Interdito

É a última mesa do café, no fim da calçada, e depois daquela mesa não há mais nada. Só os acordes minguantes de “When it rains”, de Brad Mehldau, ainda sugerem algo além. Ele chega com passos lentos, as mãos nos bolsos, olha para o chão. Puxa uma cadeira com o pé esquerdo antes de posiciona-la com a mão esquerda, e senta-se. Não chama o atendente, apenas fica ali, sentado, olha para suas próprias mãos, para cada palma, para as unhas, para o cesto com sachês de açúcar e mexedores, para a mesa, para a calçada e de novo para as mãos.

Atendentes de café não têm permissão de deixar as pessoas sentadas olhando suas mãos. Não se sabe se é para que consumam ou para que não pensem. Um pequeno susto faz com que Ele jogue a cabeça levemente para trás quando o atendente lhe estende o cardápio, que Ele segura, sorri desajeitado e gesticula pedindo algum tempo.

Ela apenas chega. Caminha pela calçada como quem vai a algum lugar, e então chega a esse lugar e insinua-se entre os acordes de “When it rains”. Ele se levanta para recebe-la, puxa a cadeira para que se sente. Não há palavras. Há movimentos estranhos, mãos que se buscam mas não se tocam, uma possibilidade de abraço que não se realiza, gestos que não querem ser apenas gentis, sorrisos imprecisos, hesitantes.

Sentados, cada um de um lado da mesa, se apoiam em seus cotovelos, inclinam seus corpos levemente para a frente e se olham. Nos olhos, primeiro, depois passam para os lábios e daí para as curvas de seus pescoços, e seguem as linhas de seus ombros e braços até as mãos postadas sobre a mesa, próximas. Ele mexe os dedos, toca o cesto com sachês de açúcar com a ponta dos dedos da mão esquerda, entrelaça suas pernas nas pernas da cadeira. Ela olha para suas mãos e dedos, como uma continuação do primeiro olhar. As mãos dele parecem sentir os olhos dela e param, e se aquietam, e a mão direita cobre a mão esquerda, que se fecha. As mãos dela ficam sobre a mesa, as palmas para baixo, um pequeno tremor se nota pelos leves movimentos incertos do dedo mínimo. Ela ergue os olhos, como que refazendo o caminho que fizeram a pouco, no sentido inverso, até alcançar os olhos dele, ainda baixos. Os olhos dele estremecem ao perceber os olhos dela, e Ele não os levanta, apenas estica os dedos de sua mão esquerda para além dos limites do cesto de sachês de açúcar e toca levemente a ponta dos dedos da mão direita dela. O pequeno tremor do dedo mínimo torna-se um choque elétrico em câmera lenta que sobe por seu braço e brilha em seu rosto, na forma de um sorriso que se faz com os olhos mais do que com a boca. Sua mão se move, graciosa, lenta, e Ela toca os dedos esticados dele com a ponta de seus dedos, e o gesto se alonga com um deslizar de dedos sobre a mão até que os dedos e as palmas se encontram. Ele segura as mãos dela entre as suas, ainda sem erguer os olhos. Suas mãos se entrelaçam, e Ele a olha. E retira suas mãos, a mão direita coça a testa como se a tivesse batido, a mão esquerda é puxada para perto do corpo e se fecha, a mão direita se torna um punho inseguro que apoia o queixo, os olhos baixam. O sorriso dela foge de seu rosto, a inércia da imobilidade inicial pesa sobre suas mãos e sobre seus olhos, e Ela só se move lentamente em busca da mão direita dele. Uma tentativa acanhada de afastar-se, e sua mão direita se deixa levar pelas mãos dela, mesmo que a mão esquerda continue retraída. Ela segura sua mão direita com ternura e acaricia seu pulso com a ponta dos dedos, parece sentir a dor que vem do peito dele. Aperta sua mão direita e busca pela esquerda, que se move abatida, que resiste, mas que cede, e suas mãos se entrelaçam novamente, com força. Mas seus olhos não se erguem na direção dos olhos dela. Ele aperta as mãos dela entre as suas, as leva à boca e as beija com suavidade. Pousa as mãos na mesa de novo, levanta os olhos até encontrar os olhos dela.

“Eu quero, e quero muito! Mas não posso… Se for possível, me perdoe…”

Solta as mãos dela, levanta-se e vai embora, enquanto “When it rains” se esvaece.

São Paulo, 14 e 15 de março de 2022.

Andre Carvalho
Enviado por Andre Carvalho em 03/09/2022
Reeditado em 03/09/2022
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