DA ESPERA DO AMOR

Por dez anos aguardou que Deus lhe desse o galardão: o companheiro que lhe faria companhia. Já ultrapassara os cinquenta anos e no mercado aberto não se achavam boas promessas. Ou era baixo ou alto demais. Não tinham carteira assinada ou compromisso sério de trabalho. Não eram também empreendedores. Ela sim entrara no ramo de restaurante e em pouco tempo conquistara a frequência dos irmãos da igreja, fiéis no consumo das quentinhas. Ela sim era empreendedora, tinha estabilidade conquistada com muita luta. Não queria um malandro, que quisesse viver às suas custas. Ou que exigisse almoço, jantar, roupa lavada sem qualquer tipo de benefício, como uma espécie de exploração. Logo ela, feminista.

O restaurante, aberto na frente da residência, ganhava flores e toalhas coloridas. A música ambiente eram sempre louvores, em tom discreto, porque Deus não precisa de escândalo e ostentação. Tinha orgulho de seu negócio, por não depender nunca mais de salário de homem. Nomeara os pratos, dava com delicadeza orientação às ajudantes, o dinheiro regrado nunca faltava, mas, como Adão no paraíso, houve um tempo em que se sentiu só.

Começara a pensar no companheiro, mas que não poderia ser como o anterior, que a deixara com as filhas pequenas, indo viver com outra, em algum lugar do Pará. Havia que ser fiel. E crente em Deus, porque aí sim saberia respeitar a companheira, ela, empreendedora. Ela, puro amor. Ela, com sua beleza rude, de gestos por vezes atabalhoados, de conversa regrada por tantos silêncios e ocupações. Ela, de cabelos curtos, muito longe da sensual exibição capilar das moças, mas sempre pintados, disfarçando os fios brancos que se avolumavam em inglória luta. Ela, com seios flácidos, fazer o quê, uma barriga saliente, mas tudo bem ajeitado por roupas discretas que a faziam uma quase clássica, talvez quase invisível na previsibilidade da combinação das cores, mesmo no sol destemperado do Tocantins, mesmo com tanta panela para lavar, desconfiando que clássico demanda menos calor e suor. Ela, que acordava cedo e dormia cedo, sem tempo para frequentar lugares que não a igreja e supermercado. Ela, a justa, criando as filhas para o bom caminho e os estudos. Ela, que seria amor, se amor houvesse.

Em segredo, confiara a Deus todos os detalhes do senhor pretendido: idade, cabelos, cor da pele, desempenho sexual, competência para carinho fora de hora e protocolo. Peso adequado à altura. Magro demais lhe parceria frágil para seu corpo um tanto robusto pelos anos, pelo trabalho de sol a sol, pelo que consumiu na maternidade das duas meninas do primeiro casamento, pela total falta de interesse por exercícios físicos e academia. Já não lhe bastava tanto exercício de sol a sol, correndo para lá e para cá para que nada faltasse às mesas na hora certa, todas as quentinhas devidamente aprontadas, a pimenta e a farinha ao lado, a mesa limpa, o tempero no ponto? Mas que também não fosse gordo, porque não lhe caberia o terno em que já o antecipava vestido. Iriam de mãos dadas pelas ruas, ainda que desviando dos buracos da calçada, porque essa cidade... Iriam de mãos dadas para a igreja, como namorados, ainda que velhos. Iriam de mãos dadas, ainda que de máscaras, por conta da pandemia, que não acabava. Iriam de mãos dadas como proposto pelo poeta como remédio para tempos obscuros.

Orou e esperou. Muito, aliás.

Deus, por mais anjos secretários que tenha, organizada uma agenda para acudir tanta gente em toda hora e lugar, demorava. Jacob trabalharia 7 anos e depois mais 7, por Raquel. Deus, contudo, não lhe antecipava prazos, como fizera Labão. Silenciava um possível acordo. Que mais a fazer, senão esperar a bênção? Orava, sem tanta pressa e com esperança, porque Deus tudo pode, porque pressa mesmo é a que tinha na preparação do almoço, para que jamais se atrasasse e ameaçasse a continuidade do rentável negócio. Deus tem o tempo da eternidade, deve ter lá suas contas, em matemática de dias e anos que nos escapam.

Houve terremotos e outras tantas catástrofes. Houve guerras e anúncios de guerras. Houve inflação. O gás e o preço dos alimentos pela hora da morte e a obrigação de manter o preço justo para os irmãos fiéis no consumo diário.

Houve um golpe contra Dilma. Houve um presidente eleito por mentiras e danações.

E então, quando o mundo lhe parecia girar de ponta cabeça, Deus, ainda mais cheio de demandas, sem anúncio e aviso, quando ela se distraía entre panelas, alho e cebola, enviou-lhe num dia de sol tenebroso aquele senhor de nome Adamastor.

Era ele o varão que tanto esperara, com todas as qualificações solicitadas em milhares de preces e isso reconheceu quando levantou os olhos do prato de salada, ajeitando o avental e a touca. Talvez Deus, cansado de obrigações mais difíceis, como inspirar uma revolução popular, suspirando nos ouvidos da gente atônita sua condição de sujeitos da história, orientando para algo elementar como consciência de classe, tenha dela se compadecido em sua solidão de mulher da classe trabalhadora.

Ela pensa que serão felizes para sempre, mas Deus já tem outros aflitos a acudir e eu, narradora muito parcialmente consciente, não sei não.