UMA TARDE PARA NUNCA ESQUECER

 

 

     Se me perguntassem por que eu estava naquela tarde esperando por ela eu não saberia responder, mas diria que queria muito ficar frente à frente com aquela mulher. Eu precisava nem que fosse trocar duas palavras, um olhar, cumprimentá-la tocando em sua mão.

     Estava ansioso e tinha dúvidas se ela viria mesmo. Portanto, meus olhos não desgrudavam do início da alameda por onde ela certamente haveria de caminhar até cruzar a praça e chegar a mim. Então transcorreram alguns intermináveis minutos até que reconheci sua figura de passos calmos, expressão séria e olhar determinado, iniciando o percurso exatamente onde meus olhos estavam fixos.

     Éramos colegas, mas não éramos amigos, até àquele momento… Eu precisava colocar um ponto final naquele relacionamento sintético, naquela relação de cabeças baixas para encobrir nossos olhares furtivos. Eu precisava olhar aquela mulher de frente, talvez olho no olho, dar um bom dia e ouvir sua voz responder, quem sabe com um sorriso, um “bom dia” cordial.

     Eu estava cansado de perceber seus muxoxos, sua indiferença, seu repúdio. Eu gostaria de ver um sorriso daquele rosto na minha direção, ou pelo menos não ver se desfazer um quando nossos olhares coincidissem vez ou outra. Por isso pedi para que ela me concedesse alguns minutos de atenção para uma conversa amigável.

     Ela resolveu contemporizar, ouvir o que eu tinha para lhe falar, mas não poderia ser no ambiente de convívio, sujeitos a observação de outros colegas, principalmente de curiosos que certamente fariam comentários inconvenientes. Surpreendi-me quando ela ergueu o olhar e me encarou à minha abordagem no corredor, ao cruzarmos um pelo outro, algo que sempre ocorria, com ela lançando o olhar para um ponto abstrato no infinito, ignorando-me, e eu retribuindo também, buscando o meu ponto abstrato.

     Desta vez não. Já cheguei decidido e, procurando o que poderia ser de mais delicado num homem para com uma mulher, como se estivesse tocando num floco suspenso no ar pronto a se desfazer, temendo que ele escapasse de minhas mãos, pronunciei fitando-a nos olhos:

- Sophia, bom dia. Posso falar um momento com você? - Aguardei uma resposta ríspida e o olhar de desprezo costumeiro. Meu coração parecia querer explodir, estava acelerado, minha voz denunciava nervosismo.

     Mas qual não foi minha surpresa quando ela buscou o fundo dos meus olhos e respondeu com a amabilidade que costumava usar para com os outros colegas:

- Pois não, colega. Diga em que posso ajudar. - Falou e manteve o olhar fixo em meus olhos.

     Não senti o chão nem enxerguei mais as paredes do corredor, meus olhos miraram apenas o brilho que irradiava dos olhos da mulher à minha frente. Ela parecia também estar recebendo o mesmo impacto da surpresa. Talvez não esperasse tão inusitada atitude minha. Nem mesmo eu esperava tão corajosa investida de minha parte.

- Precisava falar muito com você…

- Sobre…

- Uma coisa que está ocorrendo e que precisamos resolver.

- O que está acontecendo, é algo a meu respeito? O que foi que houve?

     Nossa troca de palavras foi muito rápida, quase não respiramos entre as frases. Ficamos meio afobados com a novidade. Resolvi acalmar um pouco as coisas.

- Não. Não foi nada que aconteceu com você. Nada tem a ver com o seu trabalho. Segurei meu olhar dentro do seu respirando profundamente e devagar. Ela inspirou também. Parecíamos sentir juntos o clima ameno, até agradável que envolveu o corredor, a atmosfera ao nosso redor.

- Tem algo a ver conosco, aqui no trabalho, pois precisamos melhorar a cooperatividade entre a gente.

     Mas, como se não quisesse demonstrar fragilidade, ela enrijeceu a voz e determinou:

- Não quero conversar com você aqui no escritório. Dou-lhe alguns minutos depois do expediente. Quando então a gente poderá se falar. Mas, por favor, veja aí um lugar decente, público e que seja seguro, não quero correr riscos, você sabe como está a violência hoje em dia. E tem de ser rápido, não posso chegar muito fora do meu horário normal em casa.

...

     Então, lá estava eu, ao final da tarde, presenciando as luzes da cidade se acendendo lentamente, ouvindo a sinfonia estridente das cigarras nos enormes oitizeiros, as revoadas dos pardais buscando os ninhos nas frestas dos telhados dos edifícios, os automóveis cada vez mais lentos nas ruas devido ao aumento do trânsito, com suas buzinas nervosas diante dos semáforos, observando Sofia se aproximar de mim com o olhar imantado ao meu e um suave e bem discreto sorriso moldando o rosto moreno e a boca pequena.

     Havia combinado com ela que a esperaria nas imediações de um museu, pois era bem movimentado, seguro e com mínima possibilidade de aparecer alguém conhecido nosso ou mesmo algum colega de trabalho. Se bem que não estávamos fazendo nada de errado. Queríamos mesmo era evitar especulações.

     Meio faceira, meio afobada, Sofia transpôs os portões do gradil que circundava o museu, andar trabalhado, remexendo cuidadosamente os quadris generosos, protegidos pela calça de lycra preta que moldava suas coxas e suas pernas. Mantinha a bolsa protegida, colada ao corpo como se dentro dela carregasse os mais valiosos apetrechos… coisas de mulher. A cintura detalhada pela roupa chamava a atenção. Seu corpo pequeno e moreno parecia deslizar por entre os bancos e os canteiro da praça do museu.

     Assim que ela chegou trouxe junto um perfume suave, gostoso e muito agradável. Observei que ela havia colocado um batom diferente do que usava no escritório, estava mais brilhoso. Os cabelos bem penteados e a fardinha da empresa tinha dado lugar a uma blusinha azul-marinho de alças. Nunca havia a olhado tão detalhadamente…

     Sofia era uma mulher bonita, até certo ponto vaidosa. Gostava de se vestir simples, mas atraente. E era exatamente esta parte de nossa convivência que eu queria suscitar, ver naquela mulher exatamente o que ela era, uma mulher!

     Ao tê-la mais próxima de mim, estendi a mão para cumprimentá-la, porém ela se achegou mais e ofereceu um lado do rosto para um cumprimento mais afetuoso. Tocamo-nos com um lado da face, depois o outro numa amabilidade que me deixou confortável para ir em frente e quebrar os obstáculos, derrubar as barreiras que nos separavam e impediam a amizade entre nós dois.

- Oi, colega. E então, que tanto você que falar comigo? - Sua voz soou educadamente, mas firme e imperativa.

- Gostaria de entender por que é que a gente não consegue ser amigos, Sofia. O que foi que fiz, ou o que aconteceu para você me tratar com tanta indiferença?

- Olha, Pedro, vamos deixar pra trás o que houve ou o que não houve. O importante é o que seremos daqui pra frente, a gente se entenda e sejamos bons colegas de trabalho. Certo?

- Está bem. Quero apenas de lhe dizer que gosto de você, sinto uma afeição muito grande por sua pessoa e eu gostaria de que fôssemos amigos.

     Então, conversamos por alguns minutos, compartilhamos de coisas engraçadas do dia a dia de nosso escritório, das pessoas e até de nós mesmos. De um momento para o outro nos tornamos como velhos amigos e ríamos sem as barreiras que antes existiam entre nós dois. Ficamos encostados ao lado de uma mureta de proteção de algo do museu, frente a frente um com o outro quando em dado momento, com a espontânea e forte aproximação que tivemos, cheguei a sentir sua perna direita tocando a minha esquerda.

     Engoli em seco e me aproximei mais. Ela tagarelava alguma coisa, mas eu já nem ouvia, apenas prestava atenção nos seus lábios em movimento, uma vez que as palavras perderam importância. O mais importante a partir daquele instante foi o perfume que exalava de seu corpo, da sua roupa, dos ombros morenos que seguravam as alças daquela blusa.

     Movimentei os braços em sua direção e toquei de leve seu rosto, enquanto sentia o chegar suave do meu corpo ao seu. Fechei os olhos por um momento e esperei ser rechaçado bruscamente, mas ela me permitiu que tocasse seus braços com minhas mãos e deslizasse suavemente meus dedos numa carícia tímida e cuidadosa em sua pele. Seus braços vieram em minha direção e enlaçaram meu pescoço suavemente enquanto seus olhos se mantinham fixos nos meus.

     Ela havia parado de tagarelar fazia tempo, mas eu não sabia precisar quando foi que emudeceu. Tive receio, mas o desejo de beijá-la foi maior e aproximei meu rosto do seu e a beijei na face, bem no cantinho da boca, envolvendo seu corpo com um abraço terno, mas firme. Inclinei a cabeça para um lado enquanto ela inclinou a sua para o outro.

     Pronto, percebi que ela queria ser beijada de verdade. Deslizei os lábios em direção aos seus, apenas um imperceptível movimento, pois eles estavam extremamente próximos. Não foi um beijo voluptuoso. Foi a mais suave prova de carinho que duas pessoas poderiam demonstrar uma para outra. Não senti sua língua, então contive a minha, mas provei do sabor de sua boca na suave umidade que pude absorver daquele beijo.

     Sua respiração bem pertinho do meu rosto, o trocar da inclinação do rosto e o colar do corpo para sentir o corpo do outro foi algo que me deu uma das sensações mais incríveis que já pude experimentar. Excitei-me. Eu estava com uma mulher nos meus braços, uma mulher que anteriormente me repelia, uma mulher que antes me ignorava, mas que eu sentia um carinho enorme por ela. Como foi bom…

     Pensei sim, em tê-la completa para mim, em fazê-la minha mulher e usufruir melhor daquele braços, daquela boca, de seus beijos, de sua língua, de sua pele morena e cheirosa. Pensei em tê-la sem as barreiras das roupas, em enroscá-la com meus braços e cobri-la de beijos por todo o corpo, banhá-la com minha língua e encher-lhe de prazer ao fazer amor. Contive meus pensamentos, minhas intenções, minha excitação. Precisava respeitá-la e deixar à sua disposição a minha amizade, meu companheirismo e muito afeto.

     Mas aquela tarde me surpreendeu. Fui buscar um entendimento e uma amizade, ganhei as duas coisas e de brinde fui agraciado com uma troca de carinho que jamais pensei que pudesse ser tão gostosa e gratificante.

 

     Foi uma tarde para nunca mais esquecer...

 

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