O amor é uma arma quente (reeditado)
“O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia”.
Guimarães Rosa
BANG! BANG! BANG! Os tiros soavam ao longe. Do meu lado o patrão e todos os outros contratados na cidade grande. A fome, o sol e os pernilongos disputavam os nossos corpos que ardiam no mormaço nortista. O patrão olhou ao redor e, com um aceno de cabeça, disse que era hora do almoço. Subimos na caminhonete e partimos deixando os pernilongos para trás.
-A fronteira não é um fim. É um começo! O patrão disse.
Acomodamos debaixo de uma jaqueira nova e aguardamos o feijão que a mulher cozinhava no fogão de lenha do quintal. O patrão calculava com caneta e caderno. Fez as contas e, por fim, disse que em pouco tempo já poderia morar na propriedade. Nós os pioneiros, ele afirmou, seríamos os responsáveis por civilizar aquelas terras. A qualquer custo, ele completou. Deixou suas coisas sobre o banco de madeira e foi ao riacho se lavar. Eu, largando a arma recostada no tronco, entrei na casa onde a mulher me aguardava.
-Até quando temos que permanecer aqui?
Eu estava lavando o rosto quando a pergunta dela me pegou de jeito. Fechei os olhos. Os pingos de água e suor escorreram por minha barba. Olhei para ela com vergonha. Eu havia mentido quando disse que era um trabalho temporário. Na verdade ela não teria me acompanhado se soubesse que ficaria ilhada no meio da mata.
-Até logo logo, meu bem.
Os caroços de milho caem como gotas de chuva sobre o chão batido do terreiro. Você precisa ver a beleza das pombas e das galinhas que se juntam para bicar cada qual a sua parte. Como a mão que dá o pão também dá a morte engatilho a winchester e nem preciso fazer mira para abater com um estrondo a ave sem sorte que cruzou a linha do tiro.
-Você se parece comigo, Jagunço, que não erro tiro!
Se você me conhecesse e ouvisse o meu patrão falando isso, certamente você saberia que ele não estava falando sério. É certo que eu não erro tiro. Mas, geralmente os meus alvos são imóveis ou estão desarmados. Não posso negar a verdade por mais vergonhosa que seja. Os meus alvos preferidos eram as aves pousadas nos galhos e as capivaras. Já meu patrão dizia e provava que gostava de atirar em índios. São invasores, ele afirmava. Eu pensava o contrário, mas era ele quem pagava.
-E aquele cão ali, Jagunço, espiando pela janela?
O cachorro passou carregando pulgas, sarna e a liberdade dele. Encostou no pé de coco e marcou o território. Depois saiu trôpego, numa corrida medrosa, com rápidas paradas para se coçar. Eu olhava para ele e fingia pensar. O patrão me cutucou com uma colher de madeira. Limpou os beiços no guardanapo e se saiu com essa:
-Muitos cães vivem felizes quando seus donos morrem. Menos esse aí.
Expliquei pra ele que não pude matar o cão. Que cheguei a fazer mira no miserável, mas no momento de puxar o gatilho uma coruja piou forte na beira da mata e eu desisti de desencarnar o pulguento. O patrão se levantou com a barriga e a cabeça cheia de ideias. Jogou os restos de frango pela janela junto com o prato. Não era ele quem recolhia e lavava a louça, mesmo. Senti os olhos da minha mulher nas minhas costas e tive vergonha outra vez.
-Veja o que se deve fazer com um cão como esse!
O patrão puxou o revólver do bolso do paletó e fez mira. Os olhos remelentos do cachorro ainda se abriram em largura antes do projétil lhe atravessar a testa. Caiu em cima dos ossos e restos de comida. Esticou as pernas e ficou parecido com a terra: cinza silenciosa. Engoli em seco e limpei o suor precoce que encharcava meu bigode.
-Sua vontade é menor que sua superstição, Jag, por isso não completou o serviço.
O patrão desceu os três degraus de madeira da varanda, pisou o chão do terreiro e palitando os dentes cuspiu no cachorro morto. Passou a mão pelos cabelos bastos e ondulados e disse que já ia. Eu abanei a cabeça de contentamento. Ele caminhou ao encontro dos outros peões que estavam à sombra da jaqueira.
Assim que ele sumiu me virei e dei de cara com minha mulher. Ela chorava. Há muito tempo ela queria ir embora. Mas, disse que só ia se eu fosse. Que não gostava da fazenda, pois o lugar era deserto e bem no meio do mato. Ela era do sul. Do sul do sul eu falava pra ela tentando fazê-la sorrir. Puxei-a pela mão, dando a volta à casa, e mostrei-lhe o verdume da floresta que se esparramava como um mar de árvores no horizonte. Ela levantou o rosto e uma lágrima grossa caiu de seus olhos. Levei os dedos para enxugá-la, mas fiquei no vazio. Ela correu soluçando.
Deixei-a na cozinha lavando a louça e fui ao encontro dos outros. Iríamos estrear os tratores naquelas árvores seculares. Quando voltei à tardezinha ela já estava no banheiro. Aproveitei para enterrar o cão. O barulho da água sendo jogada no corpo com uma caneca me fez lembrar o barulho das cachoeirinhas na floresta. Tinha apenas uma diferença: as cachoeiras não choram.
Dei a volta a casa e recostei-me à parede. Fiquei ouvindo. Lá, na penumbra do banheiro iluminado por velas, minha mulher ainda soluçava. Eu tive pena. Pensei em ir embora no outro dia. Mas como? A cidade mais próxima fica a alguns quilômetros daqui. Bem, se eu fosse mais humano iria de qualquer jeito. Quer o patrão queira, quer não.
Pensei nisso por um instante. Depois, pensando com os pés, fui andando pela casa inteira. Passei da sala à cozinha. Da cozinha ao quarto. A seguir, passando pelo corredor parei e pude sentir o cheiro do perfume de alfazema dela. Aquele cheiro não sairia de mim nunca. Mesmo que eu quisesse. Eu estava dividido.
Meu peito e meu corpo doíam de inquietação. Então, olhando para o alto da parede eu vi a winchester enroscada no prego. Retiro-a e a levo para a varanda. Fico fazendo mira na escuridão do pátio. Essa arma - me pego pensando - que leva a morte também traz a vida, pois mamãe descansa em um asilo confortável que um salário comum não poderia pagar. Só por isso é que estou nesse lugar fazendo o que faço, pelo menos prefiro acreditar nisso.
Quando estava preparando um cigarro de palha ouvi um barulho de folhas secas sendo pisadas. Escondi-me atrás da coluna de madeira. Levantei calmamente a arma à altura do rosto, acionei a alavanca e um cartuxo correu para a câmara. Meus olhos enquadraram o animal que se aproximava furtivo. Era uma cadela magra e comprida. Bom, não havia nenhuma coruja piando. Era só atirar. Tentei, mas ela virou as costas e saiu arrastando as pernas. Parou bem em cima da cova do cão. Deitou ou caiu de fraqueza na terra vermelha. Eu abaixei a arma e fiquei fazendo de conta que estava pensando.
Não sabia o que fazer, ou melhor, sabia o que fazer mas não queria fazer. Fui tirado daquela agonia pelo mais alto e horroroso uivo que já ouvi na minha vida. Levantei a arma novamente e, em seguida, a joguei na varanda como se ela fosse uma cobra e eu fosse uma criança na floresta. Virei as costas e saí.
Andei coçando os braços, a cabeça e a barba. Por fim, uma súbita ideia explodiu na minha cara. Eu consegui sentir ela surgindo e clareando toda aquela escuridão à minha frente. E com o rosto fechado e a cabeça trabalhando a mil me viro para dentro da casa e caminho em direção ao quarto. Minha mulher está debaixo da coberta toda escondida. Eu a chamo e ela me olha com medo e curiosidade. Eu digo:
-Dentro de três luas diremos olá à tua sogra.
Ela pula da cama descalça e sorrindo. Me abraça como só uma criança sabe abraçar alguém. Eu sinto o coração dela batendo. O coração dela me bate no corpo todo. O meu coração responde às batidas. O corpo dela é quente e encobre completamente o meu. Tenho de sentar para não cair. Sentamos os dois na beirada da cama com as mãos e as cabeças juntas mirando a janela aberta.
A escuridão da noite já não nos faz medo. O céu se ele existe, eu pensei, não é um lugar é uma sensação. Levantamo-nos, pois ainda tínhamos duas malas para fazer. Lá fora, sob o clarão da lua, a cadela lambia as patas machucadas da sua longa caminhada.