A Princesa E O Plebeu
-Nunca pensei que um dia eu fosse pisar novamente nestas terras. Ela foram vendidas, né?
-Sim. O antigo dono faleceu e os herdeiros resolveram vender. Nenhum deles se interessou em tocar a fazenda. Mas por que não queria pisar mais aqui. Teve algum problema por aqui?
-Coisas muito antigas. Mágoas guardadas.
Seus olhos nublaram e seu semblante ficou triste.
Eu não disse mais nada.
Estava ali fazendo o meu trabalho de engenheira agrônoma. Aquela fazenda foi vendida e o novo proprietário estava estudando a possibilidade de uma nova cultura. Sérgio, que me acompanhava, tinha muito conhecimento no tipo de cultura escolhido e foi contratado pra fazer o trabalho comigo.
Eu sempre tive um relacionamento muito amigável com quem trabalha comigo. Sempre conversava com eles de igual pra igual, como realmente são. Sempre aprendi muito com eles. Não só sobre o meu trabalho como sobre a vida.
Iríamos ficar fazendo aquele trabalho por uns quinze a vinte dias.
Sérgio era experiente e me ajudava muito. Era um homem sério e trabalhador. A gente conversava muito e entre nós surgiu um elo de confiança. Como se houvesse uma simpatia e empatia recíproca entre nós.
Dias depois estávamos sentados debaixo de uma árvore frondosa, uma sombra deliciosa para um sol escaldante. Descansávamos um pouco após o almoço.
-Sérgio, sabe que estou curiosa. Desde que me falou das mágoas que guardou que eu fico imaginando o que pode ter acontecido aqui que lhe traz lembranças tão tristes.
-Eu não disse que são lembranças tristes. Apenas decepção e mágoa.
-Conta pra mim. Eu gosto de ouvir histórias e depois colocá-las no papel.
-Minha história é muito sem graça.
-Conta pra mim. Ou é um segredo inconfessável?
-Não é segredo, mas eu nunca falei pra ninguém. Não gosto de lembrar daquele tempo.
-Você me disse que é solteiro. Por que nunca se casou?
-Você é muito curiosa. Por que você nunca se casou?
-Ora, eu nunca encontrei ninguém que valesse a pena, também sou muito independente e não gosto de ninguém querendo mandar em mim.
-Talvez eu não tenham me casado por isso também.
-Está bem, não vou ser indiscreta. Desculpe.
-Você é muito bacana, Zélia. Dá até gosto trabalhar com você.
-Todos deveriam ser assim, não é? Arrogância e orgulho é muito brega.
Ele riu como quem não acredita nisso.
-Nunca pensei que alguém pudesse escrever a minha história boba. Vou lhe contar e se você achar que merece ir para suas memórias, você pode escrever.
Eu sorri e ele começou a falar.
-Eu tinha apenas dezessete anos quando comecei a trabalhar nesta fazenda. Era o ano de de 1971. Não tive muita oportunidade de estudar. Nem terminei o que naquele tempo era chamado de ginasial, acho que hoje se chama ensino fundamental. Saí na terceira série e fui trabalhar para ajudar em casa. Meu primeiro trabalho foi aos quatorze anos.
Já estava trabalhando aqui há uns seis meses quando vi pela primeira vez a princesa mais linda que já existiu nesse mundo. Morena, cabelos longos e muito lisos, olhos de um castanho tão escuro que mais pareciam pretos. E um sorriso que me fez derreter. Eu não conseguia parar de olhar pra ela. Ela tinha quatorze anos mas já tinha um lindo corpo de mulher. Ela logo percebeu meus olhares e ficava me olhando e provocando. Era a filha do patrão. Eles estavam passando férias na fazenda e logo ela soube os nossos horários e ficava lá se exibindo, me olhando e provocando. E eu não consegui mais afastar ela de minha cabeça e do meu coração. Estava apaixonado. Meu primeiro amor. Durante todo tempo das férias ela ficou se mostrando pra mim e demonstrava interesse. Trocava olhares comigo e até sorria algumas vezes. Eu ficando encantado. Sonhava com ela, pensava nela o tempo todo. Fazia planos para viver um amor com minha princesa. Na minha ingenuidade, pensei que ela também estava completamente apaixonada por mim.
As férias acabaram e ela foi embora. Eu morria de saudade. Quando passava perto da casa e ela não estava mais lá, sentia um vazio no peito.
Mas eles vinham sempre aqui. E quando ela aparecia e sorria o meu dia ficava colorido. A noite eu ficava criando fantasias em minha cabeça.
Mais de um ano se passou. Eu acreditava que um dia ela seria minha. Eu criava castelos e pensava em como fazer pra ter condições de dar uma vida digna pra minha princesa.
Um dia ela estava me provocando com olhares sorrisos e se mostrando. O pai dela estava resolvendo alguns assuntos e dando algumas ordens para os empregados. E eu num impulso disse: “Sua filha é linda, eu amo sua filha e quero me casar com ela.”
Ele ficou olhando pra mim sem acreditar no que eu falei, ela ouvindo o que disse correu pra dentro. O patrão não disse nada, mas eu sabia que não tinha gostado.
Ele entrou e os meus colegas de trabalho ficaram zombando de mim: “Você é louco. Acha que pode pedir assim a filha do patrão em casamento? Não se enxerga não? O que você pode oferecer pra ela? Dê graças a Deus se ele não mandar você embora. Olha só o franguinho pensando que já é galo.”
No dia seguinte ela não apareceu e o patrão me mandou embora. E o chão abriu debaixo dos meus pés.
Eu estava profundamente decepcionado e desiludido. Estava triste. Só então eu percebi que ela nunca seria minha, que só estava brincando comigo e que neste mundo uma princesa não ama e nem se casa com um plebeu pé rapado.
Aprendi sobre a divisão de classes sociais de uma maneira muito dura e sofrida.
Ele parou de falar. Em seus olhos brilhavam lágrimas e sua voz estava embargada. Eu peguei sua mão e o confortei. E ele continuou:
-Nos dias seguintes eu me vi com o coração partido e sem emprego. Meu pai me recriminou por ter perdido um bom emprego sem saber que eu tinha perdido muito mais. Perdi meus sonhos, meu amor, um pedaço do meu coração.
Sempre ouvi dizer que um homem não chora. Então eu saía para um lugar afastado e deserto e chorava. Eu precisava chorar e lavar minha alma. Estava triste e revoltado. Revoltado por ter nascido pobre e ser quase analfabeto, pelo mundo ser como é. Revoltado porque ela brincou comigo de maneira tão perversa. Eu não entendia. Eu era um homem e ela uma mulher. Por que tinha que ter toda esta diferença? Por que não podíamos ficar juntos? Em meu coração aquele amor só fazia aumentar e eu estava sofrendo.
Consegui um outro emprego, mas meu coração continuava partido. Eu ia trabalhar numa profunda tristeza e não conversava com ninguém. Voltava pra casa e procurava um canto pra chorar e desabafar minhas mágoas.
O tempo foi passando e eu não vi mais a minha princesa. A saudade aumentava e me machucava. Tantos sonhos eu sonhei, tantos planos, tantos castelos. Mas eram castelos de areia e desabaram..
Aos poucos eu fui me conformando, mas me tornei frio. Jurei pra mim mesmo que nunca mais eu ia amar outra mulher, que nunca mais confiaria em nenhuma. Que eu só ia brincar com elas como ela brincou covardemente comigo. E nunca mais amei ninguém. Nunca levei ninguém a sério e nem namorei nenhuma outra. Eu só brinquei e usei as mulheres que passaram por minha vida. Nunca me casei, nunca tive uma família. Hoje aos sessenta e sete anos eu sou solitário, desiludido, desencantado dos sentimentos. Nunca consegui me livrar ou esquecer daquele dia em que quebraram meu coração de jovem sonhador em mil pedaços e ele nunca mais se colou.
Eu estava comovida e emocionada, segurando as lágrimas. Ele também. Eu o abracei e o confortei.
-Você nunca mais viu a princesa?
-Como eu disse, nunca mais pisei nesta fazenda, mas algumas vezes eu encontrei com ela na cidade. Ela nem me conheceu. E cada vez que eu encontrava ela parecia mais linda. Uma mulher provocante, linda, elegante, estudada, dona de si. Rica e cheia de pose. E eu cada vez mais me sentindo minúsculo diante dela.
-Você é um homem muito bonito. Deve ter sido um jovem lindo.
-Eu não fazia feio, era bonito sim. Mas sempre fui um pobretão. E isso faz toda a diferença nesta sociedade de tantas desigualdades. Como um plebeu ousa olhar para a princesa, né? Neste mundo de diferenças, falsidades e hipocrisias é proibido um homem como eu, sem nenhuma esperança de dias melhores olhar e amar uma princesa, uma burguesa, uma filha de rico, filha do patrão.
-Você se expressa e fala muito bem.
-Eu aprendi muito pela vida afora. Estudei um pouco. Fiz curso técnico. Gosto de saber das coisas.
A noite no hotel eu fiquei pensando em tudo que ouvi e senti uma imensa compaixão por ele. Como um episódio como o que ele passou pode marcar e machucar tanto um homem a ponto dele não conseguir superar nunca.
Quando ele me falou de mágoas passadas eu jamais poderia supor que aquele homem até certo ponto rude, me contaria uma história de amor tão comovente.
Nós terminamos o nosso trabalho e no dia em que eu ia embora e perguntou se podia me dar um abraço. Eu disse que sim e ele me deu um terno abraço:
-Você é uma mulher muito legal. Gostei muito de trabalhar com você e agradeço por ter a paciência de escutar minha história. Talvez eu precisasse mesmo contar tudo que passei e que guardei comigo a vida toda.
-Eu me sinto envaidecida por você ter confiado em mim. Um dia vou contar sua história.
Ele riu, me abraçou novamente e se foi. Eu fiquei ali olhando ele se afastar. Talvez eu nunca mais fosse vê-lo. Não sabia se um dia voltaria ali.
Agora ele voltaria a trabalhar naquela fazenda onde tudo aconteceu. Com um cargo bem melhor. Não sei se isto traria lembranças que o machucariam, mas por certo hoje ele está bem melhor que naquele tempo.
Sempre eu me lembro dele e desta história que ele me contou. Sempre torço para que ele consiga ser feliz um dia.