Cebolas & Café
As ruas daquela cidade já não aspiravam significado algum. Enquanto caminhava, o olhar atento às pedras do caminho sugeria duplo sentido. Apesar do frio que sempre fazia nessa época, já final de julho, sequer fechou o zíper da jaqueta até o peito. O olhar de quem está imbuído em pensamentos não carecia dar atenção aos 12 graus centígrados. Sempre quis uma mudança, fazia parte do seu instinto, mas a cidade não colaborava muito com essa ou outra ideia de gerar inquietude nas pessoas: “quanto mais calmo, melhor”.
Uma guinada na vida era tudo o que precisava. Seria uma excelente forma de deixar a zona de conforto na qual estava e tentar extinguir os pensamentos que insistiam em passear do córtex até o sistema límbico sem nenhuma cerimônia. Mas nem tudo é tão simples, pois a vida é cheia de intempéries e o que parece simples para uns, é extremamente difícil, doloroso e complexo para outros, até mesmo descascar uma cebola – que no seu caso sempre fazia de óculos escuros, achando que assim os olhos não arderiam.
O mais caprichoso disso tudo é que sempre tem alguém no meio da história. Porque não pensar sozinho, divagar, filosofar sobre as questões existenciais sem que uma outra pessoa faça parte desse tumulto? Não né!? Os loucos, profetas, poetas têm razão: é preciso de muito autoconhecimento para se entregar de peito aberto mesmo ao sofrimento (já dizia Vinicius de Moraes “Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém”). E nesse instante pensava nela, na cor dos cabelos, na pele, no cheiro... mas também no ímpeto que ela tinha, na desordem das suas convicções e no gosto duvidoso por coentro ao temperar os pratos. Idiossincrasias. A amava ainda assim, da felicidade por andar na chuva até o carreteiro feito sem dessalgar o charque. Só não esperava o fim do relacionamento, sem culpados, sem diálogos, sem respostas, sem nada. Ele pensava: “O que eu fiz de errado?”, clássica, “Porque comigo?”, sentindo pena de si mesmo, “Será que ela quer novas aventuras?”, baixa autoestima. Mas as dúvidas, essas, não estavam ali tomando sua energia por se sentir culpado, afinal foi um consenso. As dúvidas eram extremamente significativas e giravam de um lado para outro do cérebro pois ele precisava de respostas. Respostas para si próprio, para seu comportamento, para o seu modo de pensar, para seu modo de agir. “Porque sou assim?” “Porque não encontro o que busco?” “Mas o que estou buscando?”
Caminhou em direção ao café mais próximo e sentou-se de frente para a janela que dava para a rua observando as pessoas lá fora protegendo-se do frio, casais com seus corpos colados um no outro, o vento soprando e espalhando as folhas caídas das árvores, um papel amassado que passou diante da janela lembrou alguns momentos da Europa: dos cafés franceses, as ruas de Mont Martre, Moulin Rouge, Rue Lepic, Le Consulat. Tudo lembrava bons momentos e quisera não ter tirado fotos, pois cada vez que tornava a vê-las, mais ainda os questionamentos surgiam. Mas porque via então? “Je ne sais pas.” de sol, talvez para sem
Quase não se percebe o quanto a exposição de seu íntimo, e a entrega de seus valores, qualidades e defeitos fundem-se com todos os outros da pessoa com quem convive. Conhecer bem a metade oposta do casal, só não é melhor, e pior ao mesmo tempo, do que conhecer a si mesmo. Ideias contraditórias. Cada um tem seu tempo, seu jeito, seus gostos e seus maus gostos também. O mais importante é o quanto esse mundaréu de composições genéticas misturadas com as experiências de vida decretam a união de pessoas completamente diferentes. Sim, todas as pessoas são completamente diferentes umas das outras, por mais que ambos digam que gostam de Beatles, strogonoff, caminhar na praia e passar férias na serra. Gostar de viajar, tomar café e conhecer lugares e gastronomias diferentes. Ler livros, estudar idiomas e adorar terapias alternativas... o que isso tudo indica que são perfeitos um para o outro? O que garante que essas medíocres coincidências seguram um relacionamento onde ambos, internamente, ainda não “saíram de si mesmos”. Ou o correto seria: “aprofundaram-se em si mesmos?”
O fato de não se conhecerem internamente não colocou o tempo ao lado deles e as perguntas continuaram sem respostas. “O que houve de errado?” “O que mudou?”
“Acho que não entendi direito o que ela queria dizer quando estava precisando de uma barra de chocolate, quando se lamentava me acusando de não ter sentimentos ou quando não queria sexo. Pensei: não pode ser que tudo isso faça parte do pacote TPM. Claro que não, ela adorava sexo e isso não era um problema, nem a TPM. ‘Risca essa parte’. Alguns anos de terapia me ajudaram a me conhecer, a segurança que eu tenho hoje é muito maior do que há 10 anos atrás e isso de certa forma me faz pensar o porquê ela me deixou tão inseguro. Quanto mais sabemos de nós mesmos, mais direcionamos os nossos objetivos. E acho que foi isso que acabei fazendo. Por mais que eu tivesse me dedicado ao relacionamento e trabalho, ambos fizemos isso, e não tem certo e errado na história. Chegou um momento em que nenhum de nós dois tinha mais identidade e sonhos, pois dependíamos um do outro até para sonhar, não acho isso certo. Não pode estar certo. Não é certo! Ponto.”
“Quando pensamos em morar em Portugal era por conta do sonho dela, mas de certa forma era o meu também. A grana não é assim fácil de conseguir, mas a vontade fez com que pudesse juntar o dinheiro e acompanhá-la. Quanto a isso, ok! Eu trabalharia de lá, afinal o trabalho proporcionava essa facilidade. Marketing possibilita o contato desde que os clientes estejam de acordo e entendam essa nova era digital. Mas a quanto tempo estávamos juntos? 2 anos? 3 anos? 5? Não importa...a (con)vivência às vezes confunde a linha do tempo e o que mais me importa agora é saber qual caminho traçar e retomar atividades que deixei pra trás.”
Ele terminou seu café e pensou em deixar uma gorjeta, “mas que estranho”, pensou, no Brasil é muito difícil fazer isso. Deixou-a assim mesmo, pois as “coisas não mudam se não mudarmos as coisas”, refletiu.
Resolveu fechar a jaqueta, pois aquecido pelo café não convinha “pegar um ar” e “ficar com a boca torta” – choque térmico. A mudança de temperatura precisaria ser muito brusca para que isso acontecesse, mas lembrou da recomendação dada por sua mãe certa vez e preferiu não arriscar.
Despediu-se do caixa que o atendeu, passou a roleta onde deixou o cartão de pagamento e saiu pela porta encolhendo os ombros ao sentir o vento gelado no rosto.
Tinha alguns assuntos pra resolver, mas continuou pensando sobre as diferenças dos seres humanos e, em especial a deles, do casal já não mais casal. Não é só porque são diferentes que precisam achar um ponto em comum, “sim... é exatamente isso!!”. É preciso achar um ponto em comum sem que se desfaçam de seus gostos particulares. Os casais precisam ter seus espaços de individualidade para poder partilhar com outras pessoas, lugares, experiências e que com certeza irão nutri-los com novos assuntos, novas perspectivas, novas informações. Isso é saudável, é necessário. “Ahh tá! Quem não sabe disso?”, ele mesmo já podou sua própria divagação filosófica sobre relacionamentos, pois já tinha lido várias vezes e a terapia já o tinha ajudado com essas questões.
Mas ele falava de si mesmo e dela, como se arrumasse uma desculpa e o motivo mais óbvio da face da terra para voltarem a se ver e, quem sabe, identificarem juntos o que causou o descuido de um para com o outro.
-------------------------------- // -------------------------------
Ficou mais tempo no banho do que o habitual. Não só porque queria algo quente que a confortasse, mas também por causa de seus cabelos emaranhados por dias sem lavar. Nunca mais, jurou, ficaria sem lavar os cabelos todos os dias, fizesse sol ou chuva como hoje. Seus cabelos castanhos não tinham tomado a decisão se seriam lisos ou crespos e no meio deste caminho se embaraçavam tanto que davam nós difíceis de resolver. Estavam parecendo com a sua dona, no meio dessa crise existencial.
“Tinha tomado banho na esperança de me sentir melhor, até ter que encher de creme meus cabelos para desembaraçar. Maldita lembrança! Por que essas coisas tomam rumo sem pedir licença? Quem manda nesta cabeça que não eu? As memórias, sempre as memórias. Tinha lido num livro em tempos passados que após certa idade somos reféns das ditas cujas, nos tornando seres de hábitos aprendidos e repetidos todos os dias, liberdade nada. A não ser que a gente se esforce em mudar. Eis a questão! Mudar...mudar para quê, para quem? Agora só pensava nos cabelos cheios de creme que estavam uma meleca para pentear. E a imagem dele na minha cabeça.”
“Ele tinha paciência, carinho, ou talvez fosse um cabelereiro frustrado. Era assim que eu gostava de implicar com ele, que era um cabelereiro frustrado. Bobagens minhas, ao invés de falar em alto e bom tom o quanto eu o amava pentear meus cabelos, arrumar mecha por mecha sem perder o foco. Ao invés de agradecer, e admitir o prazer velado que eu sentia a cada passada do pente. Mas não, tinha que sair com uma piadinha tosca, como se a sua forma de me dar amor fosse só por causa de uma frustração pessoal dele. Nada a ver! quantas bobagens dizemos uns aos outros no lugar de um: ‘obrigada, te amo também.’ O que em mim me impediu de falar abertamente o que sentia? “
“Em Portugal ele ria das minhas gracinhas e depois saíamos para um dos nossos habituais passeios. Qualquer lugar longe de casa se parece com o melhor lugar do mundo. Ilusões de viajantes. Mas caímos nessa. Museus, cafés, castelos, jardins incríveis de flores só vistas em telas nas paredes, vinícolas, até padaria e supermercado para mim já era o passeio oficial do dia. Uma bolacha diferente, um xampu que nunca vi, tudo me brilhava os olhos. E os dele também.”
“E imagino que assim, meus ‘eu te amo’ ficavam em segundo plano para ambos, esquecidos num corredor do mercado, ou numa taça de vinho do Porto. Mas estavam aqui dentro de mim. E justamente no meio dos meus fios de cabelo, eu tinha que lembrar, sentir, doer de dor.”
No banho percebeu que estava com cuidado para não deixar seus cabelinhos presos no sabonete. Também limpou melhor o aparelho de barba que usava para se depilar sem deixar restos pulverizando o box do chuveiro. De repente se lembrou que estava sozinha... para quem estava tendo esses cuidados? Coisas que o irritavam, não fazia mais sentido evitar. Até mesmo as calcinhas rolando dias no banheiro, agora podiam ficar.
Ficou pensando que os detalhes acabam com uma relação, mas podem também construir. Tinha lido em algum lugar que "O amor mora nos detalhes". E achou verdadeiro, mas agora achava que o fim também morava. Pensou num dia que passou muito mal numa viagem em visita à uma Cave, vinhos demais, comida de menos, e o estômago junto com o fígado fizeram greve e manifestação em golfadas nada elegantes. E ele segurou os seus cabelos para serem poupados deste momento. Saíram ilesos, graças a gentileza dele, sem nojo, sem crítica, só um ato de amor e companheirismo raro.
No entanto, delicadezas mais banais, ele não se dava ao trabalho. Por preguiça ou precaução, “seria medo de se entregar? Ou chatice mesmo?”
Dia corrido na faculdade, reunião tensa no departamento, vontade louca de chorar. Não queria que ele resolvesse sua vida, nem que fosse defendê-la como num bar. Só queria mesmo o aconchego de um abraço silencioso. E isso ele não soube dar.
Nunca entendeu por que não podia se mostrar vulnerável na frente dele. Que ideia errada de parceria ele havia construído para dar risadas de sua dor e dizer "Não te faz" (bordão gaúcho pra insinuar que uma pessoa está exagerando ou se fazendo de sonsa). Aquele passeio na praia, num grande barco para turista ver, tinha sido um pedaço deste fim. Música e festa baiana rolando solta como se estivessem num cruzeiro, mas na verdade era só a beira-mar poluída de uma capital. Bebidas "free" e uma abelha resolveu pousar no seu dedo. Seria ela tão doce quanto mel? Assim ela se achava, às vezes. E ali detestou se sentir doce, em todos os sentidos. O ferrão doeu, mas doeu de gritar assustando os outros tripulantes. Ele somente se virou para ela e disse a tal fatídica frase, como se o grito fosse uma reação ensaiada para um teatro banal de quinta categoria. E ele não havia gostado da peça.
Na dúvida, prefira o silêncio. Mas ele preferiu dizer que não ia fazer nada de acolhedor. “O que havia pensado?” Isso ela queria saber, até como professora universitária que era, tinha essas curiosidades quase acadêmicas. O que faz alguém agir com desdém diante da dor de quem se ama? Um dia ela iria perguntar, jurou, mas este dia se foi apagado por tantas outras lembranças. E a resposta não veio.
Com os cabelos já secos e arrumada, não tão arrumada, já estava pronta para sumir dentro de uma xícara de café. Ficou pensando em qual café não ir, não queria nenhum lugar que trouxesse mais lembranças. Dizem que as recordações que gravamos são as que tiveram mais carga afetiva, sejam boas ou ruins, elas fixam, cravam.”
Aquele ano em Coimbra tinha sido forte. Viajaram por diversos países e tinham sempre algo incrível para fazer nos finais de tarde após terminar as horas de pesquisa do doutorado. Ela já era professora universitária na época. Ficaram amigos, riam juntos, bebiam nos bares da cidade, achavam lugares diferentes para se sentirem “cult”. E riam de si mesmos por pensarem assim.
Algum tempo se passou e ela foi convidada a dar continuidade à suas pesquisas sob a tutela de uma grande amiga de seu antigo orientador. E veio a sugestão de fazer uma parte dos estudos em Portugal, Coimbra mais especificamente. Convite inegável, mesmo com um relacionamento ainda por construir, querendo sair do jeito de amizade colorida para algo mais profundo. A decisão seria "ou tudo ou nada" ou melhor, "ou vai ou racha". No caso, ‘ou vai’ ele junto na aventura que era dela, ‘ou racha’ a relação e ficaria a curiosidade eterna se teriam dado certo. Não sabendo ainda o que o "certo" significava, mas deixamos assim mesmo.
“Finalmente consegui sair do apartamento. Na rua senti a primeira brisa gelada, com cheiro de chuva. Ficou claro o contraste que existia entre o odor do meu apartamento sujo e o ar puro. Considerando que moro numa Capital, e o ar nunca é puro, mostra o quanto fedia meu ‘lar’.”
“LAR, essa palavra me perseguiu anos. Depois de graduada em Arquitetura, fiquei com uma fixação em querer ter o tal de ‘lar'. Cinco anos de faculdade, vários projetos, me fizeram imaginar como seria ‘o meu’. Na ingenuidade daquela idade, pensei em eu mesma construir uma casa que fosse reconhecida como minha forma de expressão. Esqueci de um pequeno detalhe, teria que ter muito dinheiro e para isso... muitos clientes. Mas como ter clientes numa cidade que parece já ter todas as ruas prontas, construídas, cheias e completas. E eu não queria sair daqui, da minha eterna zona de conforto.”
“Até que cansada de trabalhar para outros grandes profissionais, decidi fazer mestrado e seguir uma carreira universitária. Quem sabe ensinar me desse outro olhar para a Arquitetura e teria mais tempo para me dedicar a temas ainda não explorados por mim. Aquelas ilusões de quem está numa bolha e acha que a do vizinho é melhor. Que teremos mais tempo, mais liberdade, mais segurança, mais sei lá o quê. No fundo, no fundo, só trocamos de bolhas. Todas são tão reais quanto o apego que temos por elas e tão irreais como uma bolha de sabão. Só furar que se desfaz. A questão é saber em qual delas queremos viver num dado momento. E saber a hora certa de trocar de lugar. Mas como saber?”
-------------------------------- // -------------------------------
Pensando em retomar suas tarefas, seus estudos e “arregaçar as mangas” no trabalho, ele optou por continuar na cidade e melhorar o apartamento para dar um pouco mais da sua cara para a própria casa. Ela fazia arquitetura, mas ele gostava também de decoração e de manter a casa em ordem. E precisava colocar “a casa em ordem” já que a confusão mental lhe havia acompanhado desde a chegada ao Brasil. E quando pensava nisso, lembrava também da falta de organização dela, com seus métodos anticonvencionais de guardar as roupas e manter utensílios limpos, ou mesmo objetos no seu devido lugar. “Será que isso foi o que me incomodou?”, pensou. Mas isso era fácil de resolver: lembrou de um casal que conhecia há bastante tempo e que após alguns anos de casamento, iniciaram-se alguns conflitos. Ela deixava sempre as roupas atiradas no banheiro sem colocar no cesto de roupa suja, ou mesmo levar para a máquina de lavar. Ele por sua vez, ao colocar os sapatos para sair para trabalhar, o fazia sempre na sala, deixando os chinelos à mostra sem devolvê-los para ao lugar de origem (ou pelo menos onde ela esperava que fosse). Isso incomodava ambos e decidiram conversar, debater e chegar num acordo em comum. Feito! Decidiram que fariam o trabalho um do outro. Caso encerrado...simples, rápido, efetivo. É claro que, a partir da “audiência” ambos sempre se lembram e procuram não repetir a fórmula mágica da discórdia. Mas caso ela aconteça, já resolvem o caso sem levar para o tribunal novamente.
Voltando aos pensamentos, não lembrava de ter sido deselegante, grosso, ter faltado com carinho para com ela. No seu entendimento, ele era atencioso e a respeitava. No entanto esse tipo de autorreflexão nem sempre condiz com a verdade pois o ser humano dificilmente enxerga seus problemas... e sua condição mental atual, pois se o fizesse resolveria todos eles, ou pelo menos estaria sempre em paz com a sua consciência. E, além disso, essa batalha interna e sentimental já estaria resolvida e finalizada. Fosse como fosse.
Quando refletimos sobre nossa vida há dez anos, lembramos de situações em que algumas decisões certamente seriam diferentes, uma vez que na atualidade temos mais experiência de vida, estamos mais “calejados” e visualizamos melhor essas mesmas situações. Mas afinal essa é a vida a ser vivida, como disse o mestre Yoda em um dos filmes da saga Star Wars: “Melhor professor o fracasso é”. Sendo assim, estamos sempre vencendo e fracassando ao mesmo tempo. Depende do ponto de vista.
“Vou arrumar as coisas do meu jeito, como eu gosto, e não terei mais aquele stress.”
“Ela também, vai poder fazer a sua bagunça, ter seus momentos e buscar alguém que a acompanhe em seus dilemas. ‘Mas eu quero isso?’ ‘Seus dilemas?’ ‘Que dilemas, do que é que eu estou falando?’ Se eu adorava as nossas conversas filosóficas sobre a existência humana ou sobre conflitos pessoais. Acompanhados de uma garrafa de vinho (ou duas), passavam a noite inteira falando sobre política, dogmas religiosos, espiritualidade, história, arte, etc. Todo o tipo de assunto cabia na discussão e culminava nos seus pontos de vista, quanto mais o tempo passava, mais interessante ficava a conversa e mais difícil era ir para a cama.”
Bons momentos, maus hábitos, falta de reconhecimento, pouca atenção, registros fotográficos de capa de revista: “casal do ano”. “A felicidade é como um momento, se escolhe estar nele ou não.” “De onde tirei isso?” “Deixa pra lá, acho que li em algum lugar.” De qualquer maneira, começava a fazer sentido. Lembrou-se de que certa vez, dolorido por causa do final de um romance adolescente, jurou nunca mais chorar por ninguém. Isso criaria uma “casca”? Uma armadura tão resistente que não seria mais possível penetrar? Pode uma relação que nem foi tão construtiva assim ter causado um trauma? Ou foi construtiva? Na verdade, acho que sempre são. Relacionamentos sempre nos ensinam alguma coisa, basta prestar atenção. Mas e ele? Não estaria disposto a se desvencilhar desse tipo de redoma?
Algo estalou em seu subconsciente. Deveria pensar mais sobre isso. E não só pensar, mas resolver.
Na caminhada de volta pra casa após o café, ficou divagando sobre as bolhas e seus apegos, nas formas que não expunha suas vulnerabilidades e para arrematar o dia, se deixou vagar pelas suas próprias frustrações. O que não a deixava se sentir feliz e reclamar de ser professora, se era isso que ela queria e pelo qual estudou tanto?
Entrou em casa e tentou ler. Mas seus pensamentos continuavam em fila requisitando atenção. Numa espécie de tortura calculada. E foram surgindo lembranças deles.
Quando chegava em casa chateada e desejava um colo, banho, uma taça de vinho, sexo quente depois do jantar, acabava desistindo de tudo ao ver o jeito dele. Aquele jeito de quem está cansado e sem demonstrar muita vontade para nada. Optava pelo quente do banho e o vinho mesmo e se jogava no sofá. Ela queria mais. Mas veio uma dúvida: “será que soube pedir?” “Soube puxar ele pra perto do seu corpo, beijar o seu pescoço e dizer que estava com saudades?” “Soube pedir mansinha que queria colo e carinho após um dia chato?” “Soube dizer ‘eu te amo’ quando ele arrumava com paciência os seus cachos bagunçados?” Talvez não, só na sua imaginação.
E agora, tarde demais. Uma lágrima escorreu em seu rosto, caindo numa folha de livro que tentava inutilmente ler, manchando algumas letras. Parecia um borrão de aquarela. Lembrou-se que na faculdade tinha feito uma disciplina extracurricular de um professor de arquitetura que também era aquarelista, além de colecionador de histórias em quadrinhos de todos os lugares do mundo. A turma saía pelas ruas da cidade fazendo algo que ela considerava incrível, e que em francês se chama "Plen Air". Ficou apaixonada pela técnica e pelas experiências ao ar livre. Nas viagens à Europa ficava observando artistas locais e se imaginava ali, quieta, silenciosa, sozinha entre seus pincéis. No entanto tinha escolhido ser professora e esquecido de seus desejos de artista. “Por que ela não poderia ser as duas?” “O que a impedia de retomar seu sonho e se deliciar nas tintas?” Ninguém, só ela mesma e falta de força em assumir sua escolha em se sentir feliz novamente.
E foi assim que ela decidiu curar a sua dor. Já que ele não estava mais ali para ela consertar os estragos de uma comunicação deficitária, daquelas que se fala em pensamento e se acredita que o outro tem bola de cristal ou formado nas artes do Taro Cigano. Teria que recomeçar sozinha, resolver suas pendências consigo mesma e tocar a vida sem ele. Mesmo que não fosse bem isso que ela queria, agora não sabia como fazer. Só sabia que sentia falta de suas risadas, seu sorriso tímido quando se olhavam por muito tempo nos olhos, seus lábios, o cheiro de sua pele que mesmo suado ela adorava. Dizia que gostava do seu cheiro natural, e se não tivesse gostado desde o início, ainda quando achavam ser apenas amigos, teria recusado qualquer investida. Cheiro e gosto, isso é indiscutível. Não tem papo filosófico que resolva. E para piorar, ela sentia falta disso também.
No dia seguinte foi revirar seus antigos materiais das aulas e achou algumas coisas em bom estado e algumas tintas secas, teria que comprar novas. Saiu com o que tinha em mãos e compraria mais algumas numa antiga lojinha que ficava aberta aos domingos próxima à feira de artesanato e orgânicos, tradicional passeio dos moradores intelectuais e artistas da cidade.
Foi sentindo que tinha encontrado seu rumo de volta, na verdade, a si mesma. Sentou-se perto dos feirantes e começou a arrumar seu material. Livre, quieta, plena, descabelada ao vento, aquarela no papel. Foi criando a paisagem ao mesmo tempo que se recriava também. Renascia. Se via novamente feliz. Sentiu alguém chegar perto e tocar de leve nos seus cabelos, quase gritou, mas sentiu um cheiro familiar. E aquela voz que lhe fez uma pergunta estranha, mas que ela não demorou a responder.
-------------------------------- // -------------------------------
Apesar do tempo que ficaram sem se ver, ele não deixou de pensar nela e acredita que ela também não. Afinal de contas um relacionamento intenso, levado por uma sucessão de momentos significativos e prazerosos, registros físicos e mentais de situações únicas e bem vividas, não é bem assim para esquecer. “Pensando bem não são assim todos os relacionamentos?” O fato de estarem na Europa, no Brasil, ou em uma pequena cidade do interior não deixam de registrar na memória de nós, seres humanos, momentos peculiares e extremamente marcantes. Refletiu sobre isso e sobre o fato de que, até mesmo momentos de discussões, debates sobre quem lava a louça, quem vai na feira, quem deixou a toalha molhada na cama, servem para lembrar de uma vida social que é característica do ser humano e necessária para as relações. Além de crescimento pessoal. E, falando em feira...lembrou-se que precisava comprar alguns itens para complementar o almoço.
Durante o caminho, foi repassando a lista de compras no seu celular: frutas (maçã, banana, mamão – sempre comprava as mesmas), verduras (alface crespa, rúcula, couve – ia tentar uma receita nova), produtos coloniais (salame, queijo – uns dois ou 3 tipos para petiscar com uma taça de vinho), legumes (batata, cenoura, cebola – que os botânicos classificam como “caule”, mas preferiu não alongar a lista com mais um subtítulo). “Cebola”, o último item da lista, lembrou-lhe pensamentos recentes, situações do passado, cascas, cortes, lágrimas. Aparentemente entendeu o significado da existência do ser humano na comparação com o “the last one” de sua lista. A vida tem dessas coisas, já dizia Ritchie. É preciso remover as cascas, fazer alguns cortes, e deixar que as lágrimas caiam se precisar.
Resolveu que a partir desse dia não usaria mais óculos escuros para cortá-la.
Chegou na feira, zerou a lista de compras e continuou andando e parando em alguns estandes para bisbilhotar a diversidade de doces, pastéis, temperos, pães, peças de decoração, quadros, arte feita com tinta, ferro, madeira. Era uma feira bem eclética pensou ele e sorriu por estar vendo em cada olhar, e simpatia dos feirantes, a tranquilidade de estar fazendo aquilo que gosta e que sabe, ou talvez somente o que precise. De qualquer forma, sempre com um sorriso no rosto e uma atenção calorosa direcionada ao bom consumidor, claro.
Já mais para o final da feira, reconheceu aqueles cabelos longos e um tanto bagunçados, mas que ele adorava. Sentada, de pernas cruzadas em frente a um cavalete, pintando em uma tela de 40 x 50cm lá estava ela. Engoliu a saliva e chegou mais perto para se certificar. Ela, ao se virar para ver quem havia se aproximado até com certa intimidade, percebeu ele parado ao seu lado com algumas sacolas de produtos recém adquiridos.
Com uma das mãos estendidas e com a palma aberta segurando uma cebola, perguntou:
- Me ajuda a cortar?
Fim.