O VÔO DA MONARCA
Passaram-se semanas desde que a mulher havia viajado para tentar o tratamento no centro hospitalar daquele país distante, onde vivia o primogênito do casal. Diziam que era uma técnica pioneira, somente ali disponível, com grande possibilidade de êxito. O filho viera de lá para acompanhá-la.
Ao marido, restou o consolo da esperança. Se sua amada se recuperasse, que felicidade! Ele próprio às voltas com um câncer que lhe retirava as forças cada vez mais, não teve condições de tomar o avião com ela. No dia da partida, sentiu-se tão mal que nem ao aeroporto conseguiu ir. Pediu o retrato de ambos que ficava na estante da sala íntima e segurou-o o mais firme que pôde, até que a enfermeira o convenceu a deixá-lo sobre o criado mudo do seu lado. Olhava-o todo dia e imaginava que a esposa estava em casa, pronta a vir assim que a chamasse.
O tempo corria, porém. Nenhuma perspectiva, por ora, de que o tratamento estivesse prestes a concluir e a liberá-la para o regresso ao lar. Por mais que o amor nutrisse a esperança, pesava muito a tristeza da separação. Todo dia, comunicavam-se pelos meios disponíveis na internet. Não obstante, inexiste tecnologia suficiente para superar o distanciamento físico e a absoluta necessidade da proximidade pessoal, do contato afetivo. O homem sofria a dor da momentânea separação mais do que as ocasionadas por seu mal incurável.
Uma tarde, chegam más notícias. O tratamento parou de surtir efeito. O filho, de natural contido, não resistiu às lágrimas para dar a entender que deveriam preparar-se para o pior. Sem saber o que responder, o marido pediu licença para interromper a chamada e pensar consigo mesmo. Pensou e repensou, em tudo que era pensável e imaginável, sem chegar a qualquer conclusão digna, até que a noite veio, trazendo-lhe o paliativo da sonolência irresistível.
O sono foi entrecortado de despertares atônitos e confusos, mas uma ideia ao menos pareceu ganhar crescente força em sua mente. Iria ver a mulher! Sim, senhor! Nada o impediria de estar com sua companheira de toda a vida. Reconfortado com essa decisão, iniciou uma série de comandos ao seu fragilizado corpo. Como se fosse casulo, dele surgiu uma borboleta monarca, linda e possante como as que recordava haver visto na juventude.
O inseto imediatamente alçou vôo rumo ao destino. Consciente da enorme distância a vencer, bastante superior à que normalmente cobrem as da sua espécie na migração periódica, muniu-se do profundo senso do dever que deveria cumprir. Com poderosos movimentos das asas, começou a vencer, progressivamente, os milhares de quilômetros da rota. Curioso como a borboleta enfrentou o caminho até então desconhecido com tamanha precisão! Não hesitou quanto ao trajeto, percorreu-o com uma segurança que só ela, colibris, abelhas e talvez outros seres sintonizados com as flores podem demonstrar.
A esposa era a flor do marido, isso certamente explica o sentido de direção da viajante. Dava gosto ver como ela atravessou rios, florestas, montanhas e cidades sem qualquer sinal de dúvida. Surpreende não se haver detido para repor suas energias com os néctares das muitas flores do caminho. Partira com suficiente vigor para apenas vir a reabastecer-se no destino final. Importava-lhe avançar, avançar, unicamente avançar até chegar.
Foram muitos os perigos, contudo. A exuberante monarca teve de esquivar-se de muitas aves, répteis e batráquios, ávidos por devorar petisco tão belo e tentador. Superou todos esses obstáculos com determinação.
Ingressou no centro hospitalar, localizou o quarto da paciente e pousou suavemente em seu corpo agonizante. Nem o filho, nem os médicos, ninguém percebeu a borboleta que ali permaneceu até esmaecer e sumir com o último suspiro da mulher.
O marido, de longe, tudo vivenciara, porém. Finalmente, pôde descansar em paz.
A monarca cumprira sua missão.
Divulgaescritor, Coluna do autor, fevereiro 2019.
Revista LiteraLivre, 15 maio/junho 2019.