Inesquecível

Eu entrei na casa. Eu sempre visitava Dona Dejanira ou simplesmente Dedé como era conhecida. Ela era uma senhora solitária. A sua funcionária morava com ela e lhe fazia companhia há muito tempo. Dedé se aproximava dos noventa anos. Sempre trabalhou e amealhou uma considerável reserva que garantia uma velhice confortável. Tinha uma boa casa, conforto e uma vida tranquila.

Neste dia ela me convidou pra jantar com ela. Éramos vizinhas. Eu, bem mais jovem, tinha uma grande amizade e carinho por Dedé.

Notei que ela estava melancólica, olhar distante. Uma ponta de tristeza que deixava sua fisionomia pesada.

Sentamos no sofá da sala e ela disse:

-Eu lhe chamei aqui hoje por que quero lhe fazer um pedido.

-Pois não, Dedé. Você sabe que pode contar comigo para tudo que precisar. Sabe como eu gosto de você.

-Que bom! Você sabe que eu não tenho mais muito tempo de vida, não é? Ainda mais agora que eu não tenho mais nenhum motivo pra viver.

-O que é isto, Dedé? E seus amigos e sua secretária tão leal? Nós não somos nada?

-Sim. Eu sou feliz por ter pessoas tão lindas como vocês em minha vida.

-Você tem muito o que viver ainda.

Seu olhar de tornou vazio, ela olhava pro nada como a recordar sua vida.

Depois pegou um envelope e me entregou.

-Quando eu me for, eu quero que você abra este envelope e leia o seu conteúdo. Além da minha história, aí tem as instruções para o meu sepultamento e tudo que quero que façam após a minha morte.

-Fico triste por você falar assim como se não quisesse mais viver, mas eu aceito de coração aberto a incumbência que está me dando. Fique tranquila que farei tudo como você quiser.

-Eu sei que posso confiar em você. Agora vamos ao jantar, vou espantar um pouco a tristeza que estou sentindo para comemorar esta noite ao lado de uma amiga tão querida.

Passados três meses, a minha grande amiga Dedé faleceu. De uma forma tranquila enquanto dormia. Uma tristeza imensa se apossou de mim. Sabia que aquela mulher tão querida sempre foi solitária e apesar de demonstrar alegria, sempre foi triste e melancólica.

Eu então abri aquele envelope e li o seu conteúdo

“Uma grande angústia me invade. Quero contar pra você o que nunca contei pra ninguém. Quero que um dia você conte esta história. Depois que eu me for desta vida. Não importa se ela chegar a uma, duas, mil pessoas.

Na minha juventude eu fui uma moça feliz. Eu conheci um rapaz quando tinha dezesseis anos. Ele tinha vinte e quatro. Foi um grande amor de ambas as partes. Nós começamos a namorar. E o tempo foi passando. Ano após ano a gente cada vez mais apaixonado. Fizemos tantos planos para o futuro. Sonhávamos com o nosso casamento. Ele era um homem tão bonito, forte, alegre, divertido. Eu gostava tanto da companhia dele. Nove anos se passaram e ficamos noivos. Eu fazia meu enxoval com todo esmero. Decidimos marcar nosso casamento. Eu escolhi para o meu vestido de casamento o melhor tecido, o mais lindo. O meu véu seria o mais perfeito. Tudo seria perfeito. Tantos planos fizemos juntos. Começamos a pensar em nossa casa. A principio seria alugada. Começamos a comprar os móveis. Tudo parecia um sonho. Eu não podia estar mais feliz. Toda a cidade sabia da nossa felicidade e que nosso casamento se aproximava.

Numa manhã, quando eu saia pra ir à escola trabalhar, eu vi um envelope por debaixo da porta. Estava endereçado a mim e a letra era a dele.

Curiosa eu abri a carta.

Comecei a ler. Ele dizia que me amava mais que tudo e que pra sempre eu seria a única mulher que ele amaria.

E então disse que por força do destino teria que partir e que não sabia se algum dia ainda nos veríamos.

Ele contou que conheceu uma mulher, dita da vida, e que num envolvimento deles, ela engravidou. Então o pai dela viu naquela gravidez uma oportunidade de salvar sua filha e a reputação da família e então o ameaçou de morte se ele não se casasse.

Casaram-se na calada da noite e partiram da cidade feito dois fugitivos.

Naquela época, no ano de 1956, uma situação daquela era um escândalo, ainda mais por ele estar de casamento marcado comigo. A família dele tentou de todas as formas esconder o acontecido. A minha família também, envergonhada por eu ter sido abandonada, tentou de todas as formas esconder.

Eu adoeci de tristeza. Estive muitos dias acamada. Até que me recuperei, mas não tive mais alegria e nem sonhos em minha vida.

Continuei seguindo com minha vida, com meu trabalho, sempre de cabeça erguida.

Quando eu estava me conformando recebi uma carta dele reafirmando que pra sempre eu seria o amor da vida dele, me pediu perdão, disse que nunca seria feliz.

Meu coração desabou, sangrou. Eu também o amava desesperadamente. Por muito tempo vivi triste, infeliz. Ele sempre me escrevia, como se quisesse me manter cativa daquele amor. Ele não sabia que não precisava se esforçar pra isto pois em meu coração jamais caberia outro amor.

Eu nunca respondi suas cartas, mas guardo todas as dele comigo.

Tempos depois, eu já morava sozinha, o meu telefone tocou. Quando eu atendi e ouvi aquela voz meu coração gelou, eu me senti desfalecer. Fiquei muda e ele perguntando se era eu que estava na linha. Com um esforço eu disse que sim. Ele conversou comigo. A partir deste dia ele me ligava algumas vezes. Embora não precisasse, ele nunca me deixou esquecê-lo. O amor que eu sinto por ele é infinito e nunca existiu outro homem em minha vida.

Tempos depois a esposa dele adoeceu e faleceu em pouco tempo. Ele ficou com quatro filhos adolescentes.

Ele continuou me ligando e dizendo que sempre me amou. Mas nós nunca ousamos pensar ou falar em reatar nosso caso. Durante todo este tempo o meu amor por ele esteve intacto em meu coração, mas eu nunca o perdoei pelo que ele fez. E talvez ele soubesse disso.

O tempo passou e ele adoeceu. E foi ficando cada vez mais frágil. Em uma ligação pediu que eu o visitasse pois queria me ver uma última vez. E depois de muito hesitar eu fui visitá-lo.

Eu gostei de vê-lo, mas ele estava tão doente. Esperei tanto para ter coragem, esperei tempo demais. Eu queria tê-lo visto cheio de vida, como eu o conheci um dia. Tantas vezes conversei com ele por telefone. E a voz dele era a mesma linda voz de sempre. E eu o imaginava. Quando eu o olhei eu vi o mesmo homem de tantos anos atrás. Mas tão frágil. E isto me entristeceu. Uma grande emoção tomou conta de mim. Conversamos e nos emocionamos. Choramos algumas vezes. Poderíamos ter sido tão felizes. Mas o destino tinha outros planos para nossas vidas.

O tempo não volta e nem espera. A vida que eu não vivi eu nunca mais terei de volta.

Recentemente ele faleceu. Quando eu soube, um pedaço do meu coração se foi com ele. Uma tristeza imensa me envolveu.

Quando penso em tudo que aconteceu em minha vida, sinto que passei pela vida e não vivi. Aquele acontecimento me paralisou e eu fui passando pela vida, mas nunca vivi realmente.

Daquele tecido que comprei para o meu vestido de noiva, foi confeccionada a minha mortalha. Que seja usada em meu enterro. Afinal aquele acontecimento me deixou morta em vida.

Deixei meus bens dispostos em testamento.

Minha querida Sandrinha, faça a minha última vontade e receba todo o meu afeto e carinho,

Da amiga Dedé.”

Eu chorava de emoção, de tristeza e de pesar por minha amiga. Jamais poderia supor o porquê daquela vida tão solitária. Logo ela uma mulher tão bonita, inteligente, amável.

Eu cumpri todas as suas vontades.

Sempre me lembro dela e faço uma oração.

Ela faleceu há quase dois anos e eu sempre fico imaginando se ela, que não foi feliz nesta vida, encontrou o seu grande amor em uma outra dimensão. Quero acreditar que sim.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 11/02/2022
Código do texto: T7450067
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