Chuva

As festas de junho começaram como sempre, surgindo como a chance da juventude de existir plenamente. Roubei alguns olhares desatentos e toques de cantos de dedos ansiosos, nada muito diferente dos livros que nos mandaram ler no colégio. Platônica, o amei silenciosa entre nossas conversas despretensiosas sob árvores e céus, gravando em mim cada traço entre seu nariz e sua boca. Havia algo mágico nas reações fortes que tão poucos movimentos seus poderiam me causar, como se a novidade carregasse as chaves da destruição e criação.

Minha meninice era óbvia a quaisquer olhares, evidente sob meus cabelos negros e enrolados. Imaginei seus dedos passando por entre as voltas dos cachos, enlaçando-se neles e soltando-os repetidas vezes, fruto da inocência que só se tem ao amar pela primeira vez. Olhava a igreja matriz e pensava em como algo pode ser tão meu e tão distante, em simultâneo. Distraída em fantasias, não percebi quando o céu se tornou cinza e logo depois escuro.

A chuva tocou meu rosto e corri. Avistei colegas correndo, todas para baixo da mesma marquise, para a mesma mercearia. As gotas caindo, nossos corpos velozes, apenas sorrisos. Ninguém se importava se estar tão molhado. Quando finalmente paramos, gargalhando sob o primeiro teto encontrado, mirei o outro lado da rua para além dos paralelepípedos e o vi de pé. Seu olhar me tocava e a água da chuva escorria pelo rosto. Usava uma camisa simples, surrada, em um tom terroso e o jeans de sempre. Seus braços eram fortes, mas não grandes, como um garoto deve ser. Os ombros curvados se endireitaram ao me perceber e o vi sorrir. Estava sob outro pequeno teto, cercado de amigos que perceberam o que acontecia, porque nunca fomos bons em esconder a química. Imediatamente, ouço várias vozes dizendo “atravessa”. Um coro descoordenado, não combinando, dizendo a mim que atravessasse a rua. Atravessasse até ele. Seus amigos batiam palmas e gritavam, mas ele estava quieto como quem esperava.

Olhei ao meu redor, minhas amigas faziam parte do coro, ainda que sem as palmas. Minha palpitação era sentida nas pontas dos dedos, na cabeça, na ponta dos pés. Todo meu corpo ansiava por alguma decisão pelo que pareceram horas, mas foram alguns segundos. Disposta a dar fim ao vozerio, me lancei em direção a chuva.

As gotas ferozes caíram me molhando mais, enquanto dei passos errantes sobre as pedras, temendo cair bem ali sob todos os olhares possíveis. Meus olhos escuros só o viam, só focavam na curva do lábio inferior dele. Ele tremia de frio, mas sorria. Logo me vi do outro lado, olhando o de baixo para cima, um sinal de que estava mais perto do que costumava estar. Haviam eternidades contidas em cada segundo entre minha chegada e o momento em que seus braços me envolveram e eliminaram a distância entre nós.

Coração com coração.

Seus lábios inexperientes tocaram os meus, nossos narizes em harmonia. Meu coração acelerado combinava com seu rosto imberbe. Seu beijo tinha gosto de amor juvenil, aquele que troca olhares entre portões e toques enquanto não se pode dizer nada. Sua respiração me envolvia a cada busca por ar. Me fascinei pela maciez dos nossos corpos juntos, como que por destino, feitos para se encaixar. Em transe, ouvia ao longe o som dos aplausos daqueles que nos cercavam, reverenciando a consumação do que todos já viam escapar de nossos olhos quando nos encontrávamos pelas ruas dessa cidade tão pequena.

Com a visão turva, nos deixamos e pude encontrar novamente o castanho escuro dos olhos dele que prometiam mil vidas, mil beijos, mas não puderam cumprir. O beijo teve fim, assim como a chuva, a meninice e meu tempo naquele lugar, contudo, o amor jovem segue vivo em meu coração até os dias atuais. Talvez para sempre.

H C Oliveira
Enviado por H C Oliveira em 27/08/2022
Código do texto: T7592592
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