Quando O Acaso Decide...

O grande rio, que calmamente corria, passava por aquele lugar e naquela margem abrigava uma vila de menos de mil habitantes. Quantas histórias poderia aquele rio contar. A tudo assistia e em silêncio seguia seu caminho. O rio era a vida daquele lugar.

Em meados da década de 1970, muitos moradores de cidades próximas e até mais distantes tinham ranchos de pescaria na vila. Alguns até com bastante conforto, conforme o poder aquisitivo de seus proprietários.

O morador mais conhecido e respeitado da vila era Mestre Tião. Conhecia o rio como a palma de sua mão. Desde a infância navegava pelo rio com seu pai e aprendeu a conhecer cada palmo, cada curva e cada detalhe do rio. Todos queriam que Tião os acompanhasse nas pescarias.. Ele tinha três filhos, a bela adolescente Cíntia, Tiãozinho e Marquinho. Sua esposa, Madalena era séria e trabalhadeira. Fazia a limpeza e manutenção de vários ranchos. Todos confiavam nela. Tinham uma vida tranquila.

Como o lugar era muito agradável e tranquilo, muitos donos de ranchos vinham com suas famílias desfrutar alguns dias de lazer.

Por essa época um empresário milionário, Afonso, dono de um dos mais requintados ranchos, chegou com sua família. Esposa e três filhos. Um com a esposa e dois filhos ainda pequenos, o outro com a namorada e o mais novo, sozinho.

Logo no primeiro dia, a mãe de Cíntia pediu para ela entregar uma encomenda no rancho do Dr. Afonso. Ela com dezesseis anos, muita beleza e pouco juízo lá se foi.

Chegando, o filho mais novo ficou encantado por ela.

-Qual o seu nome?

-Cíntia.

-Eu sou Nélson, sou filho do Afonso. Você é filha do Mestre Tião?

-Sim.

-Como eu nunca te vi antes? Como você é linda!

Cíntia era faceira e gostou dos olhares de Nélson e começou a provocá-lo. Sonhava com uma vida melhor fora daquela vila. Inocente, pensou que podia conquistar um bom partido que lhe daria uma vida de luxo. Era uma mulata linda e cheia de charme. Ela entregou a encomenda e saiu caminhando provocativa e olhando para trás pra ver o efeito que surtia no rapaz de lindos olhos verdes e um sorriso encantador e embora não fosse muito bonito, era atraente.

Ele perdeu o juízo pela garota e só pensava nela. E ela desfilando pela vila. E começaram a se encontrar longe de todos e sem que ninguém soubesse. E ela se entregou por inteiro, acreditando que ali estava o seu príncipe. Quando ele foi embora, dez dias depois, prometeu voltar em breve.

E ela descobriu que ele a deixara grávida. Mas ela via naquela gravidez uma chance de mudar sua vida e logo contou pra seu pai que ficou decepcionado e furioso.

Tentou falar com Afonso, mas não conseguiu.

Algum tempo depois ele chegou para uma pescaria. Tião foi falar com ele e disse tudo que aconteceu. Afonso ficou furioso com a audácia de Tião:

-Você é que tinha que cuidar da sua filha. Como deixa uma garota ficar solta por ai? Meu filho é homem e se lhe dão oportunidade ele vai aproveitar mesmo.

-Milha filha tem apenas dezesseis anos. Como vai ficar esta situação?

-O que você quer que eu faça, Tião?

-Que seu filho repare o mal que fez.

-Você está brincando. Você quer que meu filho assuma uma negra? Que se case com uma negra?

-Seu filho foi homem pra desonrar milha filha, não vai ser homem pra reparar o erro?

-Que erro? Ele pegou ela a força?

-Penso que não, mas ela é menor.

-O que posso fazer é dar dinheiro pra um aborto. Fica o dito pelo não dito. Meu filho não vai em hipótese alguma casar com sua filha, nem assumir um filho mulato.

Tião tremeu de ódio. Mas se conteve. Não queria piorar ainda mais a situação.

-Milha filha não é uma vagabunda pra seu filho vir, fazer um filho nela e depois pagar um aborto. Ela vai ter o filho e seu filho pode não se casar com ela, mas vai ter que ajudar a criar.

-Quem me garante que este filho é dele?

Tião acertou um murro em Afonso e ele caiu.

-Nunca mais fale comigo. Minha esposa não coloca mais os pés aqui. O senhor não presta, não vale nada. E eu tenho honra.

Saiu e foi embora.

Afonso não voltou mais ali. O bebê de Cíntia nasceu. Era uma menina que foi chamada de Sofia. Tinha os olhos verdes do pai, a cor e a beleza da mãe.

Cíntia sofria com a discriminação naquele lugar. Todos a olhavam como uma perdida.

Ela acabou indo embora e deixando a filha com seus pais que criavam a neta com todo carinho. Algum tempo depois ela passou a mandar dinheiro para a filha. Tião não sabia de onde vinha e tinha medo de saber, mas guardava o dinheiro para o futuro da neta.

Sofia foi crescendo e se tornando cada vez mais linda. Ela era estudiosa e inteligente.

Ela já estava com quatorze anos. Tião se preocupava com o futuro da neta.

Um dia Renato e sua esposa vieram para o rancho, Tião foi lá conversar com eles:

-Senhor Renato, eu sei que o senhores são pessoas de bem e em quem eu posso confiar. Por isto eu venho pedir uma coisa que não teria coragem de pedir pra mais ninguém.

-Diga, Tião.

-Minha neta já está com quatorze anos e termina o primeiro grau este ano. Ela é estudiosa e quer seguir com os estudos. Mas aqui não tem como. E eu tenho medo que ficando aqui, possa acontecer com ela o que aconteceu com minha filha. Canalhas sempre estão por aí. Eu queria pedir pra levarem minha neta com vocês. Ela pode fazer os serviços da casa e nem precisam pagar nada. Só dar um cantinho pra ela dormir e comida. O resto eu dou. Durante todos estes anos eu guardei o dinheiro, que a mãe dela manda todo mês, pra que ela pudesse estudar e ser alguém na vida. Ela é ajuizada, quieta e nós sempre damos muitos conselhos. Ela quer estudar e não fazer farras. Mas se vocês se negarem eu vou entender, afinal a responsabilidade é minha.

-Bem, Tião, você nos pegou de surpresa. Precisamos pensar, analisar. Mas prometo que vamos pensar com carinho. Mas se aceitarmos e não der certo, ela volta e você não vai ficar chateado, certo?

-Claro. Eu vou ficar eternamente agradecido se ela for.

Sofia acabou indo pra casa de Renato e seguindo seus estudos. Depois ingressou no curso de bioquímica. Morava na mesma cidade que seu pai e avô sem nem saber.

Já estava no último ano de faculdade quando participou de um seminário com várias palestras e cursos.

Uma das palestras seria ministrada por Ernesto. Sofia estava na platéia, numa das primeiras filas. Ele olhou pra ela e se encantou. No fim da palestra ele foi ao encontro dela.

-Você é estudante de bioquímica?

-Sim. Gostei muito da sua palestra. Você é professor, não é?

-Sim. E sou dono do melhor laboratórios de análises clínicas da cidade.

-Deve ser um excelente professor e profissional.

Ele olhando pra ela com admiração diz:

-Obrigado! Diz uma coisa, você é real? É uma garota de verdade?

-Como?

-Estes olhos de esmeralda, estes cabelos cacheados emoldurando este rosto perfeito, esta pele suave da cor do pecado, este corpo de curvas perfeitas da mais linda mulher brasileira. Tudo isto em uma pessoa só não me parece real.

Ela ficou encabulada:

-Você está de brincadeira comigo? Eu sou uma garota séria. Você não tem direito de falar dessa maneira.

-Foi só um elogio, não quis de maneira nenhuma ofender.

-Eu não lhe dei o direito de falar assim comigo.

-Desculpe. Não foi minha intenção ofender. Só fiz um elogio sincero.

-Está bem

-Toma um café comigo? Você vai saber que eu não sou o tipo de homem que desrespeita uma mulher.

-Está bem. Posso fazer algumas perguntas sobre sua palestra?

-Claro. Quantas quiser.

Eles saíram. Num Café próximo conversaram por muito tempo.

No dia seguinte na saída da faculdade, Ernesto a esperava. E entre eles começou a surgir um amor sincero.

-Quero que você conheça minha família.

-Eu fico um pouco encabulada. E se não gostarem de mim?

-Por que não gostariam?

-Sabia que meu pai não assumiu minha mãe por ela ser pobre e negra? Eu também sou. Eu vou lhe contar a minha história.

Ela acabou indo em um almoço na casa dos avós de Ernesto.

-Família, quero apresentar a vocês minha namorada, Sofia.

Ela notou o olhar de desagrado das pessoas ali presentes e se sentiu constrangida.

O avô de Ernesto olhou com espanto e surpresa. Ela foi tratada com frieza e sentia-se mal em estar ali. Quando teve oportunidade o avô foi falar com ela.

-Você é aqui da cidade?

-Não. Moro aqui com o senhor Renato e sua esposa. Um casal muito bom que me acolheu pra eu estudar. Meus avós, com quem fui criada, moram em Vila de São Manoel.

Ele empalideceu.

-Como se chama seu avô?

-É conhecido por Mestre Tião.

-Você é filha daquela filha dele, como se chama?

-Sim. Sou filha da Cíntia. O senhor conhece meu avô e minha mãe?

Ela olhou pra ele:

-O senhor está se sentindo bem?

-Não é nada. Estou bem.

Depois que Sofia foi embora, Ernesto e seu avô conversam:

-Você precisa terminar este relacionamento com esta garota.

-Por quê? Dê um só motivo.

-Não vê que ela não é mulher pra você? É uma mulata, é de família pobre.

-Não vejo nenhum problema nisso.

-Vou ser bem claro. Ela é sua prima. É uma filha bastarda do Nélson que volta depois de anos pra me assombrar, pra me atormentar.

-O senhor está brincando.

-Não estou. Vou contar toda a história.

Ernesto ouve a história de seu avô e de seu tio Nélson, que também fica atordoado com a presença de sua filha que nem conhecia.

-Eu não tenho nada a ver com esta história lamentável de vocês. Vocês agiram como agem os canalhas. Eu amo Sofia e vou me casar com ela.

-Você não pode fazer isto.

-Posso e vou.

Toda a família se reúne pra tentar fazê-lo mudar de idéia.

-Eu não preciso de permissão ou de autorização de ninguém pra fazer o que quer que seja. Eu tenho trinta anos, sou independente e posso tomar minhas próprias decisões.

-Mas você faz parte desta família. Vai trocar sua família por uma mulata bastarda?

-Não admito que vocês falem assim dela. Ela é uma mulher inteligente, linda, culta, está terminando o seu curso de bioquímica. Ela é uma mulher digna de qualquer homem. Não me peçam pra fazer uma escolha. Ou vocês engolem o preconceito ridículo e nojento ou vocês ficam com ele.

-Ela é sua prima. Não pode se casar com ela.

-Casamento entre primos não é proibido. E não tem mais conversa. Eu vou me casar com ela. Vocês decidem o que vão escolher, o preconceito ou eu.

Ele sai. Conta para Sofia que é seu primo. Ele vai conhecer os avós dela que se surpreendem ao saber que ele é neto de Afonso. Mas compreendem que ele não herdou a maldade e preconceito do avô e do tio.

Ela se forma sob o olhar emocionado dos avós e da mãe. Faz um agradecimento especial ao casal que a acolheu.

Ernesto e Sofia se casam sem a presença da família dele. Mas quando nasce o primeiro filho deles, o coração duro daquela família se transforma e voltam a uma convivência cordial.

Os dois permanecem unidos pelo amor, carinho e respeito.

E o rio segue seu caminho sempre assistindo a histórias tristes, alegres, emocionantes, algumas trágicas.

E ali, a vida segue junto com o rio.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 02/11/2022
Reeditado em 02/11/2022
Código do texto: T7641182
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