A fazenda do Catavento

Na verdade o nome da fazenda era São Cristóvão, santo pelo qual o fazendeiro, seu Geraldo, é devoto. Mas depois do advento do catavento (desculpe a rima, eu bem que queria fazer uma poesia, mas resolvi contar uma história, então considere como uma licença literária da minha frustração poética) todos conheciam a fazenda como a Fazenda do Catavento. Advento aqui carrega seu sentido mais divino, era esperado como grande salvador, um redentor da aridez daquele solo que só permitia criação de cabras, animais dispostos a comer qualquer coisa que aparecesse e por isto mesmo mais resistentes à baixa oferta de calorias que uma vegetação pobre podia oferecer. Seu Geraldo já imaginava uma plantação e também umas cabeças de gado bovino.

O catavento enorme, que era a parte visível de um mecanismo que bombearia água de lençóis freáticos, nunca teve a parte não visível completada. Os canos foram fundo mas não encontraram água. O vendedor dizia que era preciso ir mais fundo, mas para isto era preciso ir mais fundo no bolso sem uma garantia de sucesso. Acabou que ficou ali como um belo ornamento, um monumento à falta de coragem ou de dinheiro para seguir adiante ou como seu Geraldo preferia quando ouvia algo do gênero, uma lembrança de que devemos conhecer os nossos limites.

Com seus 10 metros de altura, com 20 pás, que giravam acionadas pelo vento e com uma cauda de metal que procurava sempre ajustar as hélices para que ficassem de cara para o vento, ela era imponente.

Seu Geraldo sentava à tarde num pedaço de tronco que ficava na sombra de uma bela Arapiraca e ficava observando o catavento. A chuva nunca vinha e quem poderia trazê-la seria os ventos. Mas os ventos eram fracos e passariam despercebidos no mormaço daqueles dias, não fosse eventual giro do catavento aprumando-se para ficar de cara com o vento e com os giros tímidos e raros das suas hélices.

Ele pensava no prejuízo que teve, mas também no acerto de saber quando parar. Ficou imaginado que se tivesse chagado até algum lençol freático o pouco vento que tinha por aquelas bandas não teria força para puxar a água suficiente para cobrir seu investimento. Pensou por que não pagou primeiro pela perfuração. Implantar o catavento era uma estratégia do vendedor – uma forma de garantir o negócio, de fazer com que ficasse mais difícil desistir de continuar caso não fosse encontrado água até determinada profundidade contratada, que diziam tinha 90% de chances de resultado positivo. Seu Geraldo custava a acreditar que ela fazia parte dos 10%. Estava mais convencido de que fazia parte dos 100% que eram enganados pela empresa safada, mas guardava sua avaliação para si próprio, pois se já era bastante ruim se considerar um trouxa, pior ainda era imaginar que muitos poderiam compartilhar do seu juízo.

De qualquer forma, enquanto observava o catavento se distraia e, mascando um matinho no canto da boca, ficava a esperar pelo próximo meio giro da geringonça. Geringonça era o nome que ele mesmo tinha batizado o catavento - Sem manutenção e de difícil acesso pela sua altura faltava uma lubrificação adequada, fazendo que os giros das pás viessem acompanhados de um grito ardido dos metais em atrito no centro do seu eixo. Ele ficava imaginado onde o vento ia e se a outra lufada que se seguia seria capaz de fazer com que um vento chegasse no outro. Uma onomatopeia do tipo inhééé, junto com um flop, flop, flop talvez consiga, junto com um pouco de boa imaginação, tentar descrever a “música” do catavento ou geringonça como queira.

Seu Geraldo buscava sempre traçar paralelos da geringonça com a vida e já era meio que considerado um sábio: O sábio do catavento. “Do invisível devemos buscar nossa energia e nos manter em movimento” – Buscava traçar paralelos com vento e Deus. - “Devemos ser como cataventos e perceber e responder ao sopro de Deus”.

“Que bom ventos te trazem aqui?” Era uma frase quase certa para visitantes esporádicos. Na verdade o custo que teve era pouco diante do fascínio do seu Geraldo pela geringonça. Ele tinha nela até um oráculo para as decisões mais difíceis – sentava de frente, normalmente à noite quando já não tivesse olhos curiosos de empregados e fazia a pergunta para a qual precisava de resposta, ficava esperando pela inclinação mais à direita ou à esquerda. Ele montava um código único e particular onde a esquerda seria um “sim”, como é a abertura de uma torneira ou afrouxamento de um parafuso e a direita seria um “não” e a intensidade do giro das hélices seriam a intensidade da resposta. Assim uma lufada forte e uma inclinação à direita seria quase como um grito de NÃO acompanhado de vários pontos de exclamação.

Seu Geraldo era um senhor dos seus 65 anos mas já viúvo, por um destes infortúnios da vida, que não explicam as escolhas de certas doenças para algumas pessoas – se sua esposa, dona Maria, não era um exemplo de vida saudável, muito menos era uma pessoa que não ligava para saúde. Muitos chás, caminhadas, nem álcool, nem cigarro e boas noites de sono faziam parte do seu estilo de vida, que um câncer simplesmente desprezou e fulminante a levou em seis meses do diagnóstico à morte. Isto tinha acontecido há 10 anos, quando ela tinha somente 50 anos. De lá para cá o seu Geraldo tinha se tornado um senhor apático, que tocava as obrigações da sua fazenda mais por cuidado com seus empregados que dependiam do serviço para sustentarem suas famílias do que por qualquer outra coisa. Como não tiveram filhos pensou algumas vezes em vender tudo e ir morar num cantinho qualquer onde esperaria sua vez de ir desta para melhor, pois sem a Maria estava pior de se viver.

Até o dia que chegou o vendedor do catavento cheio de um ânimo, um fenômeno, que foi derrubando os argumentos do senhor “Geraldo tá bom assim”. O resto da história seria o que você viu até aqui, não fosse por outro destes fenômenos que todos conhecem tão bem e que bagunça com os juízos dos homens – uma paixão por uma mulher.

Miranda era uma mulher dos seus 40 anos, bem cuidados e que ia semanalmente fazer a faxina na casa do senhor Geraldo. Discreta, não era de conversar muito, sugestão da pessoa que a tinha indicado para o serviço, que dizia que assim ela teria mais chances de permanecer, pois o seu Geraldo imaginavam que, guardando um carinho pela esposa falecida não era muito de conversar com mulheres. O que não sabiam é que não era pelo luto persistente, mas sim porque uma vida inteira com a mesma mulher tinha deixado o seu Geraldo sem assunto e pouco à vontade com outras. Eventualmente trocavam algumas frases, mais sobre as tarefas que Miranda devia priorizar naquele dia, mas as respostas de Miranda vinham emolduradas num sorriso encantador que faziam o seu Geraldo preparar na véspera um sem número de recomendações para que aquele momento perdurasse por mais tempo.

Miranda tinha um perfume maravilhoso, e seu jeito atencioso já tinha encantado seu Geraldo. O olhar do seu Geraldo para sua faxineira era um pouco mais cumprido e mostrava-se assustado quando confrontado com o perceber da Miranda e saia-se com uma desculpa, digamos assim que esfarrapada seria um eufemismo, bem fajuta para sair da casa e ausentar-se pelo tempo que fosse necessário para que Miranda terminasse seu serviço.

Num destes dias quando seu Geraldo falou que ia fazer algo urgente, Miranda, enquanto dava uma ajeitada no fogão, percebeu que o almoço do seu Geraldo seria polenta e feijão. Vendo na geladeira pedaços de frango imaginou que poderia preparar um cozido que combinaria bem com a polenta. Foi procurar seu Geraldo que tinha ido tratar do seu assunto urgente, para sugerir ser sua cozinheira naquele dia. Encontrou ele sentado no pedaço de tronco debaixo da Arapiraca olhando concentrado para seu Oráculo, sim naquele momento não era Catavento nem Geringonça – era um Oráculo que responderia se ele poderia tomar o próximo passo e convidar Miranda para um encontro – ele sabia ela que também era desimpedida pois, como todos sabiam, o marido dela tinha ido para São Paulo com outra mulher deixando ela à própria sorte para cuidar de dois meninos.

Flop, flop, flop, flop, flop, flop, inhéééééééé girou forte o catavento apontando para a direita.

Entre concentrado e desenxavido levou um susto quando ouviu a voz maviosa de Miranda chamando o seu nome “Seu Geraldo, seu Geraldo!”. “Ahn” respondeu assustado seu Geraldo. “Você estava no mundo da lua? Tem um tempo que eu estou te chamando e o senhor vidrado no catavento. Era este o assunto urgente” – Perguntou Miranda, sentindo um sabor quase que maquiavélico por imaginar que seu Geraldo estava ali só para fugir da presença dela. ”Na verdade eu já tratei do assunto e vim aqui para não ficar te atrapalhando enquanto você trabalha na casa.” - foi o que de melhor o seu Geraldo pode construir para apresentar como resposta. “Estava pensando, caso o senhor não se importe, em preparar seu almoço. Vi que tem uns pedaços de frango na geladeira e poderia prepara um cozido. O que o senhor acha?” Entre surpreso e alegre ele assentiu com a cabeça sem ter o que falar. “Mas caso o senhor esteja tranquilo e já tenha tratado dos seus “assuntos urgentes” eu gostaria de uma ajuda na cozinha - o senhor pode lavar uns tomates e cortá-los para o molho.”

A conversa fluiu fácil pois não era sobre o tempo e sim sobre preferências culinárias e foi fácil encontrar assunto. Quando o seu Geraldo foi cortar o tomate começou a cortar em rodelas e Miranda disse “Não! Pare! Você deve cortar em quadradinhos que fica melhor”. “Como assim? Quadradinhos?” Miranda pegou a faca da mão do seu Geraldo o toque das mãos já fizeram os olhares se trocarem como se uma cortina tivesse sido tirada e os sentimentos estivessem nus. Miranda com uma audácia sensual entrou na frente do seu Geraldo e começou a mostrar como queria que os tomates fossem cortados. Quando virou para seu Geraldo percebeu o quanto estavam perto e os olhos dele pareciam dizer que tinham perdido a aula. Um abraço e beijo apaixonado selou o começo de uma nova história.

Lá fora o oráculo deixaria de ser oráculo e seria um catavento/geringonça que serviria somente para mostrar a força e direção do vento.

FLOP, FLOP, FLOP, FLOP, INHÉÉÉÉÉÉÉ.