Diário de A. W, do corrente ano.

 

Eu comecei a sentir as dores do parto na noite anterior. Umas pontadas alucinantes que pareciam estocadas de canivete como naquele dia em que Jero enlouqueceu e ficou me furando para eu lhe entregar a droga que eu não sabia onde estava. A diferença era o sangue que, naquela ocasião, cuspia fora do meu corpo. As dores do parto não enxotavam sangue, mas doíam como os cortes da lâmina. Minha mãe me pôs no carro velho e saiu dirigindo feito louca para a casa da minha avó de estimação. Ela estava com ódio de mim e pensei que iria me matar. Repetia o tempo todo que agora eu aprenderia a ser gente. E quando eu estivesse uivando feito a cadela que eu era, ela iria gargalhar. Eu me contorcia no banco ao lado, procurando um jeito de sentar que aliviasse um pouco, mas a dor caminhava no pé da barriga e tudo era incômodo. Minha mãe estava louca e falando sem parar, dirigindo e fumando um cigarro atrás do outro. De vez em quando, eu pegava uma ponta dela e fumava também. E quando ela percebia, gritava comigo e puxava meus cabelos. Eu até gostava porque uma dor disfarçava a outra. Mas, talvez, apenas a dor da morte pudesse amenizar aquela que eu sentia. O carro pegou a estradinha de chão, minha conhecida, e fomos entrando no mato. Eu lembrava bem daquele lugar. Foi ali que morei quando era criança, quando não podia ficar em casa porque minha mãe estava no manicômio e o meu padrasto era um bêbado tarado. Rute não era minha avó de verdade, era, sim, uma boa senhora que morava sozinha e que, de todos nós, parecia viver melhor. Ela cuidava de mim do jeito dela. Sem cuidar. Eu poderia ficar por lá sempre que quisesse desde que não atrapalhasse sua vida com obrigações que ela nunca teve. Então, eu era feliz vivendo ali. Acordava e comia o que estivesse à mesa e depois ia brincar. Andava embrenhada nos matos, correndo atrás dos bichos e eles atrás de mim. Tomava banho de rio e, no final do dia, voltava à noitinha para jantar, se houvesse janta, e dormir. Foi na casa de Rute que cometi meus primeiros furtos. Ia levando uma coisa e outra para dentro do mato e fazendo uma cabaninha lá pra mim. Roubava sempre uns trocados para comprar alguma coisa gostosa, porque Rute não gastava dinheiro com bobagens. Às vezes, eu passava uns apuros, principalmente com os moleques da região que queriam me pegar à força. E isso aconteceu aos dez anos. E depois outras vezes, até que comecei a brigar e andar com uma gangue de lá. Foi assim que reencontrei Jero e conheci o álcool e as drogas. Ele devia ter uns dezoito anos e, quando não estava chapado e louco, era um bom rapaz. Ele logo resolveu cuidar de mim e sempre tinha alguma coisa para me dar se eu tivesse alguma coisa para dar a ele. Eu nem achava ruim, porque depois dele ninguém mais mexia comigo. E quando ele sumia, eu podia brincar em paz com as minhas bonecas, lá na minha cabana. Bons tempos aqueles. Era bom ver o sítio se aproximando e a velha Rute me esperando na porteira. Quando chegamos, as duas brigaram. Parecia que minha mãe queria ir embora e me deixar por conta de Rute, que não aceitou. Eu ouvi bem o que ela disse: "A criança vai nascer aqui, mas vocês vão trabalhar! As duas!". Rute era brava e minha mãe não teimava com ela. Eu não sabia como me portar, andava pelo quintal me agarrando em tudo o que havia. A dor aumentava rapidamente. As duas sentadas na entrada da casa pareciam não me ver, contavam causos, fumavam e riam até não querer mais. A noite foi caindo e eu não me aguentava, abaixava e levantava, andava e paralisava. As pontadas ficavam mais curtas e mais profundas. Jero não me saía da cabeça. Ele e seu canivete. E depois aquela faquinha que me levou para o hospital duas vezes. Eu levantava o vestido e procurava na barriga a cicatriz que estava bem apagada e nem se parecia com aquele corte quente e ardido que me deixou sem fôlego. Virei a noite gemendo. Querendo puxar aquela coisa de dentro de mim de qualquer jeito, mas parecia que ela não queria vir. De madrugada, as duas mulheres se puseram a esquentar água. E a reclamar e maldizer. Rute reclamava, porque queria dormir mais e minha mãe me xingava de todos os palavrões que um dia ela aprendeu na cadeia. Eu pensava que era isso que estava fazendo a criança recuar. A dor era tanta que ela parecia estar cravando as mãos e os pezinhos para não sair. A essa altura, eu já estava chorando desesperada. O dia começou a clarear quando ouvi minha mãe dizer que achava que eu ia morrer. Rute deu de ombros e depois disse que Deus ia fazer a vontade dele. As duas pareciam meio assustadas e até pararam de discutir. Minha mãe disse que eu estava pálida, muito magra, que não teria forças para colocar aquela criança para fora. Vi quando ela começou a chorar e dizer para Deus me ajudar porque ela não queria meu mal não. Rute repetia que ela poderia ter me levado para o hospital, mas como estava com ódio no coração, queria me fazer sofrer. E completava: "Nem toda criança nasce, nem toda mãe sobrevive. É a vida." De repente, eu senti uma pontada na barriga que parecia um facão rasgando a carne. Fiquei sem fôlego. Dei um grito, um uivo. Sei lá o que era aquilo. As duas se voltaram para mim e começaram a gritar que ia nascer. Senti um líquido descendo pelas minhas pernas e me lembrei do sangue quando Jero me furou. Pensei que minha barriga tinha rasgado, pois a pele estava retesada ao extremo. Fiquei de cócoras e comecei fazer a força que eu já não tinha. Gritava e chorava apenas. Deitei no chão mesmo porque não consegui caminhar até o quarto. E quando amolecia, minha mãe me batia enquanto Rute gritava que estava saindo, estava nascendo. Eu não sei o que estava saindo, mas eu sabia que eu não iria sobreviver. A dor era devoradora e eu não tinha nada mais a dar para ela. De repente senti algo escorregar e desmaiei nos braços da minha mãe. Só vi o rostinho da minha filha dois dias depois quando acordei no hospital. Eu era um cadáver sem cor e sem forma. Mesmo que todos dissessem que eu estava bem, não era assim que me sentia. Mas a minha filha era linda! Pequenina e forte. Olhos pretos e grandes. Bochechas rosadas e sardentas. Peguei-a nos braços com a ajuda da minha mãe enquanto Rute dizia rindo "Você precisa dar um nome para essa menina, que já veio marcada com uma assinatura de Deus." Eu fiquei olhando para ela por algum tempo, observando o sinal de nascença no pescoço que se parecia uma borboleta. Pouco depois declarei: seu nome será Nina. Uma semana depois, estávamos de volta ao sítio. Eu continuava um zumbi, mas ao contrário do que se podia imaginar, tinha muita disposição para cuidar da minha filha. Todas as manhãs saía caminhando devagar pelo mato, debaixo das árvores. O vestido sacudido pela brisa, o sol escoando pelo tecido. O frescor do tempo e o calor na medida certa. Ia brincar de boneca lá na cabaninha. Lá estava tudo o que era meu. E só muito tempo depois soube que, embaixo do bercinho improvisado que Rute fez, onde Nina dormia sossegadamente a sua primeira infância, estava enterrada a minha placenta. "Ela dizia que era a nossa raiz plantada na terra". Eu tinha treze anos e era mãe.

 

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Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 27/07/2022
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