um milionário.
O tempo foi passando até que o pai chamou Gilda pra conversar. Tentou dar um ultimato e exigir que ela assumisse o namoro com seu pretendente.
-Eu já disse que não vou namorar, noivar ou me casar com ninguém. Não adiantou o senhor me separar de Tarcísio. Eu nunca me esqueci dele. Nem ele de mim.
-Eu sou seu pai, você me deve obediência e respeito.
-O respeito, meu pai, deve ser mútuo. O senhor nunca me respeitou.
-Veja como fala comigo.
-O senhor me exilou por mais de dez anos na França pra me impedir de amar um homem digno, trabalhador e sério. E lá eu aprendi muita coisa. Não sou mais aquela garotinha medrosa em quem o senhor mandava e desmandava. E nunca esqueci Tarcísio.
-Respeite-me. Você é uma mulher, não vou admitir que queira ter vontade própria.
-Eu tenho vontade própria.
-Vamos tratar de acertar seu compromisso com o filho daquele italiano que também quer casá-lo com você para que possa ser aceito em nossa sociedade conservadora.
-Quem pensa que eu sou? Alguma mercadoria de troca? Pensa que pode me vender e dispor de minha vida como bem entender?
-Eu não penso. Eu tenho certeza. Como minha filha você tem que me obedecer.
-Não vou obedecer o senhor. Esqueça.
-Você está precisando de um corretivo pra aprender quem manda em quem aqui.
Ela riu sarcástica.
-O senhor não manda mais em mim. Se quiser eu saio de casa. Não dependo de um barão decadente pra nada.
Ele deu uma bofetada nela.
-Mas dependeu a vida inteira. Quem bancou você na França todos esses anos?
-Quer que eu lhe pague cada centavo que gastou comigo? Quer que pague seus luxos?
-Não me provoque, desaforada. Você vai se casar com quem eu quero que se case.
-Vai entregar uma mulher desonrada em casamento?
-Como assim? Você se entregou àquele reles bancário?
-Não só me entreguei como estou grávida dele.
Ele empalideceu, seus olhos faiscavam de ódio.
-Você só pode estar brincando comigo. Como age como uma mulher leviana e se entrega a um homem antes de se casar?
-O que fiz está feito. Não me arrependo. É com Tarcísio que vou ficar, casando ou não.
-Você não vai jogar meu nome na lama desta maneira, vagabunda.
-Sou uma vagabunda que ama, que se entregou a um único homem. E ele me ama.
Ele levantou a mão para esbofeteá-la novamente. Ela se esquivou.
-Se encostar a mão em mim novamente eu saio desta casa hoje mesmo. Sou uma mulher independente. Não preciso do senhor pra nada. Vou morar com Tarcísio.
-Não vou admitir que enxovalhe meu nome e minha família assim. Se vai ficar com aquele sem nome e se está grávida dele, pelo menos vamos providenciar o casamento.
Ela riu com ironia.
-Agora estamos começando a nos entender. É isto que sempre quis, me casar com ele.
Mais tarde Gilda se encontra com Tarcísio e entre abraços, beijos, carícias e prazer comemoram e brindam seu amor que resistiu a tudo e só se fortaleceu com toda a distancia e vicissitudes.