EU QUERO A AMAR

Fui aquela festa na companhia da minha irmã que fora convidada por uma amiga dela. Apesar dos meus 19 anos, época de ser festeiro como a maioria da minha faixa etária, eu sempre fui avesso, uma espécie de Dom Casmurro, introvertido com minhas emoções e inibido nas minhas relações, principalmente com o sexo feminino. Isso ficava mais evidente quando eu percebia uma garota e sentia por ela alguma emoção positiva, uma sensação libidinosa que me vinha a mente e era automaticamente rechaçada por meu espírito. Por isso, mesmo me sentindo atraído pela garota, eu procurava ficar afastado dela, nem ao menos me permitia olhar para ela.

Pois assim fiquei naquela festa... depois que minha irmã se encontrou com as amigas, eu terminei ficando escanteado, assistindo o volateio das pessoas umas entre as outras e o burburinho de um falatório entremeado de risadas e mudanças de tons. Alguns se contorciam numa pista de dança improvisada, outros sem querer soltar os seus copos, que parecia ter dentro algum combustível para liberar tanto gasto de energia.

Foi assim que percebi entre tantas, uma garota, meio simplória. Não tinha sobre si tanta maquiagem e sua roupa era também simples, mas bem adequada ao seu corpo, bem torneado, permitia mostrar suas curvas devidamente cobertas, sem nenhum excesso de exibição. Centrei a minha observação nela, à distância. Notei que ela estava naquele salão de dança improvisado, sem demonstrar tanto interesse, cortejada por um rapaz com copo na mão e que exibia seus passos de dança, sendo correspondido pela garota, sem tanta energia. O seu aspecto físico me atraia e o seu modo de se comportar mais ainda. Notei como destoava daquele parceiro, talvez uma paquera ou mesmo namorado.

Passei a ter uma atenção centrada naquela menina... passou a funcionar em mim o que eu tinha de mais forte: a imaginação, os sonhos... imaginava que passava perto dela, trocava um olhar e um leve sorriso. A partir daí nossos olhares se procuravam, discretamente, sempre ela procurando fugir do assédio do companheiro que dançava e bebia na sua frente.

Por uma feliz coincidência (ou não?) o seu olhar cruzou com o meu, apesar da distância. Senti uma espécie de choque elétrico na mente, me puxando dos sonhos para a realidade. Notei que ela procurava novamente o meu olhar e aí fui dominado por meus impulsos inibitórios, negativistas, e procurei fugir do olhar dela. Até mesmo de sua presença. Fui para um espaço mais distante, onde eu não tinha mais a visão do salão improvisado.

Fui até uma mesa onde tinha a disposição uma jarra com sucos arrodeada de salgadinhos. Pequei um copo e fui até a torneira onde tinha um suco de cor amarelada, sem identificação, mas que imaginei ser de cajá ou maracujá, ambas frutas que gosto.

Senti uma presença logo atrás de mim e meu coração disparou. Antes de vê-la eu a senti. A garota do salão estava também com um copo na mão esperando a vez de enche-lo com o suco que eu também iria beber. A minha mente entrou em descompasso. Não tinha mais condições de construir nenhum tipo de imaginação. Queria fugir daquela situação, desaparecer, me tornar invisível. Nunca imaginei que uma torneira como aquela da jarra de suco, fosse tão lenta para encher um copo tão pequeno. Mas eu devia me controlar, não podia deixar que o alvoroço da minha mente e do meu coração se expressasse em tremor nas minhas mãos...

Não cheguei a encher o copo. Um pouco acima da metade, fechei a torneira e dei espaço para ela se aproximar. Não podia sair correndo como eu queria e fiquei parado, melhor dizendo, paralisado ao lado dos salgados e com medo de pegar algum e mostrar o tremor que eu começava a sentir no meu corpo. Para piorar, ela voltou aquele olhar angélico sobre mim e um leve ar de riso. Isso foi como uma injeção de adrenalina diretamente no centro do coração. Acredito que o meu olhar era de estupefação, e o riso que deveria sair solidário, acho que saiu na forma de uma careta. Minha imaginação voltou a funcionar no modo negativo... “ela deve estar pensando que sou um retardado mental”. Essa imaginação não ajudava em nada, pelo contrário, piorava!

Mas a situação foi se enrolando cada vez mais. O rapaz que fazia parceria com ela no salão, chegou próximo de nós com o seu inseparável copo na mão. Pude perceber pelo modo dele falar e do hálito que exalava, que se tratava de bebida alcoólica e que já estava fazendo efeito. Ele chegou no modo “macaco” do alcoolismo, onde a pessoa faz tudo para ser engraçado, até inconveniente. Chegou perto de nós e sem a menor cerimônia foi logo falando...

- Ei... então você está aí, né? Fugiu de mim? E achou um amiguinho? Então vamos brincar... vamos fazer um joguinho...

E se dirigiu para mim, com uma postura meio cambaleante e um sorriso irônico no rosto.

- Vamos ver se você sabe o valor do prazer... responda rápido... eu f... você. Você f... ela. E ela me f.... Quem tem maior prazer?

Respondi rápido como ele queria.

- Eu não participo desse jogo!

- Mas porque não?...

- Por que eu não quero f..., eu quero a amar!

Isso foi uma bomba que eu soltei que não soube de onde veio. Imagino que do fundo do coração, se revoltando contra a minha inibição e com tamanha falta de consideração dessa pessoa que me interpelava atingindo uma pessoa que eu admirava.

De repente aquela festa deixara de existir. Eram apenas nós três sentindo os efeitos emocionais da bomba que eu acabara de lançar com minhas palavras. Senti o efeito do álcool se dissipar da mente do meu interlocutor, sua voz ficou titubeante, sem conseguir se articular. Pediu refúgio em mais um gole do seu copo, como para voltar o grau de embriagues que o protegesse de sua gafe.

A garota também se mostrava impactada. Seus olhos bem abertos, talvez um pouco umidificados, exprimiam admiração, gratidão. Não disse uma só palavra, não era preciso. Voltou a dar um sorriso, dessa vez mais intenso, antes de sair, como a dizer: “eu também quero te amar”.

Mas de todos, o mais impactado fui eu. Fui eu o autor e o emissor da bomba! A bomba que quebrou as muralhas que prendiam a minha verdadeira alma. Mostrou que para mim o sentimento do amor está acima do prazer carnal. Mostrou que a pessoa amada deve ser venerada antes de ser penetrada. Que o respeito à pessoa humana deve sempre estar acima dos desejos animais. E, principalmente, que meus sentimentos positivos jamais devem ficar presos ou escravizados por medos imaginários.

Aquela garota serviu de chave para abrir todas as minhas algemas emocionais. Não trocamos uma só palavra, mas nossos olhos comunicaram o que nossos corações sentiram. Ela foi embora e não combinamos nada, nem ao menos sei o seu nome nem ela sabe o meu, mas eu conheço o seu coração e ela conhece o meu. O destino talvez seja o nosso Cupido e mais adiante no tempo, talvez, a mesma frase que usei como bomba, eu possa usar como convite:

- Eu quero a amar!