Como rimar amor e dor
Não é dado aos ébrios o não sentir? A ignorância, principalmente de si? Então por que eu choro? Por que não há armistícios celebrados com brindes na minha dor? Cada gole a mais deveria afogar minhas lágrimas sem deixá-las emergir, mas que densidade paradoxal é essa que as fazem vir à tona; à superfície do meu ser, dos meus olhos? Deveria eu ter os sentimentos revestidos! E aquele vestido? Ainda lembro. Aquele vestido tão belo, tão belo! Amava ela e amava a amar. E ser amado por ela. Hoje escrevo sem saber se sou um ébrio escritor ou um escritor ébrio. E poderia não saber de mais, satisfeito em não saber sem que o saiba. Mas sei que sinto. Sofrer? Vá lá, mas por que saber que sofro? Doer? Vá lá, mas por que chorar ao sentir a dor? Não é a bebida como uma morfina para a alma? E a morfina, é certo, não é a cura da doença, mas ao menos o ignorá-la, não dar ouvidos a ela. Mas eu lembro; era ela bela! Mais um gole! Mais um gole! E esqueço-me de mim. Ai, mas não me esqueço dela. Como era bela! Mais uma garrafa e mais um gole. Esqueço minha personalidade e o meu modo de ser, mas não posso perder os hábitos, e um hábito meu é você, que habita em mim. Uma mania, sestro do coração; bebo e esqueço-me, de você não. Minha pequena e lépida, minha memória tem os gestos dos seus gestos a bailar, daquela vez. E baila-te em mim, para te poder reavivar. Mas só em mim, que morta estás, porém, vivaz, na minha mente, que aqui, jamais, novamente. Estás do meu lado, não do esquerdo ou do direito, mas do lado de dentro. Mais um gole, mais um gole, para essa inteligência que sofre e sabe por quem, que mais sofre porque sabe o porquê. Um copo a essa sensibilidade devassa e oferecida; masoquista e apaixonada. Ai, lembrança e memória tagarelas e surdas. Por que está vivo o morto, se está morto de vida? Porque não és esquecida! E como esquecê-la, se era tão bela e a amava tanto? Uma bebida, uma garrafa, um gole. Tudo me parece combustível ao pranto. Tento apagá-la em mim, e o álcool só incendeia a dor. Bebo e tento esfriar as lembranças que tenho de ti, pô-las para descansar em um berço, entorpecidas, e nem as vigiar ao adormecerem. Mesmo que acordassem de ressaca e agitadas, que refrigério! Mas viro o copo para me esquecer-te e esquecer-me de mim, e não me perco, apenas vago por ti a esmo. Se me embriago até não sentir nada, fico como aquele poeta que também nada era, e sinto um nada, mas nada que dói.
Bela, bailava, brincava, e, lembro bem, a amava! Mais uma garrafa! Mais uma garrafa! Mais uma garrafa! Nesse ponto até me perco, mas meu Norte para voltar a mim é lembrar que um dia exististes e que a amei. E volto, assim mesmo, sem saber quem sou, mas que exististes e que a amei. E que ainda sei que a amei. E que ainda vou o que a amei. E ainda a amo. Linda, bela, com seu vestido a bailar, que já não existe, e já não existes, e eu, ébrio, que já não existo também, vivo um penar. Já acho que toda a bebida do mundo e todo o ópio seriam pouco ao meu coração, que fez de um amar o sangue, e de um ser sua razão. Coração que não batia por mim, senão por ela. E que hoje dói, porque é dela... e ela está morta. Porque o tenho em meu peito, mas ela o tem em seu leito. Leito de morte. Por isso ele anseia por essa morte, por isso ele sente uma morte, ou desgraça de mesma sorte. Por isso ele dói, pois pulsa por um ser que o verme corrói. Corroeu. E a linha do tempo, ao passar, meu coração não coseu, senão ao ente teu, cada vez mais enleado ao meu.
“Escreva um diário que isso vai te ajudar!” Ora, meus dias são isso; dor. E de que adianta colocar a dor no papel? Só um lugar a mais para sofrer!
E escrevendo isso, ouço um rumor longínquo da porta se abrindo. É ela, querida! É ela, minha pequena! Já preparo o peito para arfar e o pranto para transbordar, porque é agora que a dor é mais grande, como dizias. Pois quando olho para tua mãe, lembro como eras bela, e linda, e bailavas. Como se parecem! E como eu amo as duas! Mas até o amor que me sobrou, é uma lembrança, filhinha, de que exististes, de que eu te amava— e amo! —, e de que estás morta.