Um conto sobre o Ego

Sempre esperei que a coragem fosse viril, destemida e imponente, o corajoso teria em si a força do Sol com a agilidade de Mercúrio e o semblante de Marte. Imaginem o quanto me custou aceitar que existia coragem no rapaz de aspecto assustado, de humor melancólico e nenhuma agilidade transitando entre o pensar e o agir. Todavia, embora seja possível detalhar todas e cada uma de suas inúmeras imperfeições seria injusto não reconhecer a parte mais admirável e frágil que pude enxergar naquele ser: era uma criatura desesperada por gentileza, tão necessitada de bondade quanto outras criaturas precisam de poder ou de paixões.

Tinha em seu rosto, em suas mãos e em seus órgãos o resultado de uma vida inteira de descaso e desleixo, considerando que tinha um pai e uma mãe sem, de fato, saber o que significava se sentir amparado, cuidado ou priorizado de qualquer forma. Assim sendo sua vida desde que dera o primeiro suspiro este homenzinho julgou que seu maior ato de coragem era vestir a armadura da perversidade, para si cada dia tortuoso que chegava ao fim era um dia de vitória que não o fez sucumbir perante o próprio desamparo, inevitavelmente ele não se deu conta de que seu maior ato de covardia era negar em si a própria necessidade de ser visto com amor.

Ele veio ao mundo para ser um escravo, alguém que conhece a sensação de doar, de sacrificar, de aguentar palavras, pensamentos e sentimentos que lhe rasgam a alma sem jamais transparecer qualquer tipo de agonia pois o bom serviçal, como era, jamais demonstra o fardo que se carrega, nem assume que essa dor tem peso suficiente para quebrar os ossos e fazer estourar tudo o que cabe dentro daquele corpo tão jovem mas tão bem marcado pelos anos e pela própria vida.

Foi jogado ao mundo enquanto a maioria das pessoas com a sua idade mal se preocupavam com o futuro. Ele se viu a oceanos de distância de sua casa, sentindo o frio grosseiro e as más companhias de pessoas que não se podia entender nada a respeito das palavras estranhas que de suas bocas saiam, sentiu que não pertencia aquele lugar porém, para ser bem exata, esta criança não sabia qual era o seu lugar, não tendo para onde voltar e nem a quem recorrer.

Percebeu muito cedo que não se deve confiar em qualquer coisa que esteja viva o suficiente para respirar, aprendeu mais cedo ainda que depender de estranhos para viver tem um preço bastante alto e também entendeu que em sua vida desgovernada o correto seria não criar raízes. Não precisava de um lugar para si se o mundo podia ser todo seu, nem precisava de pessoas confiáveis ao seu lado se as que melhor o serviam eram aquelas que fariam tudo para o ver rastejar. Contudo, ele nunca me contou sobre o que aprendeu a respeito da própria família e creio que dentro de si era um assunto tão pútrido que ao menor toque aquilo latejava quase o paralisando por dentro, mas ele negava isso, negava toda a mágoa e se dizia uma pessoa incapaz de guardar rancor, negava a própria fraqueza.

Agia como se fosse o mais incrível, bonito, inteligente e insubstituível ser que já tivesse pisado por essas terras apesar das contradições em suas atitudes que o delatavam. Eu via em seus esforços sobre-humanos a necessidade de provar que era mais útil que qualquer um para que ele não perdesse seu lugar para alguém que estivesse menos desesperado. Via em seu jeito arredio alguém que jamais poderia ser amado, pois o amor trás consigo a suavidade que poderia reduzir em destroços sua fortaleza tão cuidadosamente construída e ele não permitiria isso. Vi alguém que se blindou com o egocentrismo e fez da arrogância uma belíssima espada banhada em prepotência para que ninguém nunca mais o fizesse se sentir imundo, abandonado, humilhado ou dependente.

Assim que se deu conta da crueldade incutida em sua rotina renunciou cada pequeno sentimento bom em si para ser consumido por tudo aquilo que traria a ele algo crucial: sobreviver e imperar sobre todos que queriam ver sua cabeça rolando pelo chão.

"Ceder seria demonstrar fraqueza e demonstrar fraqueza seria dar a todos aqueles vermes o prazer de estarem certos ao meu respeito", essas foram as palavras que eu vi dançar em sua cabeça até evaporarem na ponta de sua língua quando o questionei sobre sua determinação doentia e então entendi que sua vida passou a ser um símbolo de resistência, orgulho e honra para ele.

No fim das contas ele fez da própria vida um filme trágico em sua tentativa de viver como um herói nos destroços, envolvido em todas as regras e imposições que ele decretou sobre si mesmo, só não viveu infeliz pois é absolutamente impossível negar a felicidade quando ela corre pelas suas veias sendo sentida ao inalar, ingerir ou tragar pequenas quantias de satisfação e, por mais ilusório que fosse, isso bastou para aquietar sua mente.

Amar alguém em ruínas me trouxe questões que nada resolveram mas muito me custaram... Se ao menos ele fosse corajoso o suficiente para se virar contra o próprio julgo... Se de alguma forma conseguisse olhar para si com honestidade e fosse capaz de observar suas dores, seu cansaço, suas idéias mirabolantes, seus planos catastróficos e pudesse ver o quanto o esgotava sustentar tantas decepções... Se entendesse realmente o pedido de socorro que tão enraivecido sufocava e houvesse alguma forma dele, pela primeira vez, sentir como isso o adoece... Talvez, vislumbrando a verdade pela primeira vez, ele se permitisse sentir o toque gentil da vida, a animosidade fervendo sob sua pele e, talvez, em alguns anos poderia sentir alívio por tudo o que sua covardia quase o submeteu mas que sua coragem o libertou. Se ele ao menos quisesse descobrir um caminho diferente sendo um explorador ao invés de um imperador talvez ele pudesse se sentar a mesa com todas as suas incontáveis alegrias e, talvez, ele seria amado.

A Aristocrata
Enviado por A Aristocrata em 20/05/2022
Reeditado em 28/08/2022
Código do texto: T7519802
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