Estrelas Azuis

Você chegou e bagunçou minha vida, minha casa, minha cama.

Contou sua história e fez história.

Trouxe o colorido que a paixão espalha e a intensidade das manhãs de verão.

O azul do seu olhar se confundia com o encontro do céu e mar.

Estrelas azuis iluminando o céu.

Não deixou saudade pois permanece vivo e presente…

Lá pelo meio dos anos 1980, eu era proprietária de uma pequena e simples pousada naquela praia. A cidade, que ficava próxima, estava começando a crescer com o turismo, mas aquela praia ainda era tranquila.

Eu fui transformando a casa que herdei de meus pais em uma pousada e ela era charmosa e aconchegante.

Meu marido, que era nativo do lugar como eu, havia me trocado por uma turista rica.

E eu continuei sozinha com a pousada que com o incremento do turismo estava crescendo e se tornando rentável. Eu trabalhava muito, mas ali sempre foi o meu paraíso.

Um belo dia apareceu por lá um homem. Era bonito, belos olhos azuis, um belo porte e uma elegância e educação invejáveis. Aparentava ter a mesma idade que eu, por volta de quarenta anos.

Disse que estava querendo um lugar para morar por um tempo. Procurava uma casa pequena ou um chalé. Por coincidência eu tinha acabado de construir alguns chalés e ele olhou e se apaixonou.

Ele passou a morar lá. Tomava o café da manhã e jantava lá na pousada. Ficava fora o dia todo. Era triste e sério. Não dava abertura para conversa ou perguntas.

Ele era médico e fora contratado pela prefeitura.

Muitas vezes após o jantar ele fazia longas caminhadas pela praia ou ficava sentado com o olhar distante.

Num lugar pequeno como aquele todos sabiam do novo médico que chegou. Muitos especulavam sobre ele. Alguns diziam que era viúvo, outros que era divorciado, mas ninguém sabia ao certo.

Eu tentava me aproximar dele. Puxava conversa e ele nunca rendia assunto.

E quanto mais ele agia assim mais encantada eu ficava.

Ele nunca esboçava nenhuma reação a nada, como se não passasse de uma pedra de gelo.

Algumas vezes quando ele estava na praia eu chegava lá com alguma desculpa. Às vezes ele trocava algumas palavras comigo.

Numa noite de lua cheia ele me chamou pra sentar com ele na areia. Ficamos em silêncio contemplando a beleza da noite ou falando banalidades.

A partir desse dia ele começou a reparar em mim ou pelo menos despertou para o fato de eu ser uma mulher.

Na cidade todos estavam encantados com o novo médico. Era compenetrado e demonstrava competência. Tinha um coração enorme e uma grande consciência social, o que devia ser característica de todos os médicos. Ele ajudava a todos que precisassem e levava uma vida bastante simples.

Muitas vezes eu o peguei perdido em pensamentos como se o segredo que guardava pesasse demais em seu coração e em sua alma.

Um dia estávamos caminhando pela praia e pela primeira vez eu o vi sorrir. Eu toquei de leve seus lábios com os meus. Para minha surpresa ele me puxou e me beijou. Depois me abraçou como se pedisse socorro.

-Quer conversar?

-Não. Só quero ficar aqui imerso neste abraço.

Eu o envolvi em meus braços e ficamos parados ali pelo tempo que pareceu uma doce eternidade.

Começamos a caminhar pela praia todas as noites. Ele, na maioria das vezes num silêncio enigmático, algumas vezes me beijava e suplicava tacitamente meu abraço para espantar seus fantasmas e silenciar sua alma.

Muito tempo depois ele passou a frequentar minha cama ou eu a dele.

Vivíamos um estranho caso. Sem promessas, sem porquês. Eu não sabia nada dele e ele muito pouco de mim.

Algumas vezes no calor dos nossos corpos tremendo de prazer e entrega, sentia que ele estava em outra galáxia. Outras vezes sentia que eu era a mulher mais importante do mundo. E ele era um homem carinhoso, atencioso, gentil, se preocupava com o meu prazer e satisfação. E muitas vezes eu me senti a mulher mais amada e feliz do mundo e que nenhum outro homem conseguiria me dar tanto prazer e carinho.

Algumas vezes ele ficava triste, sorumbático. Outras vezes parecia que o peso que carregava na alma estava se tornando insuportável.

Já estávamos vivendo esse caso há quase dez anos e eu não sabia nada dele. E nem ousava perguntar. Confesso que ficava curiosa, mas não era primordial saber da vida dele. Pra mim bastava o fato de estarmos fazendo bem um pro outro.

Algum tempo depois, numa noite de lua cheia, as ondas batendo, o vento soprando calmo parece que o que estava guardado ali dentro da alma saiu como se fosse incontrolável:

-Exatamente hoje completa quatorze anos…

Ele se calou e eu aguardei com uma quase incontida paciência. O olhar dele se perdeu nas lembranças.

-Aquele fatídico acidente tornou minha vida vazia e sem sentido. Eu me tornei amargo e passei a desacreditar das pessoas.

Ele olhava a esmo para a paisagem como se na realidade estivesse longe dali.

-Eu tinha um grande amor por duas pessoas e foi tão triste perder estas pessoas para a morte e ao mesmo tempo perder o respeito por elas.

-Eu conheci a mulher da minha vida quando tinha vinte e tantos anos. Ela era enfermeira no hospital onde trabalhei logo depois de me formar. Eu amei essa mulher com o maior e mais verdadeiro amor que um homem pode oferecer.

Casamos e fomos felizes por quase dez anos ou eu pensei que éramos felizes. Talvez, tão cego de amor e tão envolvido em meu trabalho, eu não percebi que era só um castelo de cartas que desmoronou naquele dia ferindo de morte meu coração.

-Eu cheguei do hospital por volta de oito da noite. Ela não estava em casa. Eu havia chegado mais cedo e já fiquei com a pulga atrás da orelha por não encontrá-la.

Fiquei ali esperando. Ela não me disse que ia sair. Liguei para algumas amigas que disseram que não estiveram com ela. Liguei para os pais, para os irmãos. Ninguém sabia.

O tempo passava e nada dela chegar. Eu não sei se sentia ciúme, preocupação, decepção ou raiva.

Passava das onze da noite quando o telefone tocou. Disseram que ela tinha sofrido um acidente. Eu fui correndo para o local pensando que ela tinha sido socorrida.

Quando cheguei lá ela já estava morta e junto com ela a outra pessoa por quem eu tinha a amizade mais sincera e linda, meu primo. Os dois morreram no momento do acidente. No carro todas as provas de que estavam me traindo. Provas que estavam vindo de um um motel com meu carro.

Eu sempre fui um cara tão romântico, tão passional, tão sincero em meus sentimentos, em minhas amizades. Se me dissessem que aquilo aconteceria eu não acreditaria jamais, Ia rir, debochar de quem me dissesse isso.

Sempre confiei cegamente nas pessoas por quem eu nutria algum sentimento sincero. Da mesma forma que eu seria incapaz de trair eu julgava que todos fossem.

Ela demonstrava tanto amor por mim e eu confiava tanto. Meu primo e amigo de infância talvez fosse a pessoa em quem eu mais confiava na vida.

Eu fiquei em estado de choque, já não sabia nem mais o que estava fazendo. Meu irmão chegou lá com um amigo e me levaram pra casa. Eu não tive condições de acompanhar o funeral. Nem sabia que sentimentos embaralhavam dentro de mim.

Fiquei por mais de um mês perdido, sem condições pra fazer nada. O luto se misturava ao ódio, à decepção, à descrença no ser humano, à vergonha, à depressão.

Aos poucos eu fui voltando à vida.

Estava obcecado para saber até onde foi o cinismo e hipocrisia daqueles dois. Contratei um detetive. Eu queria saber, queria ter motivos para aquele ódio que eu sentia.

E eu fiquei sabendo que estava sendo traído há vários anos. Eu abriguei em minha casa uma serpente traiçoeira. Meu primo sempre estava em minha casa. Quantas vezes eles terão se deitado em minha cama?

Aquela casa, aquela cidade já não me cabiam. E eu vim parar aqui.

Mas eu não sou capaz de amar mais. Não confio em ninguém. E nem quero amar ou confiar. Eu nunca mais vou ser ferido por ninguém.

-As pessoas não são iguais.

-Eu sei, mas é um risco que não quero correr e além do mais meu coração é terra árida onde nunca mais vai brotar nenhum sentimento.

-Quando vejo o que você faz por essa gente aqui eu não consigo acreditar nisso.

-Você entende que eu falo.

-Quando um coração é terra árida ele não é capaz de sentir nada, nem compaixão.

-Sei que você me entende. Pra mim é difícil falar nesse assunto pois sinto-me ainda hoje ultrajado.

Ele repousou sua cabeça em meu ombro. Fiquei acariciando seus cabelos como quem afaga uma criança indefesa que busca proteção. Depois o abracei e ele se aninhou em meus braços como quem busca se livrar de todas as dores.

Depois daquele dia nunca mais falamos naquele assunto, como se tivesse sido pra sempre exorcizado.

Ele nunca disse que me amava, mas eu não me importava. Se ele se sentia mais confortável assim, pra que palavras?

Ele demonstrava dia a dia com gestos o seu amor e ele sentia nos meus gestos todo o meu amor.

Tempos depois ele se aposentou e continuamos a cuidar de nossa linda e aconchegante pousada.

Vivemos uma vida sem compromisso, ficando juntos por vontade, sem complicar. O passado nunca importou. Nossa vida começou no dia em que ele chegou e meus olhos se viram nos olhos dele.

Recentemente ele se foi, voou e virou estrela no céu e em noites de lua cheia eu vejo duas estrelas azuis brilhando, dançando e bailando pra mim e pra lua…

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 04/07/2022
Reeditado em 28/08/2022
Código do texto: T7552598
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