Sol de inverno
As manhãs de inverno, para mim, são sempre as melhores. O ar, entrando gelado para os pulmões e saindo em forma de vapor. O sol tímido, com sua luminescência dourada e sua capacidade de queimar reduzida. Morno, eu diria. Esse equilíbrio da natureza me encanta. Sol de inverno é sempre o melhor.
Nesses dias minha mãe sempre coloca vários agasalhos em mim, blusas de lã, por cima do pijama, calça de moletom, meias de lã, feitas por ela mesma, casacos e cobertores, sem falar na touca e nas luvas. Nem se eu pudesse, conseguiria me mexer. Mas eu gosto assim, sinto-me protegida. Ela coloca minha cadeira no quintal, perto da goiabeira. Sinto o cheiro adocicado das goiabas, vejo os passarinhos disputando pelas frutas mais maduras, eles não se importam com a minha presença, já estão acostumados com a menina estátua que vem visitá-los todos os dias.
Vegetal. Foi assim que me classificaram, mas não me sinto assim. Só porque não posso me comunicar, não significa que não existo, afinal, para existir basta pensar, não é mesmo? E pensar eu faço muito e muito bem.
Tenho certeza que minha mãe sabe que eu estou aqui. Os médicos dizem que ainda é um mistério, a mente de pessoas como eu, dizem que não é possível saber se dentro dos corpos paralisados existe um ser vivo, mas a minha mãe sabe. Ela me trata como se eu fosse normal, fala comigo como se eu conseguisse responder, me ensina como se eu pudesse aprender. Ela é muito esperta. Sabe de tudo. Eu aprendo muito com ela. Fico imaginando como seria se eu fosse filha de pessoas menos capacitadas para me criar, me amar. Tenho certeza que agora estaria em um hospital, um asilo para deficientes. Mas Deus preparou a minha mãe para cuidar de mim.
Meu mundo é fisicamente muito limitado, mas graças a minha mãe, não tem limites. Já li inúmeros livros, sempre com a ajuda dela. Tenho um gosto muito específico por músicas clássicas e filmes românticos, até sonho, mesmo sabendo ser impossível, com um rapaz que conseguirá ver o que sou por dentro e me dará um beijo tão puro e apaixonado que será capaz de me despertar. Aprendi inúmeras coisas nos canais culturais e gosto de acompanhar os jornais e saber o que acontece no mundo. Aprecio a natureza e sei o nome das árvores, folhagens, flores e ervas de nosso jardim, assim como de todos os jardins da vizinhança.
Sei o nome dos vizinhos e conheço um pouco de suas histórias, tenho predileção pelas criancinhas, que não se assustam comigo, querem me tocar, me abraçar e minha mãe sempre deixa, ela acha que amor e carinho nunca são demais e ela está certa. Eu preciso de contato físico, assim como todo mundo, e ela entende isso muito bem, sempre me abraça, me beija, diz o quanto me ama e o quanto ela tem sorte de ter alguém como eu na vida dela.
Quando eu era pequena, ganhei um gatinho, ele me faz companhia, ronrona quando estou feliz e se esfrega em mim quando estou triste. Amo também todos os animais e eles parecem gostar muito de mim. Minha mãe me leva sempre pra visitar o zoológico e algumas fazendas. Ela me leva na praia e me coloca deitada na areia molhada, com as ondas lambendo meus pés. Amo sentir o vento em meu rosto quando ela corre, empurrando minha cadeira.
Ela acha que eu não sei, mas eu percebo todo o trabalho que ela tem comigo. Vejo o quanto ela queria que eu fosse normal. Noto como está cansada, como se dedica incansavelmente para me dar tudo o que eu preciso. Cada segundo que tira do cuidado que ela teria que ter consigo mesma para se dedicar a mim, eu vejo tudo. Penso se ela seria mais feliz se eu não existisse. Ela com certeza teria mais tempo livre, mais horas de sono, mais lazer, talvez praticaria algum esporte. Quem sabe trabalharia em algo empolgante. Sempre penso sobre isso. Ela seria mais feliz se eu não existisse? Mas não posso perguntar isso para ela.
Eu faria tudo por ela, se pudesse. Retribuiria cada sacrifício, cada carinho, cada lágrima. Só posso tentar viver da melhor forma possível, aproveitando tudo que ela faz por mim. Minha forma de retribuir é sendo feliz e plena, algo que ela sempre me diz pra ser. Sei que o maior presente que posso dar à ela é ser feliz. E eu sou, graças a ela.
O sol de inverno tocando minha pele me dá uma sensação de aconchego e paz. O vento gelado brinca com meus cabelos que tem mais movimento do que eu, sorrio por dentro, penso na vida, na sorte, no amor. Penso em tudo que tenho, tudo que sou. Fico feliz por existir, fico feliz por estar viva. Uma abelha pousa em meu nariz, não sinto medo, observo atentamente seu corpinho tão maravilhoso, as asinhas perfeitas e as cores tão harmoniosas. Ela tem o seu propósito na vida e eu também devo ter o meu. Sei que um dia chegarei a decifrá-lo, claro, com a ajuda da minha mãe. Ela é meu sol de inverno.