A carta

A carta estava pronta. Conseguia ver uma ou outra palavra da mensagem, enquanto iam sendo engolidas pelas dobras. Dobrava a folha meticulosamente: duas dobras para acomodá-la no envelope. O terço era medido com precisão e com pressão deslizava o dedo para reforçar o vinco.

Os movimentos eram lentos, mas decisivos. A velocidade parecia fazer parte do ritual. Queria gravar cada momento daquela operação.

Na mensagem uma sentença. Era como um último respirar fundo do artista na coxia antes de enfrentar as luzes da ribalta. Ou a respiração segurada do atirador enquanto ajusta a mira e aperta o gatilho. A sensação era de pavor – o medo do desconhecido provocava arrepios e fora o responsável por tanta postergação.

Ele sabia que uma vez endereçada não teria mais volta. Depois do salto no vazio, a ponta do precipício é passado e não existe arrependimento capaz de devolver ao momento anterior à sua decisão de saltar. Mas suas madrugadas em claro eram sua guarida. As noites mal dormidas davam retaguarda para o que ele mesmo julgava uma ato tresloucado. Ela ficaria finalmente sabendo daquilo que ele procurava esconder de si mesmo. Cartas na mesa. Jogando todas as suas fichas. Agora seria esperar pela próxima jogada.

A necessidade de respirar o mesmo ar estava sufocando. Platão e seu amor se despediriam naquela carta. Nela, ele finalmente revelava que estava perdidamente apaixonado e ela era o caminho da perdição.

Pedro e Raquel eram vizinhos de porta num condomínio de apartamentos. Ele começava a se abaixar para empurrar o envelope por debaixo da porta quando ouviu o barulho da maçaneta. Ela abriu a porta e fez de novo: inundou de alegria o lugar com aquele sorriso que iluminava suas noites em claro.

-Bom dia Pedro! O que você está fazendo aí? –Pedro pensou rápido e simulou um amarrar de cadarço.

-Eu ia bater na sua porta e pedir um pouco de açúcar para o café que vou fazer, quando percebi o cadarço desamarrado...

-Açúcar para o café? Venha! Entre! Acabei de passar um. (...) E... ok, o que é este envelope aí do lado? – Perguntou demonstrando uma curiosidade normal

Opa! Eu aceito. – disse Pedro enquanto se levantava. Raquel abria espaço e estendendo a mão mostrava o caminho da cozinha - Ah este envelope – Pedro procurou a fisionomia mais natural possível, mas por dentro se sentia uma criança quando é pega no flagra fazendo algo errado – é... é uma carta para minha avó – demorou mais tempo do que gostaria para inventar aquela estória de avó - Sabe que já tentamos fazer com que ela use o celular, mas ela é meio arredia às novas tecnologias e sente um prazer imenso nas cartas, então é um trabalho que não me dá trabalho.

-Que bonito: que neto queridão! Ah, deixa eu ver...

-São só bobeiras, trivialidades. Ela gosta de ler coisas do tipo “está tudo bem aqui”, falar do tempo, estas coisas – Pedro suava frio enquanto criava os argumentos.

Enquanto caminhava em direção à cozinha, Raquel, que vinha atrás sorrateiramente puxou o envelope e com o olhar travesso disse:

-A curiosidade está me matando... – Pedro não sabia se fazia tal qual a curiosidade: a possibilidade de saltar sobre Raquel e, numa briga corpo a corpo, recuperar a carta não estava descartada (não pude resistir ao "descartada" se é que você me entende). Mas no fim ele procurou outra tática, dizendo calmamente (pelo menos ele tentou) enquanto estendia a mão num pedido de devolução desinteressada;

-Tenho vergonha dos meus erros de português...

-Não se preocupe Pedro: nossa intimidade já passou desta fase – disse Raquel enquanto começava a abrir o envelope e puxar a carta.

Pedro sentiu um embrulho no estômago e pediu licença para uma ida rápida ao banheiro. Na verdade tinha vontade de demorar uma eternidade, pois tinha medo da recepção das palavras que declaravam seu amor rasgado pela Raquel.

Depois do tempo de umas três leituras da carta, Pedro ouviu um “toc, toc” na porta.

-Tudo bem aí? – a voz da Raquel parecia normal. Bom pelo menos ela não tinha saído correndo. Acionou a descarga e começou a abrir a porta. Tinha medo de encontrar outra Raquel. Já estava arrependido de tê-la deixado ler a carta – nada seria como antes. E se a frustração de um “não” fosse pior do que viver uma eterna esperança?

Pedro não conseguia olhar para Raquel.

-Talvez seja melhor eu ir para casa. Você pode me devolver a carta? – Raquel segurou o queixo de Pedro e fez ele encará-la: Olhos marejados e um sorriso terno numa boca trêmula foram as últimas coisas que Pedro viu na Terra. O beijo quente e abraço apertado de Raquel já faziam parte do paraíso.