JANELAS DA MEMÓRIA
JANELAS DA MEMÓRIA
Volto da minha caminhada matinal. Depois de um banho refrescante, vestindo um traje informal, sento-me à varanda do meu apartamento no sétimo andar.
Não demora Rodrigo ligará para saber as primeiras notícias do meu dia. É um filho preocupado e atento que me cerca de cuidados que até me parecem exagerados. Devo compreendê-lo, pois sei os desafios que enfrentou quando estive à beira da morte, consumido pela dor da perda de Rosalva. No longo período da minha depressão ele e seus dois irmãos não se pouparam na tarefa de salvar-me do profundo abatimento no qual estive imerso. Sou grato e me adapto a essa nova forma de vida que jamais me ocorreu experimentar. Assim vivo no admirável mundo novo de Rodrigo, um arquiteto, que constrói prédios dentro das melhores tendências modernistas. Cercado de tecnologia, com simples toques navego nos canais da televisão, ajusto a circulação do ar condicionado, a intensidade da iluminação e outras tantas maravilhas. Vivo numa torre de cristal. Janelões de vidro se abrem para o exterior, facilitando a entrada livre de ar e claridade, o que se controla com persianas e painéis que se abrem e fecham remotamente.
Do sétimo andar vejo à minha frente o horizonte largo e límpido. Lá em baixo o trânsito evolui, e mal ouço seu rumor. Do outro lado da rua prédios antigos de poucos andares, telhados coloniais, sacadas, janelas com peitoris largos, jardineiras floridas.
Daqui posso vislumbrar através de suas janelas abertas os movimentos dos moradores daqueles edifícios: um casal se senta à mesa para tomar o café da manhã; parecem felizes, sem pressa, conversam enquanto se servem do alimento. Quando terminam arranjam juntos a mesa. A mulher se debruça à janela observando quando ele sai para a rua, lá em baixo.
Uma jovem rega as suas jardineiras; no vai e vem de sua faina, ela parece ouvir música, pois faz volteios de dançarina diante das petúnias e dos gerânios pendentes.
O rapaz vigia pela janela o movimento da rua. Afasta-se e suponho que vai atender à porta. Quando aparece, acompanha-o a moça que se livra da mochila que carrega. Beijam-se ardentemente. Ele a toma nos braços. Desaparecem. Um bom tempo depois ela surge sozinha, arrepanhando o cabelo alvoroçado e refazendo a trança. Mais tarde cerram a janela. Vejo-os saindo do prédio. Levam suas mochilas. Devem ser estudantes. De mãos dadas seguem pela calçada. Felizes e saciados depois do amor matinal, seguem para onde os aguarda os deveres e obrigações de sua vida escolar.
O que me intriga são os gatos. Na nesga da janela entreaberta, por detrás da rede que a protege, um par de gatos, um todo preto, outro preto com malhas brancas, passam uma boa parte das manhãs. Não sei o que os atrai para permanecerem encantoados naquele espaço exíguo de não mais que três palmos. Nunca aquela janela teve aberto um espaço maior que aquele, tampouco jamais logrei ver por ali qualquer pessoa. Apenas os gatos. Chego a fantasiar que os dois animais vivem sozinhos!
Eu e Rodrigo já batemos o nosso papo de todas as manhãs. Dei a ele as notícias que pede, da minha saúde, dos meus interesses. Ele me conta rapidamente de um novo projeto de sua empresa de edificações. Tem muito trabalho pela frente. Ao despedir-se, como sempre indaga se me sinto bem, se preciso de alguma coisa, sempre pronto a satisfazer-me em desejos e necessidades. Agradeço; nada me falta. Conto que recebi cartas de Roberto e Rogério. Ele promete que as lerá quando vier ver-me no final da semana.
Até o horário do almoço entretenho-me com o computador. Com ele preencho minhas horas vazias. Procuro reatar os proveitos que antes encontrava em pesquisar, documentar assuntos da minha curiosidade e predileção, temas e resenhas a que me havia dedicado, enquanto Rosalva vivia. Sua morte lançou-me ao caos, à astenia, à angustia de uma depressão aterradora.
Minhas recordações levam-me distante. Somente minhas viagens ao passado confortam meus dias. No final da década de 40, graduado em História, dedicava-me com entusiasmo ao ensino da matéria. Um curso de Jornalismo me facilitava desfrutar um espaço numa gazeta diária, onde, com toques de humor e realismo, descrevia aos meus leitores as experiências, tropeços, surpresas e realizações de um viajante, situações que eu mesmo experimentara, andando mundo afora como mochileiro. Uma das minhas mais notórias aventuras eu transformara em uma resenha detalhando o Caminho de Santiago de Compostela. A influência de amigos encorajou-me leva-la ao prelo e surpreendeu-me ela ser aprovada para publicação.
Tendo passado por todos os passos necessários para efetiva-la: registro de direitos autorias, modelo para publicação, edição, contrato editorial, incontáveis revisões, diagramação e ficha catalográfica, vi-me às vésperas do evento da apresentação do livro “Santiago de Compostela, um Caminho de Fé” aos meus futuros leitores. Uma livraria concedeu-me espaço e horário determinados para uma tarde de autógrafos.
Presença de amigos e de alunos do meu curso de História, deu-me suporte para acolher os inúmeros leitores da minha coluna do Jornal, que vindo conhecer-me pessoalmente, além das manifestações de simpatia desejavam trocar ideias, pedir opiniões.
A tarde passou; quase no fim do horário do evento, surgiu a moça que, com passos rápidos, veio a meu encontro; colocou sobre a mesa o livro, espalmando-o; enquanto me fitava bem nos olhos, disse, sorrindo: Receei não chegar a tempo de conhece-lo; sou sua leitora assídua, e não gostaria de perder essa oportunidade. Tive um dia de muito trabalho e tenho aulas a assistir ainda hoje.
Seu olhar expressivo e seu sorriso tocaram-me profundamente; foi como se um sol rompesse o nevoeiro daquele fim de tarde um tanto fatigante. Coloquei minha mão sobre a dela, deixando-me envolver pelo encantamento. Ela empurrou delicadamente o livro em minha direção, eu o tomei, abrindo-o na primeira página em branco. - Como se chama? perguntei, sem deixar de fita-la. – “Rosalva,” respondeu. Levado por uma emoção que desconhecia, escrevi: Rosalva, vamos juntos à Compostela? Ligue-me, por favor, assim que puder... Rabisquei o número do meu telefone, assinei, devolvi-lhe o livro e ela se foi às pressas, como chegara
A partir daquele momento tive a impressão de que a mensagem deixada para Rosalva, num ato arrebatado, demonstrava uma conduta imprudente, que feria o princípio ético da minha posição. Preocupava-me o julgamento que ela faria e desejava receber seu telefonema para desculpar-me. Entretanto dias se passaram sem que isso acontecesse.
Certa noite, após um dia movimentado, tentava desenvolver o tópico da minha coluna, quando o telefone tocou. Por ter sido interrompido num momento crucial demonstrei uma certa irritação no atendimento. Quem estava na linha permaneceu em silêncio e eu prestes a desligar, escutei: - “É Rosalva quem fala, desculpe-me se esse momento for impróprio; ligarei em outra ocasião, se desejar...”
Entrei em choque. Num ápice aquela tarde de autógrafos voltou-me à lembrança com toda a sua força e peso: realização, experiência, contentamento e a surpreendente presença daquela moça encantadora, cujo telefonema eu tanto havia desejado. Esforcei-me por desculpar-me pelo atendimento intempestivo; expliquei-me, longamente demonstrando a satisfação que naquele momento me causava sua ligação. Não foi fácil convencê-la. Quando finalmente tranquilizei-a, Rosalva declarou não possuir telefone. Uma amiga havia disponibilizado seu aparelho para que ela fizesse a chamada.
(Pude compreende-la. Naquela época, poucos possuíam telefones. As linhas eram comercializadas pela empresa de comunicações e não eram baratas. Eu mesmo havia pago a minha linha em prestações).
Nossa conversa alongou-se. Rosalva contou que havia lido o livro quase por inteiro. Comentou meus artigos publicados, teceu elogios... Mostrei-me grato por sua demonstração de apreço e admiração, mas insisti para que falasse de si mesma e assim fiquei sabendo que era professora e exercia o magistério em uma escola estadual, enquanto fazia o curso de pedagogia, visando aprimorar-se. Era do Sul do país, de Santana do Livramento, onde seus pais eram agricultores. Morava em companhia de uma parenta, mentora e incentivadora de seu crescimento profissional.
Mais tarde, avaliei o quanto havia apreciado aquela moça inteligente, espirituosa, que ao se despedir havia prometido ligar num outro dia quando surgisse oportunidade. Eu não podia entrar em contato telefônico com ela, visto que a amiga que cedera o telefone, morava distante dela. Tinha uma vida profissional cheia de afazeres e sua dedicação ao curso de pedagogia tomava-lhe muito tempo em pesquisas e trabalhos.
Conformei-me em aguardar sua manifestação futura. No íntimo senti-me grato por ela não comentar a mensagem deixada em seu livro. Certamente a teria tomado como uma brincadeira tola e não como um avanço indesculpável da minha parte.
Assim em telefonemas eventuais fomos nos conhecendo, evocando nossa infância; comentando fatos do nosso trabalho, tecendo aspirações, descobrindo inclinações comuns.
Identificamos que em determinados dias nossas aulas tinham intervalos de trinta minutos, coincidentes; aproveitamos esses pequenos períodos para nos comunicarmos.
Rosalva parecia conformada com esses diálogos esporádicos à distância, enquanto eu sonhava encontrá-la. Confessei-lhe que precisávamos criar uma ocasião favorável para nos vermos, apesar de todas as atribulações, pois até nos sábados, ela se dedicava a um trabalho social, acompanhando o estudo de crianças necessitadas. Segundo ela, os domingos eram consagrados a cuidar de suas coisas pessoais, descansar e reunir forças para a nova semana que viria.
Procurei conter minha impaciência, refletindo que havia coisas que eu desconhecia de sua vida; era possível que ela tivesse um noivo, um namorado, talvez... e só lhe interessasse manter comigo, aquela conversa descomprometida.
Ela mesma manifestou a lembrança de que o período de férias estava próximo; essa seria uma oportunidade para combinarmos um encontro.
As férias chegaram e apesar das chuvas torrenciais, dos transtornos inesperados, do cumprimento obrigatório de compromissos pré-ajustados, tivemos nosso desejado encontro e outros se seguiram. Entreguei-me ao olhar e ao sorriso que me haviam encantado uma vez e bem cedo descobri que esse encantamento seria para sempre.
Rosalva soube-se se impor, resguardar-se de avanços e de arroubos indesejados. Com inteligência e presença de espírito manteve uma conduta firme, sem deixar de ser afetiva, sensível e intensa.
Fui-me envolvendo por suas qualidades: o conhecimento intelectual, a vontade viva de aprender, o poder de foco e de tomar decisões. Findo o curto período de férias, retomamos nossa conversão ocasional e vez por outra repetíamos a ventura de um encontro.
E assim fomos vivenciando esse convívio casual. O período letivo estava por terminar; as férias de fim de ano se aproximavam. Eu tinha esperanças de desfrutar a liberdade que esse intervalo nos proporcionaria. Entretanto, Rosalva foi para o Sul, visitar aos pais. Durante sua ausência compreendi o quanto ela me era necessária; sentindo o peso da solidão. Nem mesmo participar de um Congresso cujo assunto era do meu interesse ou peregrinar, como antigamente, por cidades históricas, conseguiram preencher meu vazio. Meu contentamento era receber as notícias que me traziam suas breves cartas. Confessei-lhe abertamente meus sentimentos numa carta apaixonada. Cheguei a propor ir a seu encontro, apresentar-me à sua família e pedi-la em casamento.
Ela acalmou minha exaltação com seu jeito tranquilo e equilibrado; mostrou-me que minha atitude pareceria a seus pais um ato inadequado e inconsequente. Refletiu que um compromisso tão importante como o casamento, dependia de reflexão, circunspecção e maturidade.
Compreendi e aceitei suas observações conceituosas. Restou-me harmonizar-me com suas condições e entregar-me à direção que ela daria a nossa convivência.
Rosalva graduou-se em Pedagogia em 1954. Seus pais compareceram aos festejos da formatura, ocasião em fui apresentado a eles com a conveniente cerimônia. Contive meus alvoroços, mostrei-me discreto, gentil e prestimoso, comportamento esperado de um namorado sujeito ao escrutínio dos futuros sogros.
Logo após a formatura Rosalva foi indicada para exercer a função de orientadora educacional. Enquanto corriam os tramites da admissão e a publicação formal no órgão estatal, tivemos um período de maior convivência, tornamo-nos noivos, confirmando o desejo de ficarmos juntos para todo o sempre. O anseio de tê-la comigo, gerava-me um medo inexplicável de perde-la, e nada sossegava o meu coração.
Entretanto, só em meados de 1956, acompanhei Rosalva à Santana do Livramento e como era seu desejo nos casamos na capela da fazenda de seus pais.
Como presente de núpcias, os pais de Rosalva nos ofereceram um cheque, cuja importância deveria destinar-se à compra da casa que nos abrigasse no início da vida conjugal.
A princípio nos ajeitamos no meu pequeno apartamento, aguardando tempo para procurarmos uma casa que nos conviesse. Combinamos que essa escolha seria no bairro onde funcionava a escola para onde fora designada. Eu tinha economias que acrescentei à importância do cheque. Em nossa procura pela casa, encontramos um bangalô recém construído que muito nos agradou. Sendo informados de seu preço, constatamos que valor ultrapassava muito o que podíamos pagar.
Rosalva, naquele mesmo dia, convenceu-me a dar umas voltas pelas ruas do bairro. Nessa caminhada, encontramos uma casa cuja venda era oferecida num anúncio afixado no próprio imóvel. Era uma construção antiga, como tantas outras da região. No momento em que nos detivemos para observar, um homem saia pela porta; ao nos ver, apresentou-se, oferecendo-se para mostra-lo. Eu não me senti entusiasmado, mas Rosalva decidiu aceitar e eu a acompanhei a contragosto.
Passando pelo portão, galgamos três degraus e avançamos pelo alpendre ladrilhado que corria lateralmente pela casa, onde, à esquerda se alargava, tomando o feitio de um terraço. A porta da cozinha abria-se para esse espaço. Entrando por ela fomos conduzidos ao interior da casa. O cômodo da cozinha era amplo, azulejado até o teto, equipado com armário embutido, pia, bancadas em mármore, espaço para um fogão. Comentamos que essas instalações pareciam recentes; o cuidador, explicou que, de fato, o proprietário fizera algumas reformas na casa, para que seu filho recém-casado ali viesse morar, mas quando o casal escolhera viver no interior, a casa fora posta à venda. Enquanto percorríamos os outros cômodos, o quarto de banho, também reformado, com um conjunto completo de louça branca de qualidade – o cuidador, que se chamava Paulo, historiou outras mudanças, como a substituição dos antigos forros de madeira por lajes de concreto, a revisão completa das instalações elétricas e hidráulicas.
Rosalva ouvia atentamente as explanações do Sr. Paulo e parecia entusiasmada com o que via. Eu, por minha vez, tinha a mente obstruída pela imagem do lindo bangalô, que havíamos visitado, portanto, não me impressionei com as vantagens enumeradas.
O sr. Paulo não soube informar o valor pedido pelo imóvel, assim, depois de anotar o número do telefone do proprietário, nos despedimos.
Rosalva a partir daquele momento pôs-se a comentar o que havia visto e ouvido, demonstrando o desejo de compra-lo, com um entusiasmo fora do comum. Eu rebati suas observações dizendo que sequer sabíamos o preço da casa, que a meus olhos, era uma construção antiga; apesar das melhorias, ainda carecia de outros reparos imediatos. - Você nem observou, Rosalva, disse eu, com azedume – nas paredes daquela varanda cheias de garatujas e rabiscos... Ela me interrompeu, e custando conter o riso, exclamou: Não acredito, meu adorável professor, você não ter visto que aqueles “rabiscos e garatujas” registram comentários e datas desde o descobrimento do Brasil, até a Independência. Ali temos uma varanda histórica! Calei-me. Detestava discutir com Rosalva, e seu bom humor teve o dom de acalmar-me.
No dia seguinte, telefonei ao sr. Alberto, proprietário da casa, fui atendido gentilmente, ele dispondo-se logo a vir nos encontrar e nos conduzir em seu automóvel para revermos à casa, e oportunamente discutir propostas e condições.
Ajustamos data e horário e lá fomos conhecer com mais detalhes o que nos era oferecido.
O proprietário discursou sobre os benefícios de uma construção antiga, como era a da casa de sua propriedade: pé direito alto, paredes compactas, cuja espessura de 25 cm. proporcionavam conforto acústico, mantendo boa temperatura interna; cômodos espaçosos, telhados com beirais generosos. Considerou que as reformas feitas ofereciam comodidade funcional, bem estar, garantindo tranquilidade para muitos anos futuros.
Rosalva havia-se encantado com as janelas que possuíam vitrais coloridos. Sr. Alberto explicou que portas e janelas da propriedade eram originais da construção, fabricadas com madeira Ipê, e que o adorno dos vitrais houvera sido importado da Europa.
Ao ser informado o valor estimado pela casa, considerei que estava dentro das nossas possiblidades, até com uma boa folga.
Contudo, a imagem do bangalô que havíamos visto pesava-me na memória e o desespero de não poder adquiri-lo, me desestimulava considerar as vantagens oferecidas.
Assim, quando fui convidado a manifestar minha opinião, deixei claro que a oferta era interessante e proveitosa, mas ainda não pensava em aventurar-me comprando uma casa antiga. O sr. Alberto retorquiu, dizendo que a compra de uma casa deveria ser um consenso entre o casal e que poderíamos pensar juntos e decidir depois.
Nesse momento deparei o olhar repreensivo de Rosalva, cheio de pesar, descrença e desaprovação, que exerceu sobre mim um efeito incisório. De um golpe compreendi a incoerência da minha atitude, minha cegueira diante do racional, deixando-me dominar por um devaneio irrealizável.
Um silêncio opressivo nos cercava. A dois passos de mim, Rosalva era a personificação do desalento.
O dono da casa afastara-se para cerrar as janelas e o ruido dos ferrolhos quando manejados, feria meus ouvidos, acordando a dimensão da dor que eu causara à única mulher a que jurara amor e proteção.
Estava terminada a visita. Nos restava partir.
Sentia-me perdido na voragem do arrependimento, sem saber como fazer face ao conflito desencadeado por meia dúzia de palavras impensadas.
Aproximei-me de Rosalva. Senti de pronto sua rejeição silenciosa, no tremor de seus lábios, nas mãos geladas que tomei nas minhas, na rigidez do corpo que cingi sem despertar com essa proximidade a doçura e o acolhimento carinhoso que nos eram comuns.
Enquanto saíamos pelo portão, o sr. Alberto lembrou-se de algo que se esquecera de fazer, e voltou para o interior da casa.
Sozinhos, Rosalva e eu nos entre fitamos. Seu silêncio pungia como uma ameaça. O inconformismo transbordava dela no corpo tenso, na frieza do olhar esquivo que até então eu desconhecia.
O que eu poderia dizer para recuperar a afabilidade, a meiguice, a compreensão que me era negado? Transtornado, percebi que o sr. Alberto havia retornado e nos convidava a tomar assento no automóvel. Encorajado pela premência daquele último momento, enlacei Rosalva, e expressei ao sr. Alberto o que minha mente exigia para que eu recuperasse minha paz interior. “Minha esposa e eu concordamos em negociar a compra desta casa. Amanhã, em seu escritório nos apresentaremos para finalizar nossos entendimentos”
Rosalva relaxou seu corpo tenso entre meus braços ansiosos.
Sozinhos em casa, nos enfrentamos com nossas verdades. Não escondi minha ambição de possuir e a amarga frustração de não poder comprar aquele bangalô, sentimentos que até então haviam-me influenciado. Rosalva demonstrou seu senso crítico, sua avaliação correta do nosso poder de compra, as vantagens que ela nos proporcionaria a longo prazo; esclareceu seus parâmetros de aceitação e planejamento. Não neguei minhas desilusões; ela não reprimiu o sentimento de dor e a revolta que a levara ao desatino de pensar em deixar-me, diante da minha manifestação negativa.
Ainda que abatidos e mortificados, essas revelações, quando confessadas, agiram como uma catarse.
Choramos juntos; exaustos, adormecemos, pela primeira vez sem nos entregar ao êxtase do amor.
Aquela desavença mostrou-me que um bom acordo poupa desajustes imperdoáveis.
Rosalva participou vivamente da nossa entrevista com o sr. Alberto para a compra da casa; interessou-se pela documentação antiga, apresentou condições e concluído o negócio havia conseguido que o imóvel nos fosse entregue pintado e o jardim livrado do mato que o consumia.
Dias depois com a documentação assinada, lavrada a escritura e as chaves em nossas mãos, convictos proprietários, voltamos à casa a que chamaríamos de lar. Com a pintura renovada a casa resplandecia, destacando-se entre as outras, naquela rua quieta. Os canteiros do jardim depois da capina, deixavam ver remanescentes de plantas da decoração antiga, dasiliryiuns, espadas de São Jorge, cactos, giestas, helicônias.
Pelas portas e janelas abertas a luz e o ar da manhã entraram pela casa adentro, ainda vazia dos objetos que ocupariam seus espaços e a tornariam viva, pessoal, realmente nossa.
Partimos para as compras: moveis, utensílios, materiais, tudo o necessário, o útil e o decorativo. Um enxoval completo havia chegado dias antes, enviado pela mãe de Rosalva, trazendo roupas de cama, mesa e banho.
Mudamo-nos depois de concluída a limpeza total da casa, a colocação dos móveis nos devidos lugares, os arranjos finais...
Dava gosto ver a disposição de Rosalva em limpar, organizar, ataviar a moradia simples, e, em seguida fotografar todos os detalhes. As fotos depois de reveladas, seriam enviadas a seus pais para que conhecessem a harmonia e a ordem da casa cuja compra haviam propiciado.
Auxiliada por um entendido em jardinagem, Rosalva, com esmero recuperou o jardim e dedicou-se ao plantio das roseiras.
Naquela varanda “histórica” jardineiras plantadas com lavandas, manjericão, alecrim, tomilho e outras ervas multiplicaram-se. Havia-se transformado numa varanda “florífera”!
Eu me surpreendia com a determinação de Rosalva. Cumpria seu horário na escola e tão logo de lá regressava já se desdobrava em cuidar dos afazeres da casa.
Nem mesmo quando grávida dos gêmeos nunca a vi indisposta ou queixosa, apesar do calor daquele verão.
Em maio de 1960 nasceram os gêmeos Roberto e Rogério.
Dois anos depois nasceu Rodrigo.
Três crianças saudáveis e bem desenvolvidas, a quem dedicamos todo o nosso amor e energia. Rosalva tinha o dom natural para a educação e desempenhava com naturalidade a tarefa indescritível de ser mãe. Sabia dedicar-se: tinha a percepção clara de cada atuação; eu acompanhava seus exemplares procedimentos, pois sem seu equilíbrio, perdia-me sempre em sofismas, era sôfrego ou demasiado apreensivo.
O que dizer das traquinices daqueles três diabinhos radiantes que nos tiravam o sono! Aprendemos a socorre-los nas entorses, nos ferimentos leves, febrículas, resfriados. Problemas mais graves, resolvíamos consultando um pediatra.
Os velhos álbuns de fotos historiam nossos passeios e viagens. As inesquecíveis visitas à fazenda dos avós, em Livramento, temporadas de liberdade e aventura, como também o aprendizado de outros hábitos e o conhecimento de valores tradicionais.
Recordo-me das temporadas à beira-mar, quando cada um dos meninos demonstrava nuances de personalidade bem particulares. Roberto entregava-se à contemplação. Seu olhar perdia-se na extensão indefinida das águas, no quebrar interrupto das ondas, no horizonte distante.
Rogerio buscava a experiência. Sem temor enfrentava as vagas de arrebentação, queria avançar mar adentro, indo cada vez mais longe. Tinha que ser contido em sua ousadia. Nadador intrépido não escondia sua paixão pelo oceano,
Rodrigo, senhor das areias, construía castelos.
Essas características manifestaram-se no futuro, quando nossos filhos escolheram seus destinos.
Roberto ampliando seus estudos filosóficos consagrou-se ao Budismo.
Rogério, bem cedo fez-se marinheiro; conhece os sete mares e por eles se aventura.
Rodrigo, engenheiro e arquiteto, dedica-se a criar seus sonhos e a construí-los com cimento e cal.
No passado recuperados da desarmonia que nos abatera por ocasião da compra da nossa casa, fomos levados a fundamentar nossa aliança, em confiança, cooperação e parceria. Minha concordância na negociação do imóvel mostrou-me as vantagens que um bom ajuste pode produzir na colheita de bons frutos na seara da vida e salvar destinos da infelicidade.
Criamos nossos filhos sob a aura do comprometimento, da segurança, do respeito.
Na fase da adolescência, na difícil transição do amadurecimento fomos compreensivos tanto nas crises de ansiedade, de insegurança, como partilhamos os desafios, experiências, perspectivas...
Festejamos sua integração na vida adulta e sua independência nas escolhas.
No transcorrer dos primeiros trinta e tantos anos de nossa união, havíamos vencido, como parceiros, as complexidades inerentes à luta pela criação da família, as transições da nossa jornada profissional.
Nossa aposentadoria, a partida de nossos filhos para se integrarem à sua autonomia, nos facultou tempo e desembaraço para fazer novas escolhas de vida.
Sentíamo-nos renovados, libertos de horários e compromissos, vivenciávamos a surpresa de cada dia. Podíamos nos entregar ardorosamente ao amor como nos primeiros tempos. Retomei meu interesse pelas pesquisas históricas; Rosalva expandiu seus conhecimentos de jardinagem em cursos livres. Diferentes de muitos dos nossos amigos que vivendo nessas mesmas condições entregavam-se à melancolia, aos sentimentos de incapacidade e até à depressão, nós, fortificados pelo contentamento do dever; cumprido, escolhemos ser mais criativos e felizes.
Foi nesse período que Rosalva a par da inventividade com a jardinagem, criou nas paredes daquela varanda um painel de mosaicos onde figuravam expressões, versos, e, entre outros o poema de José Martí, um de seus poetas preferidos:
” Cultivo una rosa blanca
en junio como en enero
para el amigo sincero
que me dá su mano franca
y para o cruel que me arranca
el corazón com que vivo,
cardo ni urtiga cultivo;
cultivo la rosa blanca “.
Aos amigos que nos visitavam, ao admirarem as criações de Rosalva, eu sempre lhes narrava que nossa varanda havia sido há um tempo, Histórica; Rosalva a transformara numa varanda Florífera, que era agora também, Poética.
Vivíamos então uma temporada de grande liberdade; ao mesmo tempo havíamos retomado antigas experiências e realizações postas de lado, enquanto a criação da família e as obrigações profissionais eram nosso foco principal. Bons auxiliares treinados por nós nos poupavam das lidas domésticas.
Nossos filhos estavam realizados com suas escolhas. Roberto e Rogério viviam em outro hemisfério. Suas visitas ocasionais faziam de nossos dias, períodos de pura magia.
Rodrigo era presença constante, embora não vivesse mais em nossa companhia.
Éramos então um casal de meia idade, explorando o contentamento da vida à dois, criando um estilo existencial talentoso e criativo. Éramos felizes e nos julgávamos merecedores daquela ventura, depois de tantos anos de lutas e renúncias.
Cometíamos a extravagância de escapar de casa, sem deixar aviso. Hospedados em hotéis de veraneio, em pousadas campestres, por alguns dias recriávamos nossa história de amor. Revigorados pela aventura, novamente em casa, retomávamos os hábitos comuns.
Meu projeto do livro Controvérsias na História do Brasil progrediu bastante, naquele ano. As exaustivas pesquisas levaram-me a um bom termo e logo o texto estaria completo para publicação.
Por sua vez, Rosalva transformara parte do nosso quintal, num horto aonde vicejavam plantas raras de cultivo muito especial. Brevemente as mudas poderiam ser comercializadas, embora em pequena escala.
Sonhávamos para em um futuro próximo, realizar uma viagem aos Estados Unidos e à Europa. Seria um período sabático, no qual colocamos nosso maior sonho e esperanças. Desejávamos em New York visitar o Museu Metropoliton, como outros importantes museus em capitais europeias
Vivíamos então o mês de abril, horizontes azuis, clima ameno, dias e noites adoráveis. Notícias de além mar nos chegavam nas missivas dos dois filhos distantes. Rosalva, com seu jeito professoral lia as cartas para mim, e eu adorava ouvi-la na sua dissertação vivaz, que me emocionava como se eu presenciasse as vivencias que nos eram narradas.
A saudade constante nos levava a buscar nos antigos álbuns, fotos que acordavam nossas lembranças mais queridas. Revíamos assim o crescimento dos nossos filhos, desde os primeiros anos da infância, a vida escolar, festividades, passeios, viagens... A febril adolescência aventurosa, grupos de amigos, namoradinhas...Comemorações estudantis, solenidades, colações de graus... Com sorrisos e lágrimas nos olhos, relembrávamos... Ao comentar com Rosalva as escolhas feitas por cada um deles como meta de vida, lembrando as semelhanças físicas que tinham em comum e a diferença nas opções profissionais, perguntei o que ela diria da expressão idêntica que tinham no olhar quando crianças e que agora sendo adultos, ainda permanecia. – Ela quedou-se pensativa por um instante. “Em nossos filhos, disse, foi sempre igual o olhar de sonho”.
O ano transcorreu e vivemos com intensidade as eventuais presenças de Roberto e Rogério.
Nossos planos para a viagem internacional eram estudados com cuidado, para que o acontecimento ocorresse sem frustrações, por erros de planejamento.
Quem diria que 1981 seria o ano em que minha vida sofreria uma transformação radical? Uma dor de cabeça repentina e inexplicável prostrou Rosalva, provocando desmaios e vômitos. Hospitalizada, os exames comprovaram um aneurisma cerebral de grandes proporções. O diagnóstico esclareceu ainda a impossibilidade de salva-la.
Foram chamados os filhos distantes que chegaram a tempo para o funeral
Na cerimônia do enterramento sentado junto ao ataúde, permaneci como em transe, desconhecendo as pessoas que se aproximavam, abraçavam-me, pronunciando frases de conforto e coragem. No meu estupor, preocupava-me desconhecer meus filhos quando chegassem. No íntimo movia-me a certeza de reconhecê-los pelo olhar de sonho. Quando Rogério adentrou o recinto repleto, vendo-o, reconheci-o em altura e porte quando caminhava em minha direção. Vencendo minha letargia, ergui-me para recebe-lo. Meu filho abraçou-me, soluçando em meu ouvido: “Como viveremos agora, pai, sem nossa estrela guia?” Senti no rosto a aspereza de sua barba crescida e a umidade das lágrimas que lhe corriam pelas faces curtidas pelo sal dos oceanos.
Percebi a chegada de Roberto destacando-se pela cabeça totalmente raspada; trajando o rakusu dos budistas, calçando as sandálias cruas de penitente, aproximou-se, envolvendo-me com seu olhar amoroso. Ergui o braço trêmulo, tocando com a mão sua cabeça nua; ele tomou-me nos braços e sustentou-me, guando desabei desafogando soluços e lágrimas.
Finda a cerimônia, meus três filhos e eu, de mãos dadas, rezamos em silêncio a prece de adeus à inesquecível mãe e esposa, que foi levada de nós repousando em seu leito de rosas.
Retornar à casa vazia tirou-me o último alento. Entreguei-me à dor daquela ausência sem remissão ou consolo.
Roberto e Rogério, licenciaram-se de suas obrigações para permanecerem comigo. Rodrigo continuou sendo a presença contínua; os três, cada um a seu modo, buscando um caminho para manter-me vivo. Abismado, entregue a uma tristeza profunda, não reagi à dedicação que recebia, aos aconselhamentos, às orações, ao tratamento médico e sua medicação.
O tempo rolou até que numa noite, Rosalva surgiu-me em sonho; senti vivamente a carícia de suas mãos perfumadas de alfazema. Num sussurro avisou-me que era tempo de serem podadas as roseiras, para que florissem na próxima estação.
Habituados à minha letargia Roberto e Rogerio assustaram-se encontrando-me remexendo na caixa de ferramentas de jardinagem; e quiseram saber o motivo da minha atividade inusitada. Abandonando meu recalcitrante silêncio, contei-lhes o sonho tido com Rosalva e o pedido que me fizera sobre a poda das roseiras. Eu procurava as tesouras para realizar o serviço.
Era evidente que minhas condições físicas não permitiriam a aventura. Trataram de acalmar-me, prometendo que eles podariam as roseiras. Rodrigo, que acabava de chegar, inteirou-se do meu sonho e do meu estranho comportamento. Explicou aos irmãos que conhecia a preocupação de Rosalva quanto à época da poda das roseiras, que obedecia a uma determinada fase da lua. Consultando os calendários verificaram que a lua estava na crescente; e informando-se nas antigas apostilas de jardinagem, souberam que aquela data e fase da lua eram apropriadas para que fosse feito. Embora canhestramente os três, munidos com as tesouras, puseram mãos à obra. Seguindo os aconselhamentos prescritos, fertilizaram, o terreno, estenderam seus cuidados às folhagens, aos vasos das ervas, enquanto eu, sentado no avarandado dava palpites, demonstrando afinal algum encaminhamento para minha reabilitação.
No momento de sua partida, Roberto e Rogério sentiram-se confiantes em deixar-me, considerando meu evidente fortalecimento e a disposição para viver.
Rodrigo ofereceu levar-me para morar mais perto dele. Recusei o convite; nada me faria deixar a casa onde vivera com Rosalva, onde havíamos construído uma vida proveitosa e feliz. Não vivia sozinho; acompanhavam-me serviçais competentes que me prestavam toda a ajuda necessária. A supervisão constante de Rodrigo, seu desvelo incondicional, conduziram-me a uma razoável recuperação psicológica e física. Aprendi a conviver com a ausência de Rosalva e a desfiar dia a dia o infinito rosário da saudade.
Mas o futuro traria o acontecimento que me levaria a despedir-me dali, onde eu e Rosalva, havíamos constituído um lar, berço de todas as nossas realizações.
Naquele ano tivemos o verão mais chuvoso de que se poderia lembrar. Dias e noite se sucediam sem trégua da chuvarada infinita. De repente numa tarde brilhou um sol brando, prometendo afinal um tão desejado estio. Entretanto, no transcorrer das horas trovões distantes anunciaram o retorno da tempestade, que se abateu violenta, coriscos riscando o céu noturno. Foi-se a energia, não havia qualquer comunicação possível. As primeiras horas da manhã se anunciaram; entanto, o negror sinistro a tudo cercava. Acendi velas, procurei uma lanterna e às apalpadelas consegui alcançar e abrir a porta da sala. Com assombro deparei a torrente que corria desabalada pelo entorno. O muro desabara e o jardim desaparecera num lamaçal indescritível.
Perdi a noção do tempo, dominado pela angústia. Quando a energia se restabeleceu, o toque do telefone tirou-me do torpor. Ao atender ouvi a voz de Rodrigo, ansiosa: “Pai, como está o senhor? Seu bairro está isolado, não consigo chegar aí, uma adutora rompeu-se e parte dessa região está inundada...” O muro caiu, respondi, soluçando. Tem muita água em torno da casa...” Pai, já estão providenciando os socorros, e trabalham na adutora para consertar o rompimento. A chuva já passou e assim que houver uma passagem onde um carro possa transitar chegarei. Pai, por favor, proteja-se. Descreva-me a situação da casa; entrou água, há alguma rachadura visível?” (Acendi todas as luzes, caminhei pelos cômodos e não encontrando nada molhado ou trincas, voltei ao telefone) “Dentro da casa está tudo bem, lá fora parece que tem um rio correndo”. “Sossegue, pai, vou sair outra vez e procurar um caminho por onde passar...”
Levou bastante tempo para que a água parasse de rolar em torno da casa. Os reparos na adutora foram feitos; o sol finalmente surgiu; restando o lamaçal que cobria ruas e quintais. Os noticiários descreviam detalhadamente o desastre e suas tristes consequências. Ao chegar, Rodrigo encontrou-me estarrecido, com o olhar perdido no jardim destruído sob o muro desmoronado, enquanto a água lamacenta ainda escorria lentamente sobre os escombros.
Não foi possível minha permanência ali. Ainda que a casa continuasse firme e sem perigo de desabamento, toda a plantação, estava arruinada. Apenas arbustos e árvores de maior porte salvaram-se da enchente.
Os aconselhamentos de Rodrigo, a triste realidade exposta aos meus olhos convenceram-me a partir. Levando apenas o essencial mudei-me para um Apart-Hotel, onde fiquei por seis meses, enquanto eram concluídos os acabamentos nesse apartamento onde hoje vivo.
Minha velha casa, o lar que Rosalva e eu construímos, adornado com a graciosidade gerada pelo labor de muitos anos, é agora uma lembrança. Existirá na minha imorredoura saudade, nas fotos amareladas dos álbuns – que são hoje meu maior tesouro! –Brevemente, em seu lugar, outro projeto da construtora de Rodrigo será edificado.
A vida e o progresso caminham a passos largos. Procuro adaptar-me às novidades que me cercam, smartfones de última geração, internet de grande alcance; a espantosa comunicação imediata gerada pelas redes sociais, tudo se vê, tudo se sabe com um realismo assustador.
De permeio acostumei-me a comer fora todos os dias. Cozinhar em casa, quem me dera! Na minha rua restaurantes oferecem sabores para as mais diferentes escolhas, nacionais e estrangeiras. Quando deixei meu antigo lar, Rodrigo apresentou-me ao moderno estilo de vida, shoppings, magazines, academias... Hoje frequento uma clínica para sessões de pilates, devido a uma escoliose. O novo lema é “Viva sem Dor”!
Atendendo a meu pedido, Rodrigo, como um bom filho, aceitou tomarmos no meu apartamento o lanche da tarde aos sábados. Eu sentia falta de estar com ele em casa, um encontro de pai e filho, sem pessoas desconhecidas ao redor, sem a obrigação de consultar cardápios, escolher, esperar ser servido. Queria eu mesmo coar o café que tomaríamos; descascar a fruta; fatiar o pão e o queijo; usar a minha porcelana antiga; tudo sem compromisso, sem pressa. Rir a bom rir, bebericar o café até esgotar a cafeteira, como em outros tempos, contando histórias, esvaziando o coração!
Temos nos encontrado assim. E sinto meu filho, mais espontâneo, com uma prosa menos profissional, desembaraçado, pronto a falar de si mesmo, revelando-se mais intimamente. Dos meus três filhos, Rodrigo, embora tenha sido o que, por ser o mais novo, tenha ficado mais próximo de mim e de Rosalva, sempre foi o mais reservado, prudente, comedido. Embora atencioso e dedicado como o é até hoje, seu devotamento aos estudos e à profissão, deu-lhe uma postura um tanto distante.
Talvez.
Preparando-me para sair para minha sessão de Pilates, ouço tocar o interfone. A diarista que hoje veio tratar da arrumação, atende e vem avisar-me que está chegando uma entrega para mim.
Abro a porta e aguardo a chegada do elevador. Nele chega um jovem que a mim se dirige estendendo a mão:
” Boa tarde, professor, diz, amigavelmente. Sou Leo Valdez, sócio de Rodrigo na construtora. Trago-lhe uma surpresa”!
Olho intrigado para suas mãos vazias...
“O que venho trazer, está subindo pelo elevador de serviço,” ele explica com um largo sorriso que destaca seus dentes perfeitos. Convido-a a entrar e nos dirigimos à área dos fundos onde aguardamos a chegada do elevador serviço. Enquanto esperamos ele conta que cursou a faculdade de arquitetura com Rodrigo, mas suas funções na empresa são a de designer de interiores e paisagismo que são suas escolhas prediletas. Aprecio sua vivacidade, o ar juvenil dos cabelos displicentemente atados com um elástico; reparo em seus braços tatuados, nas mãos enérgicas e expressivas.
Chegando o elevador surpreendo-me em ver dois grandes vasos plantados com roseiras, que sobre carrinhos, são empurrados por dois rapazes trajando o uniforme da construtora. Cumprimentam-me, dizem que um terceiro vaso não coube na primeira viagem, e retornam para busca-lo. Emociono-me admirando as roseiras viçosas, adornadas com exuberantes botões, alguns já entreabertos mostrando suas cores sutis. Leo Valdez, vivamente, comenta que sabendo por Rodrigo da minha tristeza diante da destruição do jardim de nossa casa com a invasão das águas, e da consequente perda do precioso roseiral que era o orgulho de Rosalva, prometera-lhe que plantaria roseiras em vasos e me presentearia com eles para enfeitar o apartamento. Custo a conter as lágrimas, balbuciando com esforço minha gratidão pelo presente; com a chegada do último vaso, fui solicitado a determinar onde desejava que ficassem.
Leo Valdez vendo minha indecisão, sugeriu que não via melhor lugar para eles do que a espaçosa área de serviço, cujos janelões oferecem claridade e ar necessários para o desenvolvimento das plantas. Determinou o exato local onde deixá-los, despediu-se, e partiu, não antes de esclarecer que daria pessoalmente às roseiras os cuidados que fossem necessários.
Naquela tarde não compareci à minha sessão de Pilates. Deixei-me embalar pelas recordações; entreguei-me ao regozijo de admirar os vasos com as magnificas roseiras florescentes. Liguei para Rodrigo, agradecendo a surpresa, exprimindo minha gratidão pela atitude de seu sócio em presentear-me, e a simpatia que despertara em mim.
Rodrigo se entusiasma com as expressões calorosas que manifesto com relação a Leo Valdez. “Sou grato, pai, por seu reconhecimento ao meu companheiro; com o passar do tempo o senhor contatará quantas qualidades ele possui”.
Quando perdi Rosalva, passando pelo indescritível sofrimento de sua ausência, busquei a aceitação do meu luto escorando-me na fantasia de que posso invoca-la e quase senti-la presente. Não é nada metafísico; apenas meu pensamento errante busca por ela, por suas expressões fisionômicas de admiração, desassombro, assertiva, negação... seu sorriso inesquecível, seu olhar amoroso, seu silêncio significativo... Posso assim contar-lhe os trâmites de minha nova vida, meus desassossegos, surpresas, descobertas; deixar correr livres minhas lágrimas de saudade, sonhando sentir o conforto de suas mãos serenas percorrendo os traços do meu rosto... como antes, no passado. Naquela tarde compartilhei com ela a satisfação de sentir-me mais próximo de Rodrigo encontrando-nos aqui em casa para os lanches nas tardes de sábado, em vez de ir a lanchonetes e cafés públicos. Mostrei-lhe os vasos onde floresciam as rosas multicores, a mim oferecidos por Leo Valdez, sócio de Rodrigo; descrevendo-o, exaltei meu reconhecimento à sua sensibilidade, que me tocara profundamente.
O aroma das flores ali presentes, trouxe-me a recordação das suas mãos, impregnadas pelo perfume das lavandas, cuja inefável carícia sonhei sentir por um instante.
No sábado bem cedo Rodrigo ligou-me, e depois da prosa de todos os dias, antes de despedir-se, ele se lembrando do nosso encontro à tardinha, informou que Leo Valdez o acompanharia, avisando que eles trariam os quitutes para lanche. Fiquei satisfeito sabendo que reveria meu simpático presenteador.
Chegaram trazendo pães frescos, queijos variados, folhados especiais e salgadinhos da melhor confeitaria da região. Juntos desfizeram os embrulhos, acomodando as refinadas iguarias nos meus preciosos pratos de porcelana antiga.
Afastei-me para a cozinha, preparando-me para coar o café e servi-lo. De onde estava, observei-os movimentando-se em torno da mesa da copa, forrando-a com a toalha branca, acomodando xícaras, talheres, guardanapos, os pratos servidos com o alimento; entreolhavam-se sorrindo, mostrando uma conexão marcante, muita intimidade.
Lado a lado examinaram a mesa posta. Talvez insatisfeitos, reorganizaram a apresentação dos pratos. Fazendo isso aproximavam-se, tocavam-se com mãos atarefadas, buscavam-se com os olhos, ávidos, afoitos.
Ver aquela cumplicidade trouxe-me à lembrança atitudes minhas e de Rosalva no passado: com essa mesma conciliação harmoniosa; praticávamos, como eles agora, ações e gestos movidos pela efusão de muito afeto e coerência.
A revelação não me deixou perplexo. Ao longo da vida aprendi a lidar com as complexidades humanas e acolher suas diversidades, afinidades, e as dessemelhantes ligações entre as criaturas.
Mais uma vez evoquei Rosalva. Fazendo isso, vinham-me à lembrança as diferentes expressões de seu rosto. Havíamos tido uma vida plena, harmônica, dividindo confiança e reciprocidade; essa ligação forte e bem estruturada, firmada em respeito e afinidade, facilitava nos entendermos por olhares e gestos.
Naquele momento com os olhos cerrados concentrei-me. E recordei seu semblante querido, exprimindo aquiescência, compreensão; entretanto, não me escapou na comissura dos seus lábios um conhecido ricto que manifestava ter Rosalva o conhecimento da situação.
Como me fez falta naquele momento a impossibilidade do diálogo! Em tempo algum ocultáramos um dos outro fato ou informação que envolvessem nossos filhos! Busquei desesperadamente resposta.
Encontrei-a no infinito rosário de lembranças que desfiei, conta a conta.
(Muitas noites, deitados, antes de dormir, costumávamos Rosalva e eu, trocar comentários sobre os acontecimentos do dia. Nesses momentos ao perceber que eu me distraia sonolento, ela me puxava delicadamente a orelha para manter-me atento. E foi assim que fazendo isso, certa vez, ela também murmurou: “Vou lhe contar um segredo...”
Vencido pelo sono, não ouvi o que me disse. No dia seguinte, bem desperto, pedi que me revelasse o tal segredo. Ela se negou conta-lo; dizendo-se arrependida, declarou que o segredo não era dela, portanto não o contaria; e encerrou o assunto, com um aviso: “um dia você saberá”)
No restante da tarde, Rodrigo e Leo Valdez, sem constrangimento, demonstraram a cumplicidade de sua ligação. Leram juntos e comentaram as cartas, vindas de além mar, escritas por meus dois outros filhos; percorreram as páginas amarelecidas dos meus antigos álbuns de fotos, trocando ideias, sem esconder suas afinidades e a harmonia de seu relacionamento.
Surpreendeu-me a pergunta de Leo Valdez, desejando saber se já me adiantara na reprodução escrita das minhas memórias, a partir do meu encontro com Rosalva naquela tarde de autógrafos.
Como resposta, apontei o calhamaço de folhas digitadas sobre a escrivaninha, explicando que era o esboço; em breve seria dividido em capítulos que abririam as janelas da nossa história.
“Pai, disse Rodrigo, quando se preparavam para partir – nosso apartamento ficou pronto, decorado a nosso gosto; teremos um almoço no domingo e desejamos sua presença para festejar. Um de nós virá para leva-lo aí pelas 13 horas...”
“Meus pais também irão, interveio Leo Valdez, e completou com um sorriso, será um encontro familiar para a comemoração”.
Agradecendo a gentileza do convite, acompanhei-os à saída. Despedindo-se, Rodrigo abraçou-me com expressiva emoção. Por sua vez, Leo Valdez, tomando minha mão, beijou-a respeitosamente,
Chegou o elevador; depois de um alegre aceno, os dois se foram.
BH.23/04/2022