CORAÇÃO ATROPELADO

Que assunto mais bizarro... um coração atropelado! Podemos pensar em qualquer coisa, um ser humano, velho ou moço, fêmea ou macho, qualquer tipo de animal... mas um coração? Como pode ser atropelado, se ele não sai de dentro do peito?

Mas vou contar minha história e no final vocês podem me dar, ou não, a razão.

Fui um adolescente como qualquer outro da minha idade. Sonhava encontrar a mulher dos meus sonhos, casar com ela e ser feliz para sempre.

Meus olhos sempre estavam a investigar todas as moças ao meu redor, apesar de certo grau de timidez que eu possuía. Isso impedia o meu avanço, de procurar fazer amizade com uma desconhecida ou mesmo conhecida.

Resolvi um dia pegar um atalho para ir à minha casa a pé. Era a chance de conhecer outra opção de chegar na minha residência, e ao mesmo tempo alimentar minha curiosidade de ir em busca de coisas novas.

Ao passar pelo centro daquela rua fiquei admirado. Observei, postado na abertura de uma janela o par de olhos mais bonitos que eu já vi. Emoldurava o rosto de uma jovem que olhava para o horizonte como se estivesse imersa em um sonho. Fiquei tentado a parar e melhor admirar aquela visão beatífica. Mas minha timidez não permitiu. Ela podia notar que eu tinha parado para lhe observar. Eu ficaria na posição de observado e não de observador. Eu devia continuar minha caminhada, devagarinho, olhando de soslaio.

Este passou a ser o meu caminho habitual e sempre eu pensava em encontra-la postada em sua janela, e quase sempre tinha êxito. Em um desses dias, o olhar dela encontrou o meu. Meu coração recebeu uma espécie de descarga. Passei a acreditar que aquele Cupido brincalhão da mitologia, na verdade existia e ele acabava de me acertar uma flechada. Acredito que a moça percebeu meu vacilo, meu andar desajeitado, como se eu tivesse andando numa passarela com milhares de fotógrafos estourando os seus flashes nos meus olhos. Desenhou um ar de riso em seus lábios e ao invés de eu ficar ressentido, fiquei cada vez mais encantado.

Desde este dia em diante, minha passagem pela rua deixou de ser indiferente. Sempre ela estava em sua janela, agora como uma sentinela pronta para avaliar o meu desempenho na “passarela”. Eu não precisava me enfeitar, pois o meu rosto quente, ruborizado, já fazia esse trabalho. Felizmente ela não conseguia perceber o trote desembestado do meu coração dentro do peito, como se quisesse saltar e se agasalhar em seu colo. Cada vez mais eu tinha a sensação romântica de que havia encontrado a mulher dos meus sonhos, que era com aquela moça que eu iria casar. Agora, ela tinha que saber dos meus intentos. Eu tinha que me esforçar, de sustentar o meu olhar com o dela e devolver o sorriso que ela sempre fazia em minha direção.

Foi assim que começou o nosso namoro. Sem nenhum dos dois dizer qualquer palavra, trocando olhares fugidios e sorrisos marotos. Mas o meu coração devia estar sintonizado com o dela, pois eu conseguia perceber em alguns momentos o rubor tomando conta da sua face. Era como se meu pensamento de a abraçar e beijar tivesse se manifestado em sua mente e ela sentisse telepaticamente as minhas carícias.

O meu amor crescia desta maneira. Suas raízes se espalhavam por todo meu corpo, minha mente, meus pensamentos. Eu não conseguia ficar nem mais um momento sem pensar nela. Todo meu futuro, minhas metas, ficavam comprometidas somente com o dia seguinte, de eu passar novamente por aquela rua e interagir com o rosto de minha amada.

Nem á noite eu ficava sozinho, pois bastava Morfeu chegar perto de mim com sua dose de sono, para ela entrar em meus sonhos e soletrar todas as técnicas do Kama-Sutra que nós nunca tínhamos lido ou, acredito, imaginarmos. Tinha vezes que eu despertava e fazia questão de voltar a dormir e entrar novamente no sonho que eu não conseguia alcançar na realidade.

Mas o meu coração começou a se tornar exigente, não queria permanecer para sempre caminhando por aquela rua. Queria alcançar a meta que sempre traçara, de encontrar a mulher dos sonhos, namorar e casar com ela, viver para sempre num ninho de amor.

Comecei a fazer planos para ir ao encontro deste meu amor encantado. Eu intuía, tinha quase certeza que ela sentia o mesmo por mim e que estava esperando apenas eu ir até ela. A linguagem dos nossos olhares era inconfundível. Ela esperava por mim e eu esperava a coragem. Mas tudo dependia de mim.

Depois de muito treinar a forma de chegar e me aproximar e me confessar, e lhe pedir o coração em troca do meu, e da promessa de seguirmos juntos para sempre na jornada na vida, um dia aconteceu.

Cheguei na sua casa determinado e pedi à sua mãe, quando esta abriu a porta, que desejava falar com sua filha. Ela fez um ar de surpresa e perguntou para dentro que tinha um rapaz querendo falar, se era possível. Uma voz, para mim maravilhosa, assentiu, e disse que aguardasse só um instantinho que já estava chegando. Meu coração sambava enlouquecido dentro do meu peito, como se fosse ele o protagonista da apresentação... mas talvez fosse mesmo, e hoje acredito que era mesmo!

A cortina da sala onde eu me encontrava com sua mãe, deu passagem a uma cadeira de rodas, dirigida por aquela figura amada que era dona do meu coração.

Meu coração ficou abobalhado, vendo o sorriso da amada, agora com sua voz aveludada, se apresentando e procurando saber o motivo da vinda. Por outro lado, a minha mente estava fixa na cadeira de rodas, na zombaria dos amigos ao saber que eu estava namorando uma deficiente, uma cadeirante, que não podia ir a praia com eles, não podia fazer caminhadas pelas trilhas, pedalar de bicicletas, se abraçar e beijar sem se agachar... e o sexo? Como seria?

Enquanto o coração sorria para a rainha da sua vida, a mente, ranzinza, tomava a inciativa e dizia para a jovem que tinha interesse em saber o seu nome, pois sempre a notara na janela e ficara curioso. Não permitiu que o coração se expressasse. Até queria fazê-lo parar de bater.

Resolvi sair logo daquela casa, com medo que algum dos meus amigos tivessem me visto entrando.

Fui embora para minha casa e nunca mais passei a andar por aquela rua. Mas percebi que meu coração não mais batia... claro, batia para jorrar o sangue, mas parou de bater para jorrar a vida. Meus sonhos murcharam... meus olhos perderam o brilho... meu riso deixou o ninho... meus amigos? O medo que eu tinha deles rirem de mim, da minha namorada, se transformou num olhar de estranheza, como se no lugar do amigo estivessem vendo um zumbi.

Minha mente começou a perceber essa nova realidade e agora fazia um novo diagnóstico. Viu que fora excessivamente severa com meu coração, ou melhor, fora covarde em não ter deixado o coração ter se expressado e manifestado todo sentimento de amor que havia armazenado dentro de si. Sentiu-se arrependido e decidiu que iria consertar tudo. Voltaria aquela casa e diria toda a verdade. A covardia que sentiu ao ver aquela cadeira de rodas e não deixou que seu coração se expressasse. A mente também tinha certeza que seu coração e o coração da amada sintonizavam plenamente e tudo seria perdoado e eles viveriam felizes para sempre.

Voltou aquela casa com plena disposição de tudo corrigir, de tudo confessar, mas ao chegar encontrou-a fechada. Os vizinhos não sabiam para onde as duas pessoas que moravam ali se mudaram. Sabiam dizer apenas que foram embora com grande ar de tristeza, e até a mocinha, que apesar de sua cadeira de rodas era alegre e sonhadora, partira com lágrimas nos olhos.

Eu fiquei paralisado. Minha mente não sabia o que fazer. Meu coração enregelou, trincado em mil pedaços como se a qualquer momento fosse se partir.

Eis aqui a minha história e porque eu digo que meu coração foi atropelado. Atropelado por uma cadeira de rodas!

E você, caro leitor, pode pensar o contrário, mas a minha mente racional, preconceituosa, que jamais aprendera a sinalização do amor, não poderia dirigir o meu corpo, pois agora eu vegeto na multidão com um coração paraplégico, muito mais deficiente do que aquele coração que se locomove numa cadeira de rodas.