Juvenília

“nada mais dura:

tudo é pressa pura

tudo se acaba

e se perde:

as pedras, prédios, impérios

tudo o que perdura

são as nuvens

o arco-íris e os vaga-lumes

das noites de primavera

o mais é literatura”

Cairo Trindade

Estava agora em algum lugar perto de nossas antigas casas, próximo ao rio. Sozinho dentro do carro e ainda ao redor de um sentimento que teimava em viver. Tinha conhecido e namorado a Ana durante todo o ensino médio, com alguns términos de namoro regado a álcool e pequenas traições. Logo após aqueles anos juvenis, nos separamos. Ela foi morar em outro estado com um cara qualquer. Eu continuei solteiro, namorando esporadicamente.

Naquela época o acontecimento principal de nossas vidas era o amor. Éramos pássaros recém libertos da gaiola da vida. Aos sábados fazíamos piqueniques às margens deste rio que corre lá fora. Era bonito de ver as cores vibrantes do cobertor sobre a grama, de sentir o cheiro adocicado do perfume dela se esgueirando pela matinha ciliar e encontrando as pequenas fontes fluviais onde se misturava à umidade.

Fiquei sabendo por um amigo em comum que Ana estava voltando. Disse-lhe que gostaria de revê-la. Bem, isso é verdade! Todas as outras coisas que eu lhe contei, não. Disse ao amigo que Ana era amor eterno. Mas, ela não precisa saber disso. O que sei e decidi compartilhar com ela é este sentimento que ainda persiste.

Fui buscá-la na rodoviária à tardinha. Na penumbra vi quando o ônibus chegou e partiu cinco minutos depois. Ninguém desceu. Acredito que ela tenha me enganado, como eu a enganei várias vezes. Mas, para o nosso amigo em comum ela disse que passaria por aqui para, entre outras coisas, rever o rio de nossa adolescência. Somente isso, enfatizou o amigo. Ela dever ter visto o rio pela janela do ônibus e deve ter se sentido muito triste. O rio não é mais o mesmo e nós também não.

Dei um suspiro profundo e entrei no carro. Parti em direção ao local que amamos. Como alguém que resolve buscar um momento de sua vida que está enterrado no passado e são necessárias quatro mãos para desenterrar. Infelizmente esse momento continuaria enterrado.

Enquanto o carro percorre a pista que me levará ao rio, vou ouvindo as músicas mais bregas possíveis e ainda tenho tempo para pensar que as pessoas, todas elas, não somos bons uns com os outros. Nós nos aproveitamos mutuamente como plantas parasitas nos caules das árvores. Por um momento somos belos e malditos.

Parei o carro um pouco antes da ponte. De onde estava dava para ver a lua dentro da água. Desci e caminhei pela estrada vicinal, chutando pedregulhos. Estaquei quando vi a fogueirinha às margens arenosas do rio. Ao lado, abraçados, um casal que dividia uma garrafa entre beijos. Então, pensei que essas são as regras e assim mesmo é o mundo. Aquele bom, velho e angustiante sentimento continua em outros corpos, desde que exista um lugar onde possam se encontrar.

Voltei ao veículo sem fazer barulho. Recostei no capô e esperei que a brisa suave da noite refrescasse meu corpo quente. Pensava nesse sentimento a que chamam amor, nessa cola que une os corpos em cacos, despedaçados pela correria da vida. Esse sentimento é eterno, diferente da vida que um dia acaba. Eu ali contemplando a noite e ela em algum lugar lá longe. Eu sonhando e ela vivendo.

Dei a volta ao carro, entrei e acelerei em direção à cidade. Hoje estou me sentindo péssimo, não sei como vou me sentir depois. Tenho emprego de manhã, vou me perder dentro dele e das contas a pagar. Valeu a tentativa, mas as pessoas não estão no mesmo ritmo e é bom que não estejam.

Depois vou contatar meu amigo para saber se Ana passou por aqui ou se foi apenas uma brincadeira. Dela eu não sei nem o número do telefone. Ana está em um vácuo para mim, no entanto esse vazio da presença dela é o que me incomoda. O vazio me incomoda. A gente está sempre querendo preencher, de qualquer coisa, nossa vida.

De qualquer modo ficou na boca o gosto amargo do que poderia ter sido. Quero acreditar que foi apenas uma brincadeira, um comentário, destes que falamos sem compromisso. Porque do contrário foi uma pequena maldade a peça que ela me pregou, talvez bem pequena em relação ás peças que eu pregava nela quando éramos jovens. Deixei de ir a vários encontros por causa do futebol, da sinuca e dos amigos. Ela chorava por isso, à época. Achei que tinha passado. Mas, pelo que vejo, em matéria de amor nada passa, nem muda.

Hoje acordei bem. Sem cisma ou estresse. Estou dirigindo até a cidade vizinha. Reduzi a velocidade para passar sobre a ponte. O rio continua lá, o resto da fogueira também. Algumas coisas continuam certas no mundo. Saber disso já é o suficiente.

make
Enviado por make em 25/11/2022
Reeditado em 27/11/2022
Código do texto: T7657538
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