ALÔ, ALÕ, REALENGO
ALÔ, ALÔ, REALENGO!
BETO MACHADO
O bairro de Realengo, zona Oeste do Rio de Janeiro, na década de sessenta do século passado, possuía um ponto de encontro de jovens ansiosos para a chegada do domingo. Curtiam as seções das dezessete horas religiosamente. Já os maiores de idade preferiam as seções das dezenove em diante. Cine Teatro Realengo. Ali se esbanjavam prazeres sexuais e amorosos, muitas vezes com a complacência dos lanterninhas, profissionais munidos de uma lanterna e investidos de autoridade para corrigir comportamentos não condizentes com o protocolo do estabelecimento, da ética, da moral e bons costumes. E essa complacência generalizou-se vergonhosamente. Nem o mais senil dos longevos que se locupletaram daquela permissividade dominical, num momento em que o país vivia sua época de vigilância máxima quanto aos costumes, a moral e o comportamento dos jovens brasileiros, esquecerá dos seus feitos naquele recinto.
A rua Gal. Sezefredo é uma das mais populares das ruas residenciais de Realengo. Mais de noventa por cento dos moradores são militares do E. B.
Suzi, filha de militar, moreninha cor de jambo, aparentava uns quinze aninhos mas, na verdade, tinha dezessete anos. Chamava a atenção dos marmanjos, ao passar com um andar que mais parecia com um desfile, devido ao seu requebrado, motivado por um desvio de coluna; um problema futuro garantido. Matriculada num colégio estadual no bairro de Campo Grande, cursando a terceira série do curso ginasial, ela se mostrava discreta, atenta às explicações dos professores mas tinha muita dificuldades com as “armadilhas” da gramática portuguesa. Na turma dela tinha um grupinho com esse problema muito recorrente em qualquer colégio, tanto os particulares quanto os públicos.
O ano era de 1967. O colégio era o Ginásio Estadual Charles Dickens, o mais concorrido em Campo Grande. Suzi tinha lá seus motivos pra cortejar Rogério, mesmo que discretamente. Ele era o “cara” que dominava Português. Ele era conhecido no colégio por isso e por ter um bom domínio de bola, nas peladas do campinho ao lado do, então, estabelecimento de ensino mais cobiçado pelos pais para matricularem seus “rebentos”, recém saídos do curso primário.
Nos dias de prova dessa matéria a professora da turma de Suzi e de Rogério o colocava fora do alcance da visão dos demais alunos da sala. Essa pedagogia da propriedade de conhecimento prevalece até hoje: proteger “o conhecedor” dos que tentam furtar seus conhecimentos. Como se conhecimento fosse um substantivo concreto.
Suzi precisava dar um jeito de falar pro Rogério sobre a ameaça de seu pai ser cumprida, caso ela não passasse de ano. Precisava da ajuda dele urgentemente.
O tenente Quintino pressionava dona Helena, mãe de Suzi, para tirar a filha do ginasial, caso ela “tomasse pau” naquele ano.
Rogério, oriundo de uma família de pais batalhadores que faziam o possível para dar aos filhos um estudo que os facilitasse o desenvolvimento social, que nem pai nem mãe tiveram, sentia-se um privilegiado, pois sua pele negra ainda não havia sido impedimento para as conquistas que pretendia. Conquistas essas, ainda embrionárias, ainda em forma de sonhos.
Os hormônios que energizavam o aparelho sexual de Rogério funcionavam com a velocidade da eletricidade enquanto seus neurônios, comandantes do seu racional, eram analógicos, acústicos. Esse desequilíbrio, vez por outra, causava-lhe algum transtorno emocional. Tudo logo contornado, devido ao seu espírito ponderador e complacente. Mesmo sabendo que complacência nem sempre joga no time das virtudes. Se ela não for bem vigiada, corre-se o risco de vê-la jogando na equipe dos defeitos. Mas, até aquela ocasião, esse não era o caso de Rogério.
O ano de 1967 corria num galope assustador para Suzi. Mesmo estando em ambientes de alegria, com amigos, não conseguia tirar da cabeça a possibilidade de deixar de estudar, visto que se aproximava a maioridade. Então, resolveu abrir o jogo pro Rogério.
Numa sexta feira, o último tempo de aula terminou antes do recreio. A chance que Suzi tinha para seu ataque não falhar, se cristalizava. Mesmo Rogério tendo compromisso de trabalho com sua mãe para levar roupas lavadas a clientes no bairro do Catete, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. O período de dois tempos vagos fora o suficiente para Suzi dar seu bote certeiro.
___ Oi, Rogério, vocês têm jogo de futebol hoje lá no Campo Grande Velho?
___ Não, Porquê?
___ Queria falar contigo.
___Já estamos falando, Su... Qual é “o plá”?
___ Conversar sobre nossas vidas. Acho você diferente dos outros meninos da turma.
___ Ah, eu diferente?
___ Sim. Você é diferente. Qualquer outro que tivesse a facilidade de aprender que você tem, se candidataria a líder de turma e venceria, com certeza. E eu não vejo essa ambição em você. Você ganharia “de pés nas costas”.
___ Olha só... Ela também fala gíria. Assim você já me deixa mais à vontade.
___ A professora Penha distribuiu para as meninas uma poesia com a tua assinatura. Você confirma a autoria?
___ Confirmo... Mas será porque ela só deu para as meninas?
___ Os meninos da nossa turma não demonstram interesse por poesia. Eles, “na certa”, iriam te “encarnar” e até te chamar de “florzinha”. É o que eles pensam dos poetas.
___ Se você e a professora Penha buscam generalizar gostos, preferência, personalidade, costumes e hábitos, eu digo e mostro que penso diferente. Nesse sentido você “acertou na mosca”. Então eu sou diferente.
___ Desculpa, Ro. Minha intenção não foi de te ofender.
___ Que isso, Su? Você mora aqui, oh.
Rogério colocou a mão direita no lado esquerdo do próprio peito e com a mão esquerda fez um afago nos negros cabelos lisos de Suzi. Com esses gestos ele alivia a tenção que havia invadido o coração daquela bela jovem, ante a refutação dele, perante a discriminação “macho-fêmea”, instintivamente, disseminada no grupo das meninas.
Esse diálogo arrastou a dupla até a estação de trens de Campo Grande do Rio de Janeiro.
Sem perceber a seriedade da coisa, Rogério foi se encantando com aquela figura mignion, marcante e de um andar ímpar que mais se parecia com um requebrado de algumas danças sensuais, como a salsa, a rumba e o nosso sapateado do samba. Sem esquecer aquele olhar fulminante.
Desceram a Barcelos Domingos tão distraídos que nem viram a casa do secretário do colégio, à direita nem a do diretor, à esquerda da rua. Conversavam coisas triviais a passos lentos. Totalmente despreocupados. Sem tomarem conhecimento das imagens que passavam por eles.
O limite para Rogério chegou: a estação de trens de Campo Grande. Dali em diante Suzi seguiria sozinha, em meio a uma multidão de passageiros, para Realengo, seu bairro de nascimento e de morada. E lá remoeria novamente todos os seus problemas emocionais que amofinavam sua cabeça. Só que não... Suzi olha bem dentro dos olhos de Rogério e se debulha em choro e confissões. Soluçando e se declarando para o amigo.
___ Ro, quero te dizer que to apaixonada por você. Por favor, não ria de mim, mesmo que isso te pareça ridículo.
___ Verdade, Su?
___ É verdade. Eu precisava desabafar meu coração.
___ Bota desabafo nisso, menina. To surpreso. A gente tem poucas coisas em comum mas podemos nos conhecer melhor.
___ Que tal lá no cinema de Realengo, no domingo?
___ Ta fechado... Qual seção?
___ Das cinco da tarde.
___ Ok. Às duas da tarde já devo estar naquele bar da esquina da Sezefredo com a Av Sta Cruz.
___ Combinado.
___ Agora preciso ir. Hoje tenho entrega para os clientes do Catete.
Antes de subir as escadas da estação Suzi surpreende Rogério novamente. Ela puxa-o pela camisa do uniforme, dá-lhe um demorado beijo de quase arrancar-lhe a língua. Parecia antecipar o que viria acontecer domingo lá “NO ESCURINHO DO CINEMA”. Suzi sobe, lentamente, as escadas e, várias vezes, vira-se para lançar seu fulminante olhar para Rogério que parece não crer ainda na sua “sorte grande”.
Rogério retorna à casa com o coração aos pulos. Primeiro beijo de língua, ao dezesseis anos de idade. A partir dessa façanha, que nem foi buscada por ele, seus amigos de jogos de futebol tiveram muito mais inveja dele. Não acreditariam ser possível aquela situação. O mundo é assim mesmo. Há uma tentativa desesperada de se padronizar tudo. E para isso, pensam em juntar apenas os iguais, em detrimento dos diferentes.
O domingo veio e os dois “pombinhos” de “dinastias” diferentes se encontraram e, na sala de cinema, fizeram exatamente tudo que os outros casais se dispuseram a fazer. Nego-me a relatar os gestos e atos de Suzi e de Rogério, pois estou contando uma história que envolve dois menores de idade. Mas digo que a energia e o humor de Suzi e Rogério, na segunda feira, no colégio, eram de causar desconfiança, até nos mais distraídos. Só que o combinado entre os dois era de guardarem segredo enquanto fosse possível. E assim se fez.
Rogério não poupou esforços para livrar Suzi da reprovação. E conseguiu. A reação dela foi de quem tira um peso da consciência, pois colocaria muita tristeza no coração da sua mãe, tendo que tirá-la do colégio, por determinação de seu pai, caso ela não tivesse a ajuda de Rogério que a estimulou a se concentrar melhor na matéria estudada. Outra reação foi de grande gratidão a Rogério, pelo auxílio. Gratidão que ela demonstra até hoje.
Hoje são velhos amigos, se visitam esporadicamente, ambos casados e com filhos e netos. O cinema não existe mais. Só que Rogério, sempre que passa, de carro ou de transporte urbano regular ou alternativo, pelo bairro que lhe deu muitas alegrias ao coração, fala mentalmente: “Alô! Alô! Realengo”. A despeito da idade avançada, ainda se recorda daqueles abraços e beijos sugadores de língua que Suzi lhe dava, sem dó nem piedade dos seus gemidos e suspiros.