As Palavras Que Não Foram Ditas

Há coisas ditas e há coisas não ditas. E eu acho que é muito melhor nos arrependermos por aquilo que dissemos do que por aquilo que deixamos de dizer, porque talvez tenhamos a possibilidade de corrigir palavras lançadas, mas nunca teremos a chance de recuperar palavras que foram engolidas. Muitas vezes deixamos de dizer algo importante por orgulho, por arrogância, ou mesmo por insegurança. Temos medo de, através das palavras, revelarmos um pouco de nós, de quem somos, do que sonhamos. Temos medo da vulnerabilidade a qual o abrir do nosso coração pode nos entregar. Mas deveríamos ter muito mais medo de passarmos por essa vida sem nos ligarmos a alguém emocionalmente. Porque apenas essa ligação é capaz de nos eternizar. Se há uma forma de vencermos a morte é conquistando o amor e o afeto de quem importa.

O fato é que não me atentei a isso.

E algo invisível me fez ver o efeito da minha própria ignorância.

Estávamos tão bem. Apesar dos pormenores, vivíamos a melhor fase de nossa história desde que o primeiro capítulo foi escrito e vivido. Se perfeição existisse era aquilo o que estávamos experimentando. Mas histórias são cheias de reviravoltas e a nossa teve a sua. O que parecia perfeito chegou ao fim. E embora soubéssemos que um dia teríamos que nos despedir, não imaginávamos que seria de uma maneira tão impensável.

— Eu amo você... — deitada sobre o meu peito após um momento de intensa paixão que compartilhamos, quando pudemos mais uma vez alcançar a certeza de que nossos corpos conversavam entre si e que nossas peles necessitavam daquela sensação que garantiam uma à outra, Ana disse de repente. Lembro-me de que estava quase pegando no sono quando a sua voz doce, da mesma forma que densa, tocou em meus ouvidos.

Nunca fui de expor meus sentimentos. Nunca declarei palavras românticas ou sentimentais. Eu sentia medo. Pavor. E se as palavras caíssem por terra? E se com o tempo o desejo acabasse? O amor fosse embora? Os sentimentos diminuíssem? O prazer não mais acontecesse? O que seriam das palavras se a nossa história chegasse ao fim? Eu temia o que hoje sei que nunca aconteceria. E por esse temor guardei para mim o que precisava ser compartilhado com a pessoa que eu amava, embora não dissesse.

Apertei-a contra mim. Acariciei sua face macia. Em segredo desejei para que nunca tivesse que experimentar a dor da perda, fosse ela causada por qualquer motivo. Eu precisava daquela mulher ao meu lado. Ela me completava. Se eu me sentia vivo era por sua causa. Se a vida parecia fazer sentido era porque ela havia me dado a chance de amá-la. Aquilo não poderia acabar. Eu não queria que acabasse.

— E eu sei que você me ama — ela falou com a espontaneidade de sempre —. Você é todo sério. Todo durão. Aparenta ser um homem distante. Mas eu sei que bem aqui no fundo — tocou o meu peito, sei que pôde sentir as batidas do meu coração —. Bem aqui no fundo está estampado que você me ama!

Eu sorri. Sorri abobado. Apaixonado. Como sempre sorria quando ela me fazia sentir vontade de prendê-la a mim por ser tão sensível, por conseguir ouvir os meus segredos, por saber exatamente o que eu queria dizer, apesar de não conseguir. Ela nunca me cobrou que dissesse, no entanto eu sei que sempre desejou. E nunca me perdoarei por ter lhe negado a realização de um desejo tão simples.

— E como você pode ter tanta certeza? — o quarto tinha pouca luz, mas a fraca luminosidade que vinha da rua atravessando a janela era o bastante para que eu pudesse encarar seus castanhos e brilhantes olhos.

— Porque eu sou feliz, Pedro... — ela respondeu com sinceridade. Percebi seus olhos se lacrimejarem. Era assim que seu corpo se comportava toda vez que ela decidia abrir o que eu não conseguia, toda vez que decidia desnudar a mim sua alma e me fazer desfrutar da indescritível sensação de me sentir amado —. Você me faz feliz. E só podem nos fazer felizes se nos amarem de verdade.

— Você não está errada — continuei embriagado pelo toque em seu rosto, sentindo o suave caminhar de seus dedos por sobre o meu peito, procurando maneiras de romper as minhas próprias limitações e dizer em alta voz o que ela merecia saber —. E é motivo de contentamento para mim saber que posso lhe proporcionar algo de bom nessa vida, embora eu saiba que sou incapaz de lhe dar o que realmente merece...

— Não diga bobagens... — suas mãos vieram ao meu rosto, contornaram os meus lábios, procuraram aconchego por entre os meus cabelos —. Do que mais eu precisaria? Garanto que ao seu lado já conquistei e vivi muito mais do que eu realmente gostaria...

Era tão simples. Apenas três palavrinhas e eu poderia fazê-la ainda mais feliz. Mas não pude dizer. Não pude romper as dores antigas, as marcas passadas. Não pude simplesmente vencer a mim mesmo e declarar que eu a amava mais do que a mim. Eu deveria, mas não pude confessar que ela me resgatou da minha própria escuridão, quando ninguém conseguia me enxergar, nem mesmo eu. Ela precisava saber que foi luz quando tudo o que eu tinha era trevas. Ela merecia saber que era especial. Mas fui egoísta. Um verdadeiro covarde. E guardei para mim sentimentos que deveriam ser compartilhados.

No dia seguinte o pesadelo teve início.

Era o fim da nossa história.

Eu era professor em uma universidade. Lecionava no curso de Engenharia Química. Logo que terminei de tomar o café da manhã na companhia da minha esposa, como sempre fazia antes de sair para o trabalho, o meu celular tocou para alguma notificação. As aulas estavam suspensas por tempo indeterminado. A recomendação era que ficássemos em nossas casas. Um vírus então desconhecido, de proporções inimagináveis, provocava ansiedades, inquietações e exigia rápidas ações. A pandemia se instalava no Brasil.

Ana e eu ficamos relativamente felizes. Poderíamos passar mais tempo juntos, colocar algumas séries em dia, assistir aos filmes que há meses havíamos separado para assistir juntos, compartilhar impressões de leituras que tínhamos combinado. Naquele entusiasmo todo até escrevemos alguns roteiros para os vídeos que ela lançava em seu canal, eu seria convidado para mostrar algumas reações químicas e participar daquelas trends de casais. Tudo parecia perfeito. Mas não sabíamos que o inimigo já havia entrado em nossas vidas.

Era de noite quando, enquanto assistíamos ao primeiro dos filmes listados, Ana começou a apresentar sinais de gripe. Lembro-me de ter feito uma brincadeira sobre o vírus que tão pouco conhecíamos, ela do seu jeito divertido pouco se importou com a gravidade do que poderia acontecer. Sentíamo-nos protegidos. Tudo parecia bastante seguro e confortável. Mas no dia seguinte Ana acordou com febre. Sempre soube reconhecer quando ela não estava bem: ficava menos alegre, demorava mais para entender as coisas e o brilho que iluminava aqueles olhos sempre tão curiosos e empolgados diminuía ao ponto de desaparecer. Cheguei a comentar para que fôssemos ao hospital. Mas ela recusou, disse que era só um resfriado e não queria se arriscar indo aonde existiam pessoas realmente doentes. Tomei a pior decisão da minha vida e concordei.

No dia seguinte acordei com ela em desespero. Fazia sinal apontando que tinha dificuldade para respirar. Não me importei se não estava vestido da melhor forma, coloquei-a no carro e corri ao hospital. Se eu tivesse feito isso antes, talvez o desfecho da nossa história não teria sido tão precoce.

Eu estava aflito. Os médicos demoraram um pouco para nos atender, apenas colocaram a minha esposa no oxigênio, fizeram um exame às pressas e nos disseram para esperar. Suas mãos estavam frias. Eu segurava por ela aquela máscara em seu rosto, porque a fraqueza que a dominava era nítida. Seus olhos me observavam como de costume, meigos, gentis, apesar de ofuscados. Seus lábios desenhavam um discreto sorriso, sua maneira de dizer que tudo ficaria bem. Mas eu sabia que não era um simples resfriado. Antes mesmo de provocar tantas mudanças, o vírus já havia invadido a minha casa. E eu precisava superar a mim mesmo. Aquela era a hora. Aquela era a minha oportunidade. Aquele era o momento do qual havia fugido por tanto tempo. Aproximei-me de seu ouvido. Mas fui interrompido.

— Precisamos levar a sua esposa para o isolamento — enfermeiros vestidos dos pés à cabeça, usando tantos equipamentos de proteção que os faziam mais parecer químicos em locais de alta periculosidade, colocaram-se entre nós sem cerimônias.

— O que houve? — perguntei preocupado.

— Senhor, fique calmo — um daqueles profissionais se colocou diante de mim —. Sua esposa será levada para um tratamento especial.

— Eu preciso ir com ela — avancei contra o enfermeiro que tentava me impedir de continuar colocando as mãos em meu tronco.

— Senhor, por favor.

— O que está acontecendo? — a vi sendo levada para longe de mim, seus olhos ficando cada vez mais distantes, até desaparecerem por completo —. O que vão fazer com ela?

— Preciso que se acalme. Farei algumas perguntas. E prometo que trarei informações.

Fui submetido ao exame e descobri que também estava doente, apesar de não apresentar nenhum sintoma. Mas a descoberta pior foi quando me avisaram que ela ficaria em isolamento por no mínimo quinze dias e que eu deveria fazer o mesmo dentro de casa e só voltasse caso começasse a me sentir mal. Não era uma sugestão ou um conselho. Era uma determinação em respeito a toda a sociedade.

Não tive escolha.

Precisei ir para casa.

Tendo a imagem da minha esposa sendo levada para o desconhecido se repetindo na minha mente inúmeras vezes e afligindo o meu coração.

Incerteza. Medo. Apreensão. O que iria acontecer? Conforme eu andava dentro de casa e observava a forma como minha esposa organizava os móveis, nossos pertences, as fotografias nas quais eram exibidas duas pessoas inteiramente felizes, ficava cada vez mais desesperado. O que estavam fazendo com ela? Como cuidavam dela? Ela tornaria a andar por aqueles corredores? Tornaria a reclamar quando eu bagunçava toda a sala à procura de algum livro? Eu poderia ouvir outra vez sua reclamação quando me esquecia de cumprir com a minha obrigação e colocar as toalhas para secar? Teria a oportunidade de chegar da universidade e encontrá-la adormecida no sofá porque eu demorei mais do que o previsto? Poderia outra vez deitá-la sobre a cama e fazer a massagem que a acalmava em um gesto através do qual eu dizia que a amava e que queria para sempre protegê-la e cuidar do seu bem-estar? Nossa história teria continuidade? Eu teria a chance de dizer as palavras que não foram ditas? Eu teria a chance de dizer que por todos aqueles últimos dez anos ela cuidou de mim?

Por que fui tão irredutível? Por que não pude me libertar de aprendizados tão limitantes? Por que tive que crescer ouvindo de um homem intransigente que sentimentos não devem estar na boca de um menino? Por que tive que entrar na adolescência sem saber qual era a sensação de abraçar o seu próprio pai? Por que tive que amadurecer cedo demais para ser mais forte do que o medo e servir de apoio para minha mãe depois das agressões que ela sofria daquele sujeito bêbado? Por que tive que me transformar em um homem sem compreender o que eram as emoções? Por que Ana me amou? Por que ela não amou outro homem melhor do que eu, capaz de dizer coisas do coração? Por que tive a sorte, sem merecer, de ser amado pela mais inspiradora das mulheres? Por que sendo ela tão nobre teve que se apaixonar por um sujeito tão simples e vazio quanto eu? Por que eu não pude me esquecer de tudo aquilo que vivi e viver de verdade aquele amor? Teria a chance de me reconciliar comigo mesmo e fazer o que era certo?

As notícias eram sempre as mesmas. Eu ligava no hospital constantemente, mas tudo o que me diziam eram as mesmas palavras. Até a hora na qual meu celular tocou por si só. Era do hospital. Chegava a pior das notícias. Minha esposa se fora.

Imagina não ter a chance de se despedir de quem você ama. De não dizer adeus. De não ouvir a sua voz pela última vez. De não ter a oportunidade de dizer aquilo que precisava ser dito. Imagina nem mesmo ter a chance de fazer um funeral digno. Uma homenagem decente. Uma cerimônia que faça jus a tudo o que aquela pessoa tão querida e especial representa na sua vida. Tive que passar por isso. Não pude me despedir da mulher que amava, nem na sua internação nem no seu sepultamento. A sensação é a de que a qualquer momento as portas da minha casa se abrirão e ela entrará me dizendo que tudo não passou de um pesadelo terrível, que tudo está como antes com a diferença de que agora eu posso dizer as palavras que nunca foram ditas.

Ana. Eu amei você como nunca pensei que fosse capaz porque nunca pude aprender. Eu ainda amo, porque é como se a sentisse dentro de mim, vivendo em mim, continuando em mim. Não sei se algum dia a dor vai passar. Não sei se algum dia terei a chance de me encontrar com você para dizer o que nunca tive coragem. Mas saiba que se sou um homem melhor, se sou uma pessoa melhor, é porque você me resgatou dos meus próprios assombros. Eu só precisava de um pouquinho de esforço para declarar palavras tão simples. Perdoe-me por essa falha imperdoável. Mas eu espero que de alguma maneira essas palavras cheguem até você. Obrigado por entender que no meu silêncio eu anunciava o tamanho do meu amor.

(Conto por @Amilton.Jnior)