O calendário preso à geladeira por um imã tinha sublinhadas as datas comemorativas.

 

Era sabido por todos a paixão nutrida por Maria Iza rendendo-lhe lembranças que sequer caberiam num livro.

 

Foram 66 anos de matrimônio num tempo em que a fartura era cena de novela das oito em televisão aberta.

 

Depois de sua partida que surpreendeu a todos pela efemeridade entre o diagnóstico e a morte, Pedro não tocou em nada.

 

O vazio preenchido pelas lembranças presentes em cada objeto da casa, dava conta da saudade que o filho reduzia em textos poéticos, escritos a noite, aos pés da cama, num caderninho deixado por ela debaixo do travesseiro.

 

Ninguém nunca soube de sua paixão pela escrita. Era uma espécie de diário dos sentimentos. Os dias pesados eram transcritos de forma sublime e terna, revelando a dor escondida atrás dos olhos de Maria Iza que estavam sempre brilhantes.

 

Ela tinha um sol ocular que ofuscava qualquer outro olhar circundado. Parecia afagar a alma com um abraço de acolhimento que cedo se transformava em sorriso acolhedor.

 

Quem dera tivesse herdado de sua mãe a beleza singular de seus olhos grandes, verde abacate manteiga e tão doces que viviam prestes a derreter em lágrimas. Tão sensível a ponto de chorar ao assistir filmes de suspense. Ao primeiro sinal de dor alheia, sua feição abruptamente expandia em dor massante, vista de longe pelo movimento negativo da cabeça. Parecia desidratar. Tudo nela tinha a intensidade de um tsunami. Seus trejeitos não negavam a sua autenticidade.

 

Foi por isso que Gerânio não suportou sua partida. O amor entre eles simbolizava uma aliança. Não foram poucas vezes que acrescentaram diamantes ao adereço matrimonial que se tornou uma joia rara. Antes de completar um ano de sua partida Gerânio teve um mal súbito. Mas sua trajetória poderia ser explicada numa linha cronológica de antes e depois da partida de Iza. Seus dias ficaram longos e suas noites frias. Foi só uma questão de tempo. Diziam que morreu de desgosto. Ou de amor mal curado. Como ele bem dizia, quando duas almas gêmeas se encontram, o céu pára  observando a história e os anjos distraídos perdem a noção do tempo. E quando uma se vai, a outra espera na torcida. E novamente os anjos se distraem deixando de lado seus ofícios. Daí a urgência na convocação do parceiro. Ele dizia que esperava confiante o grande dia. Foi com um sorriso sereno e sem avisar. Na noite do dia 25 de dezembro. Não suportaria um Natal sem ela. Em sua mão a fotografia do dia do casamento. No necrotério disseram que decidiram manter a foto porque o enriquecimento das mãos a estragaria. Ele foi ao encontro dela.

 

Mas Pedro estava triste, especialmente naquele dia: 1⁰ de outubro. Era devoto de Santa Terezinha e escolhei aquela data para realizar o seu casamento. No calendário sublinhado pela mãe, a data foi circulada em vermelho com formato de um coração.

 

Embora tivesse superando a dor, apesar da tristeza, vez ou outra, a visita de Lenice era certa. Com aqueles olhos esbugalhados, esbaforida e agitada, acabava se distraindo e, por consequência, se esquecia do que ia fazer.

 

Como podia? Uma cientista com PHD em fisiologia e embriologia, doutora e tão voada. Ela parecia ser duas pessoas: a distraída de casa e a conservadora do trabalho. Era engraçada, descontraída. Ria de si mesma como quem tivesse num circo. Falava consigo e respondia dando adjetivos nada saudáveis.

 

Lenine tinha um coração selvagem que amansava com uma voz de criança. Não podia ver uma! Sentava-se de jaleco branco bem na calçada defronte ao semáforo e brincava com eles. Comprava todas as caixas de balas dos menores do sinal. Era conhecida como a Deusa do sinal. Estava tão apressada pela maternidade que sequer se preocupou em fazer exames ou se preparar para a gestação. Foi no susto.

 

Estavam tão felizes. O ultrasson tinha feito a ficha dele cair: seria pai. Passou a chegar mais cedo, a comprar presentes aleatórios, arrumou um espaço na casa para o quartinho. 

 

Tudo estava nos conformes. Recebeu uma classificação no trabalho. Ganhou uma bolsa de doutorado. E a tristeza e a saudade dos pais foram se assentando no canto esquerdo do peito.

 

Lenice estava radiante. Uma beleza inconfundível e indescritível. Uma mulher que carrega uma vida no ventre jamais será confundida. O corpo humano guarda a descendência física enquanto sublinha a alma.

 

Os meses iam passando e as 39 semanas chegaram. A correria para arrumar a bolsa do hospital, a euforia de conhecer aquele rostinho minúsculo. Tudo era intenso. Tanto que estava exausto. 

 

Pedro saiu para trabalhar na capital naquele dia. Deu muitos beijos em Lenice e no Miguel. Tinha escolhido esse nome por causa da paixão do pai por anjos. E foi como quem queria ficar, afinal já estavam em contagem regressiva.

 

Lenice acordou as oito com sensação de que não passaria daquele dia. Ligou para a mãe e enviou mensagem para o marido dizendo que sentia os primeiros sinais. As contratações aumentavam, mas ela não sentia dores, ficou quieta a tarde toda. Mas havia algo errado, as pernas inchadas e as mãos arroxeadas, decidiu chamar a mãe para levá-la ao ginecologista.

 

No hospital, o médico da emergência chama a equipe médica e a levam para a internação. A pressão alta gerou uma eclampsia. A cirurgia era urgente. Preparada a equipe, primeira parada cardíaca e reanimação. Segunda parada, tentativa de reanimação frustrada. Nova tentativa... - O bebê! Disse o plantonista. Nasceu com vida, chorou engasgado e se foi.

 

A junta médica reunida estava desolada. Do lado de fora a mãe, o pai, irmãos e marido. E a notícia que ninguém queria dar:

 

- Sinto muito, mas não resistiram. Nem mãe, nem filho.

 

Aqueles minutos que sucederam aquele momento trouxeram o filme rebobinado em flashes. A mãe, o pai, o amor. A esposa, o filho e o amor.

 

Deitou-se no chão em posição fetal e por alguns segundos apagou. Tinha sido abduzido pelos sentimentos e foi parar no abismo da solidão. Acordado pela sogra aos prantos, abraçou-a e choraram juntos, ele feito um bebê.

 

No velório, de mãos dadas com Lenice, agradecia a Deus a oportunidade de viver um amor feito o dos pais. E sussurrou em tom embargado:

 

"quando duas almas gêmeas se encontram, o céu pára  observando a história e os anjos distraídos perdem a noção do tempo. E quando uma se vai, a outra espera na torcida. E novamente os anjos se distraem deixando de lado seus ofícios. Daí a urgência na convocação do parceiro. Espero confiante o Grande Dia."

 

A urna fechou. A alma adormeceu em coma.

 

Nas noites mal dormidas, agora na antiga casa dos pais, a solidão o faz companhia como quem lhe prepara o leito. Nas mãos o caderninho e um novo poema:

 

Se quiseres buscar-me, oh Deus.

Na noite ou dia.

Prescinde o aviso, 

Surpreendente euforia.

 

Se quiseres levar-me, oh Deus.

Prontidão me vigia.

Faço um sinal da cruz.

É urgente.

Me vigia.

 

Se quiseres resgatar-me, oh Deus.

Eu suplico.

Deixa-me fazer-Lhe companhia.

A dor latente é meu guia.

 

Se quiseres abraçar-me, oh Deus.

Pronto estou todo dia.

Pra aliança.

 

E adormeceu...

 

 

 

 

 

 

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 19/03/2022
Reeditado em 19/03/2022
Código do texto: T7476125
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.